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Quadro “Chouans”, do  Musée des Beaux-Arts de Lille, mostra os insurgentes da Guerra da Vendeia. (Domínio Público)
Quadro “Chouans”, do Musée des Beaux-Arts de Lille, mostra os insurgentes da Guerra da Vendeia. (Domínio Público)| Foto:

Falar de Júlio Verne é falar de um dos romancistas “clássicos” mais utilizados pelo cinema. De fato, são poucas as suas obras que não tiveram uma adaptação cinematográfica. Alguns filmes baseados em seus livros, além disso, também foram premiados com o Oscar, como A volta ao mundo em 80 dias, de 1956, com David Niven e Shirley MacLaine ou Vinte Mil Léguas Submarinas, de 1954, com Kirk Douglas e James Mason.

O francês Júlio Verne foi, com o italiano Emilio Salgari, o autor de aventuras mais lido pelos jovens até, pelo menos, a minha geração. Alguns o consideram, não erroneamente, o inventor da ficção científica. Assim sendo, é surpreendente saber que em 1863 Verne publicou em fascículos um romance de guerra em uma revista parisiense. Quando pouco tempo depois se tornou célebre, quis recolher aqueles fascículos em um volume. Mas o editor recusou. Por quê? Porque Verne ambientara a obra na Guerra da Vendeia e, além disso, havia apoiado abertamente os vendeanos. Verne era bretão e a “Vendeia militar” tivera na Bretanha um dos seus epicentros. Portanto, cresceu ouvindo os contos dos antigos, nos quais os pais verteram o sangue por Deus e pelo Rei na Armada Católica.

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Mas a França na qual vivia era a filha da Revolução, dos jacobinos e da guilhotina. Por isso, não se podia falar bem dos insurgentes vendeanos. O romance de Verne foi publicado na Itália depois de muitos anos; na França veio à luz somente no fim do século 20 [ainda não há tradução brasileira do romance]. “Num tempo, antes da Revolução, havia grande veneração pelos padres em toda a Bretanha; estes não se envolviam nos excessos, nem nos abusos de poder que caracterizaram o clero das outras províncias ‘culturalmente mais avançadas’.” Depois vieram os padres “constitucionais”, e o povo os recusou, preferindo assistir às funções clandestinas dos “refratários” (isto é, os sacerdotes que tinham rejeitado a Constituição civil do clero de matriz revolucionária).

Diz o protagonista: “Vi de perto estes ministros do céu! Eu os vi abençoar e absolver um exército inteiro ajoelhado antes da batalha! (…) Eu os vi em seguida se lançar na batalha com o crucifixo em mãos, socorrer, consolar, absolver os feridos sob o fogo dos canhões republicanos”. E quando chegaram os padres “constitucionais”, o povo se indignou: “Houve luta e batalha em mais de um lugar; os camponeses expulsaram os padres ‘jurados’ e várias propriedades paroquiais foram banhadas com sangue”.

Veio a “lei dos suspeitos” de 1793 que dizia: “São considerados suspeitos: 1) aqueles que, seja com a conduta, seja com suas relações, com palavras ou escritos, se mostrarem partidários da tirania, do federalismo e inimigos da liberdade; 2) aqueles que não podem justificar o seu modo de ser e a aquisição de seus direitos civis; 3) aqueles aos quais foram refutados o certificado de civismo; 4) os funcionários públicos suspensos ou destituídos de suas funções; 5) aqueles entre os ex-nobres, incluindo maridos, mulheres, pais, mães, filhos ou filhas, irmãos e irmãs, e agentes de emigrantes, que não manifestaram firmemente o seu compromisso com a revolução”. Em suma, todos.

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A gota que fez transbordar o vaso foi a introdução do serviço militar obrigatório que, tirando os melhores braços do trabalho no campo, teria afamado a população de uma cidade de camponeses. Os nobres fizeram o seu dever, assumindo para si o guiamento dos insurgentes. Muitos se perderam no campo de batalha: o general vendeano D'Elbée, doente, foi fuzilado sobre sua poltrona; a Henri de la Rochejaquelein, vinte e um anos, foi fatal sua misericórdia: surpreendeu dois bleus isolados, pediu-lhes a rendição, dando-lhes a graça da vida, mas um deles disparou-lhe na testa. Foi o primeiro genocídio científico e planejado da história. Verne o sabia: “Durante aquele tempo, os mais sanguinários agentes do Comitê foram enviados às províncias. Carrier em Nantes, depois de 8 de outubro, imaginou aqueles meios que chamava “deportações verticais”, e em 22 de janeiro inaugurou os barcos feitos para afundar no rio Loire carregados de prisioneiros do exército da Vendeia”.

*Rino Cammilleri, bacharel em Ciências Políticas pela Università di Pisa, é escritor, editorialista e conferencista.


Tradução: Rafael Salvi.



© 2019 La Nuova Bussola Quotidiana. Publicado com permissão. Original em italiano.

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