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Falta de saneamento é problema principalmente nas áreas urbanas
Marco Legal do Saneamento prevê garantir que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto até o ano de 2033.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

Os decretos assinados no início do mês pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para alterar regras do marco legal do saneamento básico fazem o país retroceder ao quadro de ineficiência no setor anterior à nova legislação.

A opinião é compartilhada por entidades e especialistas na área, que consideram que, com isso, ficam inviabilizadas as metas de universalização dos serviços de tratamento de água e esgotamento sanitário, que têm prazo até 2033 para serem cumpridas.

Sancionado em julho de 2020, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o marco do saneamento trouxe estímulos à concorrência no mercado de coleta e tratamento de esgoto e de fornecimento de água potável.

Entre as principais mudanças, a nova lei passou a permitir que, em caso de privatização de uma empresa estatal do setor, os contratos vigentes fossem mantidos sob a responsabilidade do operador vencedor do leilão. Também ficou vedada a assinatura de novos contratos sem licitação entre municípios e estatais de saneamento.

O objetivo era dar maior segurança jurídica para empresas privadas prestarem os serviços e ampliar a concorrência do mercado. Outra inovação foi o estímulo ao atendimento regionalizado, por meio de contratos com blocos de municípios, favorecendo localidades menos atraentes para investimentos.

Junto com a nova legislação, foi estabelecida uma meta de universalização dos serviços de saneamento nos próximos dez anos, com atendimento mínimo de 99% da população com fornecimento de água potável, e de acesso a coleta e tratamento de esgoto a pelo menos 90% dos habitantes.

Para garantir a viabilidade do cumprimento das metas, foi instituída também a exigência de comprovação, por parte das empresas contratadas, de capacidade econômico-financeira e de um cronograma para execução das obras.

“Tudo isso, à exceção da possibilidade de privatizar sem que o contrato vigente caia, foi alterado agora com esses decretos [assinados por Lula]”, diz Diogo Mac Cord, que foi secretário nacional de Desenvolvimento de Infraestrutura entre 2019 e 2020. Atual líder de infraestrutura e mercados regulados na América Latina Sul da EY Brasil, Mac Cord atuou diretamente na elaboração do novo marco do saneamento.

Os atos assinados pelo presidente no último dia 5 permitem novamente que estatais estaduais possam atuar em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões sem a necessidade de participação em processo licitatório. Caiu ainda a obrigação de municípios se juntarem em blocos e flexibilizou-se a necessidade de comprovação de capacidade econômico-financeira.

“O que eles fizeram com esses decretos foi voltar ao modelo que já existia”, diz o executivo. “Se você pega a curva histórica de investimento em saneamento básico, vai ver que a gente avançava cerca de 1% ao ano, em atendimento de água e esgoto. Então levaríamos décadas para universalizar no ritmo que depende exclusivamente do recurso público”, conta.

Estatais de saneamento estavam gastando mais com salários do que com investimentos

Um estudo produzido para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra que, no período anterior ao novo marco, a razão entre investimentos e despesas com pessoal caiu consideravelmente em 25 companhias estaduais de saneamento. Em 2010, a relação era de 1,12, enquanto em 2019 estava em 0,52. Ou seja, as estatais estavam destinando menos dinheiro para investimentos e mais para o pagamento de salários.

“Chama atenção as trajetórias dos gastos de pessoal e investimentos nas CESBs, numa aparente inversão de prioridades na alocação dos recursos tarifários”, diz trecho do documento.

Para o economista Claudio Frischtak, sócio fundador da Inter.B Consultoria e um dos consultores do estudo do CNI, os novos decretos são, no mínimo, ambíguos, “pois permitem a formalização instrumentos precários e incompletos”. Segundo ele, o novo marco ainda previa a necessidade de que as estatais ampliassem os investimentos, o que acabou caindo por terra com os atos assinados pelo atual presidente.

A nova legislação aprovada 2020 fez deslanchar o investimento privado no setor. Reportagem da Gazeta do Povo mostrou que, até abril de 2022, foram realizados 16 leilões que abrangeram 217 municípios, alcançando 20 milhões de pessoas. Os contratos preveem investimentos de R$ 46,7 bilhões, além do pagamento de R$ 29,5 bilhões em outorgas.

“Só que de um tempo para cá, quando se começou a falar em voltar atrás em tudo o que o marco definiu, os investimentos pararam”, afirma Mac Cord. “Os governadores passaram a esperar para ver qual seria a nova sinalização”.

Oposição tenta derrubar decretos de Lula sobre saneamento na Justiça e no Congresso

No dia seguinte à assinatura dos decretos pelo presidente, o partido Novo ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão dos decretos. Quem também pediu a suspensão à Corte foi o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), na semana passada.

No Congresso, foram apresentados até agora três Projetos de Decreto Legislativo (PDL) que visam derrubar as iniciativas de Lula e que podem tramitar de forma agregada.

“O clima na Câmara não é de satisfação e a possibilidade de se votar um PDL existe. Mas, sempre antes de levar um PDL adiante, tenho por hábito exaurir a discussão ao máximo, para que o governo possa rever os exageros”, disse o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, no domingo (16).

Mudança no marco legal deve retardar universalização do saneamento

Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário. À época da discussão do novo marco do saneamento, o prazo para a universalização foi estendido para 2033 porque se considerava que o intervalo de tempo até o fim da década era muito curto para o cumprimento da meta.

“A gente já está parado há quase um ano por causa dessa rediscussão das regras. Se a gente revogar esses decretos e voltar ao que já tinha sido definido, ainda podemos pensar nesse prazo de 2033. Mas se continuarmos insistindo nessa discussão, trazendo essa insegurança jurídica enorme para o setor, vamos ter que mudar essa meta”, diz o executivo da EY Brasil.

A Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) divulgou nota em que afirma que os decretos de Lula “muito provavelmente” podem retardar o alcance da universalização dos serviços.

Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) apontam que a ausência de água tratada ainda atinge quase 35 milhões de pessoas, e que cerca de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto. Além disso, somente 50% do volume coletado é tratado. Segundo o Instituto Trata Brasil, o equivalente a 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento é despejado na natureza todos os dias.

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