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Cena do filme ‘A Mula’
Cena do filme ‘A Mula’| Foto:

*Este texto contém spoilers

No Ocidente, a velhice é muitas vezes associada à sabedoria. Imaginamos e representamos os nossos filósofos e cientistas como anciões de barba e cabelos brancos, sapientes após décadas de experiências e estudo. Por outro lado, ela também está ligada à decrepitude, condição em que a beleza física e astúcia mental são substituídas por um reflexo pálido e apagado no espelho. Em um implacável poema intitulado “Envelhecer”, Matthew Arnold descreve essa fase da vida de diversas maneiras, todas estarrecedoras. Para o poeta, o envelhecimento é um longo e doloroso processo em que nos sentimos como se fôssemos apenas os fantasmas de nós mesmos.

No entanto, para Clint Eastwood e, principalmente, para Earl Stone (a personagem real interpretada pelo próprio diretor), a velhice não está, inicialmente, relacionada a nenhuma das duas coisas.

Nossas Convicções: O valor da família

Em “A Mula”, filme que conta a inacreditável história do nonagenário que transportou, durante meses, vários pacotes de drogas pelas estradas norte-americanas, não vemos um idoso consciente das consequências dos seus atos ou caduco e incapaz de realizar atividades físicas. Pelo contrário, Stone é um homem que continua cometendo os mesmos erros do passado e que dirige e se diverte assim como fazia na juventude. O passar dos anos não lhe trouxeram nada senão a repetição de velhos gestos.

A bem da verdade, esse assunto já foi trabalhado por Eastwood de jeitos diferentes. “Cowboys do Espaço”, por exemplo, apesar de ter a leveza e o bom humor de “A Mula”, abre espaço para um heroísmo que não tem lugar na história do seu novo filme.

Já nos casos de “Os Imperdoáveis” e “Gran Torino”, há protagonistas similares que, ou tentando fugir de um comportamento prévio, ou incorrendo em equívocos já conhecidos, fazem do seu presente um eco do passado e não a evolução ou decadência de um estágio anterior.

Porém, se nesses dois longas, a redenção vem na forma de confrontos sanguinolentos, na história de Stone a catarse não ocorre através de embates grandiosos ou muito violentos. No fim das contas, os últimos anos de vida se apresentam como a oportunidade de um recomeço. Sim, há em “A Mula” (eu disse que este texto teria spoilers) uma situação (a doença terminal de sua ex-esposa, interpretada brilhantemente por Dianne Wiest) que dá ao protagonista a sabedoria de fazer, talvez pela primeira vez, a coisa certa, corrigir as falhas e pagar por seus pecados.

Entretanto, é importante dizer que a mudança da personagem não nasce diretamente da sua idade e sim de um enfrentamento com a morte (tanto a sua quanto a da sua antiga companheira), o qual acaba colocando tudo numa perspectiva diferente, em que aquilo que parecia vital rapidamente se torna supérfluo e o que foi negligenciado ao longo dos anos, essencial.

Aliás, essa confrontação com o fim, assim como a morte em si, são elementos recorrentes na obra de Eastwood, mas se elas geraram confusão em longas como “Sobre Meninos e Lobos”, no novo filme, trazem esclarecimento.

Assim, não é necessariamente a velhice que origina o recomeço, ela é a circunstância — mesmo que improvável — na qual a transformação acontece. E no que consiste essa transformação?

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“A Mula” começa com planos elegantes e ensolarados de um jardim. Dois motivos justificam esse início: o protagonista dedicou a vida à horticultura e, como é dito em certo momento da história, ele é igual a uma flor que demorou para desabrochar. Nessa relação entre a metáfora e um dado concreto, existe uma conexão sutil.

Como vamos descobrindo durante a narrativa, o principal erro de Earl foi ter vivido exclusivamente em função da sua profissão e deixado a família em segundo plano. Nas datas e momentos importantes, ele nunca esteve presente. Por causa do trabalho, teve de viajar muito e passou a maior parte do tempo longe de casa e dos familiares. Por consequência, a sua relação com a esposa e a filha se deteriorou, a ponto de a última sequer conversar com ele. A única que ainda o vê com bons olhos é a neta e somente porque ela ainda é muito jovem e não sofreu com a sua ausência como os demais membros.

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Quando o filme começa, descobrimos que, embora essa negligência lhe cause um pequeno desconforto, ela não é suficiente pra inspirar mudança alguma. São, inclusive, nas cenas seguintes que ocorrem as infames viagens de carro pra transportar as drogas, escolha que o transforma em um criminoso.

É apenas ao saber que a ex-esposa está morrendo que Earl decide colocar a família acima do trabalho. Essa decisão, inclusive, acaba pondo a sua própria vida em risco, mas o perigo de perdê-la parece reafirmar a sua decisão.

A defrontação com a morte e o olhar retrospectivo diante do fim rearranjam toda a existência de Earl e possibilitam um renascimento espiritual e até social, uma vez que o seu encarceramento o tira da vida criminosa e o põe numa espécie de purgatório, onde cumprirá a pena estipulada.

No plano final, há novamente a imagem de um jardim. Agora, a flor desabrochou e houve um reconhecimento do papel central que a família exerce na vida de qualquer um, pois não é só a negligência da personagem principal que está em jogo, mas também a do policial que o persegue, que, vivido por Bradley Cooper, deixa cada vez mais de lado a esposa. Apesar de velho e viúvo, Earl ainda poderá correr atrás de uma parcela do tempo perdido e remendar as coisas com a filha.

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Inegavelmente, há outras coisas acontecendo em “A Mula”. São abordadas as mudanças na cultura norte-americana, existe todo um trabalho com a figura de Eastwood e o que ela representa no cinema dos Estados Unidos, além de um cenário repleto de conflitos de gerações.

Entretanto, acima disso tudo, paira a ideia de que até numa idade avançadíssima é possível recomeçar e perceber que a família sempre está no centro de tudo.

Essa percepção, por sinal, é cara a Eastwood e marcou presença em boa parte da sua obra. No novo longa, feito também já na velhice de Eastwood, depois de ele ter tido todas as chances de confirmá-la ou refutá-la, isso não é diferente.

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