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Em uma recente reunião em alguma prefeitura dos EUA, um homem se levantou e disse ao congressista Bob Inglis: "tire suas mãos governamentais do meu Medicare!". O político, um republicano da Carolina do Sul, tentou explicar que o Medicare já era um programa do governo, mas o eleitor, de acordo com Inglis, "não terá acesso algum a ele".

É uma história engraçada, mas ilustra o quão alto a reforma no sistema de saúde nos EUA tem de escalar no muro da desinformação. Não é que muitos americanos não entendam o que o presidente Barack Obama está propondo; o que muitas pessoas não entendem é como funciona o sistema de saúde norte-americano. Elas não conseguem compreender, em especial, que envolver o governo nos serviços de saúde não seria um passo radical: o governo já está envolvido profundamente, mesmo em planos e seguros particulares. E o envolvimento do governo é a razão pela qual o sistema funciona.

A coisa mais importante que é preciso saber sobre o sistema de saúde é que ele depende crucialmente de um seguro. Ninguém sabe se ou quando irá precisar de tratamento, mas caso precise, o tratamento pode ser extremamente caro, com preços bem além dos quais os reles mortais conseguem pagar do próprio bolso. Um marcapasso, por exemplo, não é algo rotineiro e representa bem o que é completamente imprevisível e sai caro, tornando o seguro essencial.

Os mercados privados de seguros de saúde funcionam muito mal nos EUA: as seguradoras negam o maior número de sinistros possível, além de fugir de pessoas que são mais suscetíveis a tratamentos médicos. Verdadeiras histórias de horror aparecem aos borbotões: seguradoras se recusando a pagar uma cirurgia de emergência em um paciente com câncer alegando que o mesmo não havia respondido todas as questões sobre seu tratamento de acne; uma mulher jovem e sadia que teve seu seguro cancelado por ter ido ao psicólogo uma vez após ter rompido o relacionamento com seu namorado; e por aí vai.

Os esforços das seguradoras para evitar "prejuízos médicos", jargão da indústria de seguros para pagar as despesas com o tratamento dos pacientes, vão muito além. Elas gastam muito dinheiro não em tratamentos médicos, mas no processo de captação de segurados – fazendo uma avaliação prévia de pessoas que podem vir a usar o seguro. No mercado dos seguros para indivíduos, onde as pessoas compram o seguro diretamente em vez de contratá-lo por meio de seus empregadores, as companhias gastam tanto com esse tipo de despesa que só 70 centavos de cada dólar pago pelo segurado são usados em tratamentos médicos.

Mesmo assim, a maioria dos americanos conta com seguro de saúde e está satisfeita com ele. Como isso é possível, visto o sistema funcionar tão mal? A resposta é: intervenção do governo.

O governo fornece seguro diretamente através do Medicare e outros programas. Antes de o Me­di­care ser criado, mais de 40% dos americanos em melhor idade não possuíam qualquer tipo de cobertura assistencial de saúde. Atualmente, o Medicare – que é, a propósito, um dos maiores "pagadores individuais" que os conservadores adoram demonizar – cobre os gastos de qualquer pessoa acima dos 65 anos de idade. Pesquisas comprovam que os beneficiários do Medicare estão muito mais satisfeitos com a cobertura que o sistema lhes oferece do que outros americanos com seguros particulares.

Mesmo assim, a maioria dos americanos com menos de 65 anos possuem alguma espécie de seguro particular. A vasta maioria, entretanto, não o adquiriu diretamente, mas sim através de seus empregadores. Existe uma grande vantagem fiscal em se fazer isto, uma vez que as contribuições do empregador ao sistema (seguro) de saúde não geram imposto de renda. Porém, para se valer dessa vantagem fiscal os empregadores necessitam seguir uma série de regras; a grosso modo, eles não podem discriminar funcionários com base em condições pré-existentes de saúde ou restringir os benefícios a funcionários com altos salários.

Os seguros contratados através dos empregadores funcionam "mais ou menos" graças a essas regras, pelo menos no que se refere às histórias de horror contadas acima serem bem menos comuns do que no mercado de seguros individuais.

Resumindo: o americano quem, atualmente, possui um seguro de saúde decente deve agradecer ao governo. É bem verdade que se você é jovem e saudável, com nada em sua ficha médica que acenda uma luz vermelha na cabeça de contadores corporativos, você pode até conseguir um seguro de saúde sem a intervenção do governo. Entretanto, o tempo e a sorte afetam a todos nós, e o único motivo pelo qual você possui um prospecto razoável de ainda ter cobertura do seu seguro de saúde quando precisar se deve a um papel que o governo já realiza. Isto é o que nos remete ao debate atual sobre a reforma do sistema de saúde dos EUA.

Os oponentes da reforma querem que você veja Obama como um socialista ensandecido, atacando o mercado livre. Mercados desregulados, entretanto, não funcionam para sistemas de saúde – nunca funcionaram e nunca irão. Só temos um sistema de saúde operante hoje em dia devido às coberturas que o governo oferece aos mais velhos, enquanto uma combinação de regulamentos e subsídios fiscais que possibilitam para muitos americanos não-idosos, mas não todos, terem acesso a uma cobertura privada decente.

Obama propõe agora que se utilizem regulamentos e subsídios adicionais para disponibilizar um seguro decente a todos nós. Isto não é radical; é tão americano quanto, bem, o velho Medicare.

Paul Krugman, Nobel de Economia de 2008 e professor da Universidade de Princeton, escreve às segundas-feiras neste espaço.

Tradução: Thiago Ferreira

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