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Quatro personagens ficam presos por sete anos | /Globo/Estevam  Avellar
Quatro personagens ficam presos por sete anos| Foto: /Globo/Estevam Avellar

Escrita por Manuela Dias (“Ligações Perigosas”), a minissérie global “Justiça” estreia nesta segunda-feira permeada pela questão: ‘afinal, o que é justo?’.

Já é possível antecipar que as respostas não serão simples. As histórias que andam paralelamente a partir do momento em que quatro personagens são presos têm alto potencial de debate.

A cada dia da semana, um protagonista assume, com os outros funcionando quase como figurantes. Maurício (Cauã Reymond), Fátima (Adriana Esteves), Vicente (Jesuíta Barbosa) e Rose (Jessica Ellen) ficam encarcerados por sete anos, mas o drama não acaba com a liberdade. O sentimento de vingança, que eles alimentam ou do qual são alvos, permeia toda a minissérie, em 20 capítulos e ambientada no Recife.

Seus ‘crimes’ têm motivações distintas: Maurício pratica eutanásia na mulher, Beatriz (Marjorie Estiano), depois que ela é atropelada e fica tetraplégica. Fátima é vítima de um plano do vizinho policial (Enrique Diaz), com quem vive em pé de guerra, e vai presa por tráfico. Já Vicente assassina a noiva (Marina Ruy Barbosa) porque ela estava com outro homem. Elisa (Débora Bloch), mãe da garota, jura vingança. Por fim, Rose é presa por ter comprado drogas junto com Débora (Luisa Arraes). Negra, apenas Rose é revistada e leva a culpa sozinha. A amiga se omite.

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A Gazeta do Povo selecionou quatro dilemas morais abordados na série que escapam aos tribunais – e à ficção – e chegam ao cotidiano. “A minissérie parece muito feliz porque consegue elaborar muito bem esses conflitos. O Direito, em alguma medida, também está abraçado com a ficção, porque se ‘finge” que os conflitos acabaram depois de julgados”, diz Edna Câmara, professora de Filosofia do Direito da Unicuritiba.

Eutanásia

A eutanásia, pela qual uma pessoa em estado terminal ou sofrimento extremo decide interromper a própria vida, faz parte do mesmo espectro do aborto porque também coloca em pauta o direito à vida. “É uma questão muito delicada: porque por um lado você promoveu uma violação desse direito. Mas de outro fica a pergunta: isso (uma situação de sofrimento) é vida?”, pondera Vera Karam de Chueiri, diretora da Faculdade de Direito da UFPR e especialista em Filosofia do Direito.

A prática, que o personagem Mauricio fez a pedido da mulher, ultrapassa as fronteiras do jurídico e provoca discussões morais e religiosas. Os argumentos favoráveis à eutanásia apelam, em geral, ao sentimento de compaixão, que busca abreviar o sofrimento. No livro “Justiça – O Que É fazer a Coisa Certa”, o filósofo americano Michael J. Sandel aponta também que esses argumentos podem expressar ideais libertários. “Se a minha vida pertence a mim, devo ser livre para desistir dela. E, se eu fizer um acordo voluntário com alguém que se disponha a me ajudar, o Estado não tem o direito de interferir”, diz o trecho.

A lei brasileira considera crime a eutanásia. “Quem ajudar na prática pode ser enquadrado no tipo penal de auxílio ao suicídio. Contudo, pode haver homicídio privilegiado, por exemplo, caso um terceiro, médico ou familiar do doente terminal lhe dê a morte, estaremos diante do homicídio, que, eventualmente teria tratamento penal privilegiado, atenuando-se a pena, pelo relevante valor moral que motivou o agente, assim o juiz poderia reduzir a pena de um sexto a um terço”, diz Paulo Thadeu Gomes da Silva, procurador regional da República e doutor em Direito Constitucional.

Vingança

A vingança é frequentemente confundida com justiça e isso deve ficar muito claro na minissérie. Os dois termos não estão exatamente distantes, já que, antes da criação do Estado, a punição do criminoso ficava a cargo da própria vítima. “A obrigação sempre pesou sobre o vingador, que não tinha valor até que ele infligisse o mesmo dano ao culpado, e se ele falhasse, seria difamado por sua covardia ou fraqueza”, afirma Silva, que faz um paralelo com “Abril Despedaçado”, obra de Ismail Kadaré adaptado para o cinema por Walter Salles.

A “vingança privada” foi dando lugar à compensação financeira até que o Estado começou a exercer o monopólio da violência. “Aqui venceu o instinto de autopreservação dos indivíduos”, completa Silva.

O Direito surge como uma instância de mediação aos conflitos. “Porém, nem sempre a resposta do Direito é justa. E, por mais que sua função seja justamente dar uma resposta racional do Estado aos conflitos, não acaba com o desejo de vingança. O que é possível fazer é racionalizá-lo na medida do possível, para não dar respostas baseadas em paixões”, afirma Vera.

Omissão

No arco de “Justiça” que retrata a história de Débora e Rose, há o dilema da amizade colocada à prova. Negra, Rose foi automaticamente escolhida para uma revista policial, enquanto a amiga, branca, passou incólume. “É um conflito moral com respostas extremas: uma (Rose) com sentimento forte de amizade a ponto de não delatar a amiga. E a outra com sentimento fraquíssimo de amizade com que faz que ela não assuma a responsabilidade daquele ato”, acredita Vera.

Para Edna Câmara, professora de Filosofia do Direito da Unicuritiba, o comportamento omisso de Debora opõe o utilitarismo (que é o princípio de bem-estar máximo) e o imperativo categórico de Kant, pelo qual as pessoas devem praticar o que acreditam ser o melhor também para a humanidade. “Nós somos sempre solidários ou levamos em conta nosso bem-estar em primeiro lugar?”, pondera.

Edna também destaca o recorte racial da história. “Todos nós já cometemos algo ilícito, desde desvios administrativos até penais. Mas há uma seletividade do sistema, que volta os olhos para os negros. É preciso questionar quem faz essa seleção. É apenas a polícia e o judiciário ou a sociedade como um todo?”

Abuso de poder

Fátima é presa por um crime que não cometeu. Truculento, o policial que se muda para a casa ao lado se impõe por conta de seu cargo, até chegar ao ponto de armar para que a vizinha seja presa. A história expõe como funciona o abuso de poder. “Ele faz uso da força institucional para fins privados”, avalia Vera.

Outro aspecto da prisão injusta de Fátima é o que praticamente ignora o princípio básico da presunção da inocência, que faz com que se investigue um crime à exaustão para que justamente não se condene alguém que não o cometeu. “Uma condenação como a da ficção mostra duas coisas: a fragilidade do sistema de justiça e que essa decisão pode ser revertida, a partir do momento em que se mostrar que essas provas foram forjadas”, afirma Vera.

A força policial é necessária para a estruturação do Estado, acredita Edna. “Mas é preciso ser vinculada a um princípio ético e romper com a cultura dentro das corporações que está indo para a sociedade: a que entende que violência se combate com violência”, completa.

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