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O leitor certamente conhece os memes daquele programa culinário de Bela Gil em que a apresentadora propunha trocar proteína animal por proteína vegetal. Por exemplo, consumir quinoa em vez de carne. Só poderia virar piada, é claro. A sua frase “você pode substituir” é o coração do meme, usado nas mais variadas situações e comparativos.
Em se tratando da cena cultural brasileira atual, porém, falta “carne” no mercado e até “quinoa” não se encontra com facilidade. Para o meme funcionar é preciso voltar ao passado, por exemplo, para quando Cartola, aos 66 anos de idade, lançou seu primeiro disco, que fez aniversário de 50 anos meses atrás.
Se o leitor quiser fazer um bem a si, consumindo proteína espiritual, recomendamos escutar os 28 minutos e 13 segundos do álbum que leva no título o apelido de Agenor de Oliveira (registrado como Angenor), que lhe foi dado quando tinha em torno de 15 anos e trabalhava como pedreiro. Para que o cimento não lhe caísse sobre os cabelos, trabalhava usando um chapéu-coco, que os colegas diziam parecer mais uma cartolinha. Tornou-se, assim, o Cartola.
Naquela época já havia substituído a vida pela boemia, perdendo-se nela, contraindo doenças venéreas, padecendo todo tipo de privação em vários momentos de sua existência. Chegou a ser dado por morto, inclusive, tendo até sambas lhe homenageando na década de 1950, quando havia sumido do morro da Mangueira e só foi ser resgatado (e resgate é a palavra precisa aqui) por Dona Zica, que o encontrou desdentado, vivendo de biscates e entregue ao álcool.
O fundador da Mangueira em 1928, quem escolheu as cores da escola e compôs vários de seus sambas-enredo, voltava para casa. Se na década de 1930 teve vários de seus sambas gravados por grandes cantores da época, como Sílvio Caldas, Francisco Alves, Mário Reis e Aracy de Almeida, na década de 1960 voltou a ser gravado por novos nomes, como Nara Leão, Elza Soares e Paulinho da Viola.
Assustadoramente simples
Mas foi somente em 1974, prestes a completar 66 anos de idade, que gravou seu primeiro disco, incluindo várias das canções compostas naqueles 40 anos anteriores. Nelson Motta, então escrevendo para O Globo, descreveu o disco como sendo “assustadoramente simples”. O que é verdade, a começar pela gravação, feita em apenas quatro sessões, com os músicos tocando juntos como se fosse uma roda de samba. E é para uma roda de samba das antigas que o ouvinte é transportado ao escutar o disco.
Mas a simplicidade que mais espanta é a de Cartola, revelando-se um grande cantor, dando ao lirismo das letras uma voz de serenidade impressionante, transfigurando o peso das culpas e tristezas – cantadas em Disfarça e Chora, Acontece, Tive Sim, Quem Me Vê Sorrindo e Amor Proibido – no perdão, esperança e alegria de Sim, Corra e Olhe o Céu, O Sol Nascerá, Alvorada, Festa da Vinda e Alegria.

O símbolo maior do disco é o da aurora, da alvorada, que sempre volta a acontecer, mesmo no ocaso da vida, como para Cartola, cujo retorno começou quando Dona Zica lhe resgatou, a quem canta vários dos versos do disco, como este, de Alvorada: “Você também me lembra a alvorada/ Quando chega iluminando/ Meus caminhos tão sem vida/ E o que me resta é bem pouco/ Quase nada, de que ir assim/ Vagando numa estrada perdida”.
Se o leitor escutar com a devida atenção o disco, também em si poderá sentir a alvorada, com o sol nascendo dentro da alma. Eis, aliás, boa sugestão para o Carnaval que se avizinha, especialmente para quem será obrigado a escutar nas areias das praias músicas de um Oruam ou uma Anitta. Ainda assim, confie, sempre será possível substituir a raiva pela serenidade de Disfarça e Chora.