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Dentre as muitas adaptações do martírio de Jesus para as telas, Ressurreição, disponível na Netflix, destaca-se por uma escolha ousada: a narrativa abandona a perspectiva tradicional dos discípulos ou da fé cristã e adota o olhar cético de Clavius (Joseph Fiennes), um tribuno romano. Dirigido por Kevin Reynolds, o drama combina ação e ficção histórica, explorando de forma criativa o contexto religioso para oferecer uma visão original e profundamente pessoal de um dos acontecimentos mais marcantes da história.
Sem conhecer as profecias do Antigo Testamento ou os inúmeros milagres que poderiam guiá-lo, Clavius representa o homem comum, moldado pelo seu tempo, com a missão de desvendar o misterioso sumiço do corpo do nazareno. Nesse cenário de estranhamento e perplexidade, o filme constrói sua narrativa e, por alguns instantes, alcança algo raro: faz o espectador sentir o impacto do inusitado e do sobrenatural em primeira pessoa, como quem contempla a verdade pela primeira vez.
Um estranho no Mistério da Cruz
O cargo de tribuno militar romano, no caso de Clavius, equivale ao de um funcionário público da Roma antiga. Ambicioso e dedicado incansavelmente ao trabalho, ele é encarregado de supervisionar a crucificação de Jesus Cristo e garantir que o corpo seja colocado no túmulo, devidamente selado, para evitar qualquer tentativa de roubo.
Os sacerdotes judeus, preocupados com rumores de que os seguidores de Jesus poderiam levar o corpo, alertam sobre essa possibilidade. Assim, Clavius ordena que guardas vigiem o local dia e noite.
Aqui, vale uma observação importante: no filme, os guardas aparecem embriagados, sugerindo que poderiam ter dormido durante o turno. Essa adaptação sutil alinha-se à narrativa bíblica, mas com uma nuance. Nos Evangelhos, não há menção explícita de que os guardas romanos tenham dormido. Porém, após a ressurreição, os sacerdotes subornam os soldados para espalharem a história de que adormeceram e que, nesse intervalo, os discípulos roubaram o corpo.
Essa mentira, segundo a Bíblia, foi criada para desacreditar a ressurreição e proteger os guardas de punições severas, já que dormir em serviço era uma infração grave para soldados romanos, passível até de morte.
Embora esse detalhe possa gerar alguma confusão, a trama segue interessante. Quando o corpo desaparece misteriosamente, o governador romano Pilatos (interpretado por Peter Firth) ordena uma investigação imediata. A partir daí, Clavius mergulha em uma busca incansável por respostas, seguindo pistas, interrogando testemunhas e confrontando os próprios discípulos de Jesus.
A virada definitiva ocorre quando ele reencontra Jesus Cristo vivo. Os olhos que viu se fecharem no Calvário agora estão diante dele, abertos, serenos e sorrindo. A força dessa cena reside justamente em sua simplicidade brutal. Clavius não debate dogmas nem faz questionamentos profundos. Ele simplesmente vê — e isso basta.
Quando o impossível se revela
Algumas cenas reforçam a grandiosidade dos acontecimentos e convidam à reflexão. O encontro de Jesus com Tomé, o apóstolo que duvida, é um paralelo perfeito para a jornada de Clavius. Quando Tomé entra no recinto onde Jesus está e pede para tocar suas feridas, a semelhança com o tribuno romano é inevitável. Tomé conviveu com Cristo, ouviu seus ensinamentos, testemunhou milagres — e ainda assim hesitou.
Clavius, por outro lado, nada sabe, mas tudo vê. Nesse sentido, Jesus não se oculta do tribuno; pelo contrário, permite que ele o conheça. Essa dinâmica oferece uma reflexão poderosa sobre fé, graça e o privilégio de crer sem precisar ver.
Apesar desses méritos temáticos, o filme desliza em alguns momentos. A tentativa de traduzir tamanha profundidade acaba caindo em diálogos superficiais e gestos exagerados. Faltam explicações teológicas mais robustas, enquanto sobram cenas de apóstolos saltitantes, que transmitem uma religiosidade quase sentimentalóide, como se o cristianismo se resumisse a um entusiasmo emocional, sem a densidade intelectual ou espiritual que o caracteriza.
Sem doutrina, apenas contemplação
Como adaptação cinematográfica, Ressurreição não pretende ser catequética. Seu objetivo não é ensinar doutrina ou oferecer lições morais, mas retratar o impacto humano diante da metafísica da redenção. Nesse aspecto, o filme é bem-sucedido. A narrativa não apela à razão fria, mas ao espanto com o sublime. A fé, aqui, surge como uma reação visceral, mais do que uma decisão amadurecida, o que pode deixar os espectadores mais exigentes com a sensação de que o filme não explorou todo o seu potencial.

O elenco de Ressurreição é um de seus pontos fortes. Além de Joseph Fiennes (famoso pelo filme vencedor do Oscar Shakespeare Apaixonado), que entrega uma atuação comovente ao mostrar a transformação gradual de Clavius, o filme conta com nomes como Cliff Curtis (no papel de Jesus), Tom Felton, Maria Botto e Peter Firth. A encarnação de Jesus feita por Curtis é contida e compassiva, mais próxima do humano do que do divino glorificado. Já a direção de Kevin Reynolds opta por um tom quase investigativo, o que dá ao filme uma estrutura de suspense interessante. Clavius atua como um detetive involuntário da fé, e sua jornada do ceticismo ao deslumbramento dá ritmo ao roteiro.
Em suma, para quem aprecia histórias bem contadas com pano de fundo religioso, Ressurreição é uma boa escolha. A atuação é envolvente, a direção é competente e a proposta narrativa oferece uma nova luz sobre um dos eventos mais importantes da história. Ainda que não alcance toda a profundidade espiritual que poderia, o filme entrega momentos de grande beleza e reflexão. E no fim das contas, ouvir Pedro dizer “Tribuno, tenha fé” nos lembra, com vigor e simplicidade, que há algo eternamente relevante nessa frase — ontem, hoje e sempre.
- Ressurreição
- 2016
- 107 minutos
- Indicado para maiores de 12 anos
- Disponível na Netflix