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Michael B. Jordan representa o advogado Bryan Stevenson em “Luta por Justiça”.
Michael B. Jordan representa o advogado Bryan Stevenson em “Luta por Justiça”.| Foto: WARNER BROS. / Divulgação

Não é raro, em filmes inspirados em acontecimentos reais, ver diretores pesando a mão para criar metáforas e discursos onde a história original não comportava. Transformar o personagem de Matthew McConaughey em Clube de Compras Dallas, que era bissexual assumido, em um cowboy homofóbico foi uma maneira de sublinhar o machismo segregacionista em relação aos portadores de HIV, por exemplo. Por isso Luta por Justiça, estreia desta semana em todo o Brasil, é tão curioso. O diretor e roteirista Destin Daniel Cretton sequer precisou alterar os fatos para criar significados cinematográficos. Eles estavam lá de saída.

Luta por Justiça conta a história de Bryan Stevenson, papel de Michael B. Jordan. No final dos anos 80 ele é um advogado recém-saído de Harvard que, ao invés de aceitar salários milionários de renomados escritórios de advocacia, decide abrir uma ONG dedicada a prover a defesa e aconselhamento jurídico para condenados ao corredor da morte no estado do Alabama. A maioria dos presos que aguardam apenas a data de execução ser marcada, já sem esperanças de reversão, é negra. Ao longo do filme somos apresentados a vários deles, mas a história que serve como guia é a de Walter “Johnny D” McMillian, vivido na trama por Jamie Foxx.

A ironia metafórica que Cretton faz questão de escancarar é que o caso de McMillian aconteceu no condado de Monroe, no Alabama, terra natal de Harper Lee, a escritora de O Sol É Para Todos. Mais de uma vez Stevenson recebe a recomendação de ir visitar o museu dedicado à autora e sua obra. No livro – e subsequente filme de mesmo nome, dirigido por Robert Mulligan em 1962 – Lee ficcionaliza passagens de sua infância em que apresenta a história do seu pai, o advogado Atticus Finch (vivido no filme pelo inesquecível Gregory Peck). Ele defende um jovem negro acusado de estuprar uma garota branca. Se condenado, ele pode perder sua vida.

O Sol É Para Todos, filme e livro, é uma narrativa de época, contando uma história que se passou nos entreguerras, durante a depressão dos anos 30. Com a angústia econômica servindo de desculpa para o sanguinário racismo estrutural, o homem negro é culpado por princípio. Quase meio século depois, passando pelas lutas pelos direitos civis dos anos 60, um homem negro continua culpado por princípio. Só que agora a população do Alabama usa a história de Lee como uma salvaguarda moral. É como se todo o estado pensasse estar livre do racismo por lá ser a terra natal de Atticus Finch. Como quem diz “não sou racista, olha aqui meu amigo negro”.

O Alabama oitentista criado por Cretton parece em parte suspenso no tempo em relação ao filme de Mulligan. Com a diferença de que ali, naquele tempo e lugar específico, havia uma certa vergonha de assumir o racismo. Eles são, afinal, o estado de Atticus Finch. Não escapa ao diretor, porém, que o juiz que condena McMillian durante o preâmbulo da trama se chama Robert E. Lee, batizado em homenagem ao comandante do exército confederado, que lutou pela manutenção do sistema escravocrata. Cretton deixa pouco para o acaso.

Michael B. Jordan

Apesar de ser essencialmente um drama de tribunal, um tipo de filme que costuma dar mais atenção para os diálogos potentes – isso desde antes do discurso de Atticus Finch em um tribunal lotado –, Luta por Justiça é muito calcado nas imagens. Logo no começo, quando ainda está apresentando a situação para o espectador, há a cena do momento da prisão de McMillian. Ele é parado numa blitz. O medo é patente em seu olhar. Sem nem pensar duas vezes ele coloca as mãos por sobre o volante, demonstrando estar desarmado. A câmera acompanha o movimento das mãos, sabendo como isso ressoa com qualquer pessoa não-branca parada pela polícia. Esse sentimento de terror permeia todas as cenas do filme.

Luta por Justiça não é mais um filme sobre um advogado idealista que assume uma causa perdida, como Tempo de Matar ou mesmo O Sol É Para Todos, narrativas calcadas no mito do salvador branco. Não apenas pelo advogado em questão também ser negro, mas também pelo diretor. Cretton é havaiano de mãe nipo-americana e pai irlandês e, portanto, não é visto como branco pela sociedade em que vive. Ele permeia o filme com imagens que demonstram o racismo estrutural por perceber o mundo dessa forma. Por isso suas imagens vão das mais ou menos sutis, como a bandeira confederada em uma parede do bar onde o promotor toma sua cerveja, até as mais escancaradas, como Stevenson sendo obrigado a passar pela revista íntima ao entrar na prisão.

Se as imagens criam relações de sentido com rimas visuais – como quando Stevenson é parado pela polícia, mais ou menos como McMillian foi também –, é o trabalho de Michael B. Jordan que imprime o peso emocional que a cena demanda. Tanto na sequência em que ele é obrigado a ser revistado como na parada, Jordan é capaz de demonstrar toda a frustração e impotência que sente, sem nunca recorrer ao expediente do exagero. Seus olhos se enchem de água e a respiração se torna ofegante. Ele, um homem orgulhoso que estudou em Harvard (em sua primeira cena ele usa um moletom da universidade americana), não consegue esconder a frustração e humilhação que sente.

Cretton capta as micro expressões de Jordan e usa como arma no filme. Ao invés de fazer os violinos subirem e criar uma sequência emocionante em que Stevenson recebe uma iluminação divina que o permite defender seu cliente, Luta por Justiça demonstra como o abuso sistemático apenas reforça a determinação do advogado em fazer o que é certo. A fé inabalável do personagem na justiça e na lei o movem e sua única esperança é conseguir despertar esse mesmo ideário em seus antagonistas. É ainda mais potente considerando que o filme se recusa a criar caricaturas racistas na construção dos opositores legais. Mesmo um dos guardas da prisão, com poucas cenas, ganha um arco dramático complexo.

Elenco coeso

Jordan não é o único destaque entre o elenco, todavia. Todo o grupo de atores é impressionantemente coeso. Desde Foxx, que cria um McMillian complexo no balanço de seus defeitos e qualidades, até seus vizinhos de cela, que também estão no corredor da morte aguardando a data da execução (vividos por O'Shea Jackson Jr. e Rob Morgan). Brie Larson, antiga colaboradora de Cretton, estrela de seus últimos filmes, os ótimos Temporário 12 e O Castelo de Vidro, vive uma colaboradora idealista que embarca de primeira na ideia de criar a ONG idealizada por Stevenson. É curioso ver uma atriz de seu quilate, já vencedora do Oscar e estrela da Marvel, se permitir ficar em um papel secundário em um projeto como esse.

Como se esse grupo de atores, com espaço para desenvolver seus personagens, fossem pouco, Cretton ainda entrega de brinde Tim Blake Nelson. Em Luta por Justiça ele interpreta a dúbia testemunha-chave cujas declarações colocam McMillian no corredor da morte. Nelson vem em uma sequência impressionante de papéis, desde o cantante cowboy que abre A Balada de Buster Scruggs, dos irmãos Coen, até o policial-herói mascarado Looking Glass de Watchmen, a série da HBO. Aqui, toda sua habilidade em mergulhar em personagens absolutamente estranhos e, ainda assim, lhe conferir credibilidade, é usada em sua máxima potência.

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