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Dívidas das famílias são um desafio para o crescimento econômico brasileiro de 2023 em diante. Na campanha, Lula prometeu programa de renegociação.
Dívidas das famílias são um desafio para o crescimento econômico brasileiro de 2023 em diante. Na campanha, Lula prometeu programa de renegociação.| Foto: Pexels

O endividamento das famílias, num contexto de inflação acima da meta e juros que tendem a permanecer altos no ano todo, é um obstáculo a mais para o crescimento da economia brasileira em 2023.

O número de inadimplentes bateu recorde em novembro e, embora tenha recuado ligeiramente no mês seguinte, ainda é preocupante. Enquanto isso, a taxa básica de juros (Selic) está no maior nível dos últimos seis anos e é apontada como uma das causas da desaceleração da economia.

Após uma expansão estimada em cerca de 3% em 2022, as projeções sugerem que o Produto Interno Bruto (PIB) vai crescer apenas 0,8% neste ano, segundo a mediana das expectativas dos economistas consultados pelo Banco Central. Ou seja: emprego e renda devem crescer muito pouco, o que significa mais dificuldade para quitar dívidas.

Esse efeito dos juros sobre o PIB tem levado o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a fazer seguidas críticas às metas de inflação – que na visão dele estão muito baixas e forçam o BC a manter os juros mais altos – e à independência formal da autoridade monetária.

Após sua primeira reunião do ano, quando manteve a Selic em 13,75%, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central soltou um comunicado que, na interpretação de grande parte do mercado financeiro, indicou chances cada vez menores de uma queda dos juros ainda em 2023.

Até outubro, economistas acreditavam que o BC começaria a cortar a Selic em meados de 2023, levando-a para 11,25% até dezembro. Essa aposta subiu para 12,5% mais recentemente, e possivelmente ficará ainda maior nas próximas divulgações.

Na campanha eleitoral, Lula prometeu implantar um programa de renegociação de dívidas voltado às famílias mais pobres, chamado "Desenrola Brasil". Dias atrás, após reunião com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o formato do programa será apresentado nesta semana a Lula e lançado ainda em fevereiro.

Haddad também contou ter conversado com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o desenvolvimento de uma "agenda rápida de crédito". Segundo o ministro, ela deve envolver o sistema de garantias, a redução do spread bancário (diferença entre o custo de captação dos bancos e o juro que cobram dos clientes) e melhorias no ambiente de concorrência. "A questão do crédito entrou na ordem do dia", disse Haddad.

Renegociação com juro alto leva a "superendividamento persistente", diz FGV

Uma análise do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) aponta para um cenário de "superendividamento persistente" que tende a inibir o consumo – e, consequentemente, o avanço do Produto Interno Bruto (PIB).

Segundo pesquisadores da instituição, empréstimo pessoal, cartão de crédito e cheque especial – modalidades sem garantia e de juros altos – são os principais responsáveis pelo endividamento das famílias de baixa renda.

As taxas de inadimplência de quem ganha até dois salários mínimos ficam entre 10% e 13% nestas modalidades. Essa faixa de renda, que respondeu por 19% dos quase R$ 3 trilhões da carteira de crédito à pessoa física na primeira metade de 2022, foi responsável por 37% dos atrasos de pagamento.

O diretor do Ibre/FGV, Luiz Guilherme Schymura, explica como a alta de juros atinge as famílias endividadas e, mesmo com a intenção de quitar as dívidas, o processo de renegociação é demorado e afeta o potencial de consumo por muito tempo.

“Para o segmento de baixa renda, como apontam os pesquisadores do Ibre, é bastante normal renegociar dívidas, mas agora isso está sendo feito num ambiente de juros muito mais altos, o que deve criar um superendividamento persistente, com efeitos macroeconômicos adversos como, por exemplo, a inibição do consumo”, diz Schymura em artigo.

"As pessoas endividadas deixam de comprar gasolina, deixam de pagar conta de luz e água, e o impacto recai sobre todo tipo de bem de consumo", diz Maria Paula Bertran, professora de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto. "Não vão trocar de celular, não compram móveis novos, estão vendendo o carro e indo de ônibus para o trabalho. Se não se compra carro, a indústria de carros vai demitir, e assim o ciclo vai se desenhando."

O que agrava o cenário é que a maior parte das dívidas das famílias de baixa renda está justamente nas categorias com taxas mais altas de juros. Camila Faiçal Cruz, mestre em Economia e especialista de produto do Serasa, explica que, numa dimensão individual, a falta de informação muitas vezes leva as pessoas a recorrerem a soluções que parecem simples, mas que as colocam em situações de vulnerabilidade e aumentam as dívidas das famílias.

"Quando conversamos com endividados e inadimplentes, o que mais aparece é que eles desconhecem os altos juros por atrasos e se colocam em situações que comprometem o ciclo de economia dos indivíduos", diz Cruz.

Não à toa, o cartão de crédito figura entre as principais fontes de endividamento. Sem pagar, a pessoa fica sem acesso a novas fontes de crédito e a situação tende a se agravar. "Hoje, vemos que o crédito é usado para contas básicas de mercado e gasolina. A partir do momento em que não se consegue pagar essa conta, temos menos crédito sendo concedido, menos oferta e demanda, pessoas compram e consomem menos, empreendem menos. O empreendedor precisa de capital de giro e não tem", acrescenta a especialista do Serasa.

Da perspectiva da macroeconomia, menos consumo e menos dinheiro circulando freiam o crescimento e podem levar a crises econômicas, diz a professora Maria Bertran: “O aumento da dívida das famílias exaure criticamente a capacidade de manterem as suas rotinas de compra. As pessoas não conseguem mais, coletivamente, manter seu padrão de consumo”. Ela observa que alguns pesquisadores da crise de 2008 nos Estados Unidos apontam o endividamento familiar como uma das causas negligenciadas daquela recessão.

Carteira de crédito bateu recorde em 2022. Número de inadimplentes também

O volume total de empréstimos na economia brasileira bateu recorde em 2022. Em dezembro, o saldo da carteira de crédito equivalia a 54,15% do Produto Interno Bruto (PIB), o maior da série histórica do Banco Central, iniciada em 1995.

Após o forte crescimento do ano passado, as concessões de empréstimos devem desacelerar neste ano. A última estimativa de expansão em 2022 feita pela Febraban indicava, após sucessivas revisões para cima, um aumento de 14,8% no mercado de crédito. Para 2023, a expectativa é de expansão de 8,2%. Ainda assim, um índice superior ao observado antes da pandemia – em 2019, o mercado cresceu 6,5%.

A inadimplência das pessoas físicas, enquanto isso, fechou o ano em 3,85% da carteira, segundo o BC, ligeiramente abaixo do patamar de novembro (3,86%). Depois de chegar à casa dos 4% em abril de 2020, o índice de calotes foi diminuindo, chegando a ficar pouco abaixo de 2,9% em meados de 2021. Porém, voltou a subir na sequência. O pior momento da série, iniciada em 2011, foi em meados do ano seguinte, quando a inadimplência chegou a 5,5% da carteira de empréstimos.

Embora o porcentual de inadimplência esteja relativamente longe do pico histórico, o número absoluto de pessoas com pagamentos em atraso está próximo de seus maiores patamares.

O Brasil tinha 69,4 milhões de pessoas inadimplentes em dezembro, quase 43% da população adulta, segundo a Serasa. O número é ligeiramente menor que o de novembro, que foi recorde (69,8 milhões). As principais dívidas eram com cartão de crédito (caso de 28,7% dos inadimplentes), contas básicas como água, luz e gás (22,3%) e varejo (11,5%).

Haddad promete lançar programa de renegociação de dívidas em fevereiro

Nas propostas de governo de alguns candidatos durante as eleições, a renegociação apareceu entre as principais soluções para reduzir o impacto econômico do endividamento da população.

O plano de governo que Lula apresentou na época previa a implementação do programa Desenrola Brasil, com instituição de um fundo de crédito do próprio Estado para viabilizar a renegociação de dívidas de comércio ou contas básicas da casa.

O programa, segundo a campanha, incentivaria credores a oferecer descontos para a quitação das dívidas. Para os débitos com instituições bancárias, haveria renegociação de contas de cartão de crédito, crédito pessoal e cheque especial a partir de um instrumento de depósitos compulsórios do Banco Central.

Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o Desenrola Brasil está sendo discutido com os bancos desde a segunda semana de janeiro e será lançado ainda neste mês.

Para a professora Maria Bertran, a intermediação da renegociação das dívidas de famílias de baixa renda pelo Estado pode contribuir para diminuir a exploração da vulnerabilidade econômica desses grupos por financeiras. Ela recomenda cautela.

“Quando os tomadores aceitam a renegociação, eles fazem um ato jurídico chamado novação, que é um contrato novo. Essa renegociação interrompe todos os prazos prescricionais. Quando as instituições financeiras fazem as ofertas mais agressivas para os inadimplentes? Às vésperas da prescrição. Aí a dívida vai ser quitada pela metade, mas ela aceita isso e vai ser responsável por aquela dívida por outros cinco anos”, observa.

Segundo ela, a educação financeira é um passo importante para que as pessoas tenham mais compreensão de quais contas têm mais impacto sobre o endividamento, mas isso não é suficiente para garantir que fiquem livres de dívidas. “Há um ponto de vista comportamental que vai falar que as pessoas são racionais, mas se comportam achando que o futuro vai ser melhor que o presente. É humano imaginar o otimismo”, diz.

Consequências das dívidas extrapolam a questão econômica

Além do impacto da dívida das famílias sobre o crescimento econômico, com a baixa do potencial de compra e consumo e com a redução da circulação de recursos, os especialistas também apontam para consequências em outros âmbitos sociais. “Pessoas que adoecem, perdem motivação, famílias que baixam muito o padrão de vida; pensando no crédito consignado, idosos que passam a viver com uma fração do que poderiam viver”, lista a professora.

De acordo com a quinta edição da Pesquisa “Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro”, encomendada pela Serasa e produzida pelo Instituto Opinion Box, 83% dos endividados têm dificuldade para dormir por conta das dívidas, 78% têm surtos de pensamentos negativos devido aos débitos vencidos e 74% afirmam ter dificuldade de concentração para realizar tarefas diárias.

“Há um impacto emocional, a ansiedade, a insônia, a confiança em si mesmo, relacionamento com a família, relacionamento conjugal, ou seja, impacta na vida pessoal”, comenta a especialista de Produto do Serasa, Camila Faiçal Cruz.

Por outro lado, há uma expectativa de melhora, tanto por parte de algumas instituições, quanto da própria população. A pesquisa mostra, por exemplo, que 69% dos entrevistados têm confiança de que vão conseguir quitar as dívidas em breve.

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