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Permitam-me contar uma história, uma versão meio futurista de Os Fan­­­­tasmas de Scrooge, de Charles Dickens. Ela começa com uma notícia triste: o jovem Timothy Cratchit, também conhecido como o Pequeno Tim, está doente e o seu tratamento vai custar muito mais do que os seus pais podem desembolsar. Ainda bem que nossa história se passa em 2014, e os Cratchits têm um plano de saúde. Não que ele tenha sido pago pelo seu patrão: Ebenezer Scrooge não concede benefícios a funcionários. Pou­­cos anos antes, eles nem poderiam contratar um seguro por conta própria, afinal o Pequeno Tim tem uma doença preexistente e, com isso, o valor cobrado estaria fora do alcance da família.

A reforma na lei, em vigor a partir de 2010, acaba com a discriminação baseada em histórico médico e também cria um sistema de subsídios que ajuda as famílias a arcar com os custos de sua cobertura. Ainda assim, o seguro não sai barato – mas ao menos os Cratchits têm um plano e são muito gratos por esse fato. Deus nos abençoe a todos.

Sim, isso é ficção, mas haverá milhões de histórias reais similares no decorrer dos próximos anos. Imperfeita como é, a proposta aprovada pelo Senado norte-americano na última quinta-feira, e cuja versão minimamente modificada vai provavelmente virar lei, tornará os Estados Unidos um país muito melhor. Então por que tantas pessoas estão reclamando?

Há três grupos principais de críticos. Primeiro, existe a direita maluca, o movimento anti-impostos e o pessoal que acredita nos painéis da morte – um pessoal que ficava à margem do sistema político, mas que entrou no coração do Partido Repu­­blicano. No passado havia um entendimento geral, uma espécie de cláusula implícita nas re­­gras da política norte-americana, de que os grandes partidos deveriam pelo menos fingir que mantinham um certo distanciamento de extremistas irracionais. Porém essas regras não são válidas hoje em dia. Não, Virgínia, no atual estágio não há mais cláusula de sanidade.

Uma segunda corrente de oposição vem daquilo que eu chamo de "facção ‘Bah, que embuste’": rabugentos guar­­diães fiscais que volta e meia lançam avisos sentenciosos sobre a dívida crescente. Na verdade, essa facção deveria gostar do projeto recém-saído do Senado, ao qual a Comissão de Orça­­mento do Congresso atribui uma futura redução no déficit, e que – no entendimento dos melhores economistas da área de saúde – controla os gastos do setor de modo muito mais eficiente do que tentativas passadas.

Apesar disso, com poucas exceções, os rabugentos fiscais não têm nada de bom a dizer sobre o projeto. No processo, deixam escapar que sua preocupação com o déficit no fim das contas é um, digamos, embuste. Como diz Daniel Gross, da revista Slate, o que realmente os motiva é "o medo pavoroso de que alguém, em algum lugar, está recebendo seguro social".

Por fim, há a oposição de alguns progressistas que estão descontentes por causa das limitações da proposta. Alguns não aceitam nada menos do que um sistema do tipo Me­­dicare, sustentado por uma fonte única de recursos. Outros sonhavam com o surgimento de um serviço público que viesse competir com as seguradoras privadas. E existem reclamações de que os subsídios são inadequados, de que muitas famílias continuarão tendo problemas para ter assistência médica. Diferentemente da turma anti-imposto e dos embusteiros, os progressistas desapontados têm queixas válidas. Mas elas não justificam uma rejeição à proposta. Com o perdão da frase feita, política é a arte do possível.

A verdade é que não há maioria no Congresso para apoiar algo parecido com um sistema único. Existe uma maioria apertada em favor de um plano que tenha uma participação estatal moderadamente forte. A Câmara aprovou esse plano. No Senado são necessários 60 votos para aprovar quase tudo. Esse fato, combinado com a oposição dos republicanos, impôs limitações agudas ao projeto.

Se os progressistas querem mais, eles terão de priorizar a mudança de regras nos trâmites do Senado. Também deverão trabalhar para eleger mais re­­presentantes progressistas no longo prazo. Enquanto isso, a pro­­posta aprovada pelo Senado, com alguns incrementos, é basicamente aquilo que a liderança democrata pode conquistar.

Com todas as suas falhas e limitações, a reforma é uma grande conquista. Ela irá oferecer ajuda real e concreta a dezenas de milhões de norte-americanos, e mais segurança a toda a população do país. Além disso, a nova lei vai estabelecer o princípio de que todas as pessoas devem ter uma assistência básica de saúde.

Muitas pessoas são responsáveis por esse momento. O que tornou a reforma possível foi a emergência notável que os democratas impuseram ao tema durante as primárias de 2007 e 2008 – uma atitude que, por sua vez, deve bastante ao ativismo progressista. Ape­­nas como registro, o projeto aprovado é mais próximo do plano de Hillary Clinton do que aquele apresentado por Barack Obama. Isso fez da reforma do sistema de saúde algo inescapável para o presidente que viria a assumir. É o que está acontecendo.

Dito isso, os progressistas não devem parar de reclamar, mas precisam dar os parabéns a si mesmos pela grande vitória – para eles e para os EUA.

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