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As artimanhas usadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para cumprir as metas do arcabouço fiscal abriram um flanco a ser explorado pela oposição. Com a execução de gastos fora do Orçamento da União, chamados de parafiscais, a atual gestão se coloca num terreno perigoso, já frequentado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que sofreu impeachment devido ao que ficou conhecido como “pedaladas fiscais”.
O arranjo atual, embora diferente, cumpre o mesmo objetivo de melhorar artificialmente os números das contas públicas. Na prática, o governo tem implementado políticas públicas por meio de fundos compostos por recursos do Tesouro Nacional que não entram peça orçamentária. Uma dessas iniciativas foi o programa Pé-de-Meia, de auxílio a estudantes (leia mais adiante).
“Isso é preocupante, sem dúvida nenhuma, porque, além de não transitar pelo orçamento, vai criando um orçamento paralelo”, diz Alexandre Andrade, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado.
“Fica difícil até para os analistas, para quem acompanha a execução orçamentária, acompanhar a destinação desses recursos. A prática [de utilização dos fundos] diminui a transparência da execução orçamentária, além de representar gasto que não é contabilizado para efeito fiscal.”
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Recursos dos fundos financiam programas
Tais fundos, que têm servido como instrumento de gestão, foram criados ao longo de décadas por diferentes governos e com finalidades específicas. Na época da pandemia, por exemplo, vários deles serviram para dar garantias a empresas ou setores.
Entre eles estão os fundos garantidores de Operações (FGO) e Investimentos (FGI), criados em 2009, que receberam robustos aportes do governo para financiar o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), o Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (Peac) e o Perse, voltado ao setor de turismo e eventos.
A ideia inicial era que, passada a pandemia, os recursos voltassem para o Tesouro. No governo anterior, de Jair Bolsonaro (PL), uma lei foi aprovada para desvincular os valores para que fossem usados no abatimento da dívida pública.
O governo atual não fez o mesmo e tem brincado de repassar parte dos recursos de um fundo para outro de acordo com a necessidade do momento. Outra parte vem sendo destinada ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiar projetos. “Isso tudo vira demanda”, diz Andrade, da IFI. “Pressiona ainda mais a demanda agregada e a inflação.”
Pé-de-Meia foi visto como "pedalada"
O exemplo mais emblemático de utilização de recursos para política pública à margem do Orçamento é o Programa Pé-de-Meia, relançado recentemente pelo governo. O programa concede bolsas de estudo a estudantes do ensino médio. Foi implantado em 2024 com recursos do Fundo de Custeio da Poupança de Incentivo à Permanência e Conclusão Escolar para Estudantes do Ensino Médio (Fipem), operado pela Caixa.
O Fipem recebeu aportes de R$ 6 bilhões do Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC), um fundo privado, e mais R$ 4 bilhões do Fundo Garantidor de Operações (FGO), operação que não passou pelo Congresso.
Além de ficar de fora da lei orçamentária de 2024, a despesa foi paga antecipadamente em 2023, quando ainda não estava vigorando o arcabouço fiscal. As receitas de 2023 foram postergadas para 2024 para melhorar o resultado e ajudar no cumprimento da meta de 2024. Na prática, o governo deu duas tacadas em uma.
A manobra passou a ser defendida pela oposição como o mais novo motivo para o impeachment do presidente Lula, ganhando a alcunha de novas “pedaladas fiscais”, em referência ao apelido dado aos artifícios contábeis que levaram à deposição de Dilma Rousseff em 2016.
O drible no arcabouço fiscal chamou a atenção do Ministério Público, que acionou o Tribunal de Contas da União (TCU). Em janeiro, o tribunal bloqueou os recursos por não constarem do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2025, que deve ser votada pelo Congresso após o carnaval.
O bloqueio inviabilizaria o pagamento das parcelas aos estudantes já em fevereiro. Atendendo a apelos do Planalto e do Congresso, o TCU voltou atrás da decisão, mas determinou que o governo envie, em até 120 dias, um projeto para incluir o programa no Orçamento. “Nossa avaliação é que isso não vai ser incorporado no orçamento”, diz o diretor da IFI. “Só deve entrar o ano que vem.”
Governo pensou em usar fundos para expansão do Auxílio-Gás
Caminho semelhante segue a expansão do Auxílio-Gás pretendida pelo governo. Hoje, o programa atende a 5,6 milhões de famílias; a proposta é passar para 20 milhões até 2026. A ideia era transferir recursos do fundo do pré-sal diretamente para a Caixa, que operacionalizaria o programa, fora das regras fiscais. Mas a repercussão negativa alterou os planos.
No PLOA, que ainda está para ser votado pelo Congresso, foram incluídos apenas R$ 600 milhões para a rubrica. A equipe econômica, no entanto, avalia encaminhar ao Congresso um pedido para alocar R$ 3 bilhões ao novo Auxílio-Gás. Segundo a Fazenda, os cálculos feitos na época da elaboração do projeto de lei, entregue ao Congresso em agosto do ano passado, não contemplaram o tamanho real desses programas.
IFI destaca outros dribles ao Orçamento
As negociações entre o governo federal, o relator do orçamento, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), e a Comissão Mista de Orçamento (CMO) para ajustar o texto do PLOA 2025 ainda estão acontecendo. Além da correção dos valores das despesas dos dois programas, os ajustes devem incorporar os efeitos do pacote de medidas de controle de gastos, a reestimativa das receitas feita pela CMO e o novo cenário macroeconômico para 2025.
A leitura do parecer de Coronel na CMO deve ocorrer na próxima terça-feira (18), com votação esperada para o dia seguinte.
Andrade, da IFI, ressalta outros dribles orçamentários, como a subestimação de algumas despesas e superestimação de outras. “É uma prática recorrente”, diz. “Em janeiro, fizemos uma separação do que foi pago de precatórios, em 2023 e 2024. Se você pega a despesa fechada de benefícios previdenciários, observa que teve um pequeno recuo em termos reais em relação ao ano anterior. Mas quando você limpa os precatórios da série, vê que teve crescimento.”
Algo parecido aconteceu com a despesa de pessoal, que apresentou redução em 2024. “Mas quando você tira o valor dos precatórios da conta, verifica que teve aumento”, explica o diretor. “Esses mecanismos produzem distorções nos dados e dificultam as análises. Nossa avaliação é que isso é feito de forma proposital para evitar bloqueios de despesa ao longo do exercício, conforme vão saindo as avaliações bimestrais do orçamento.”
No Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de fevereiro, a IFI destaca que a ampliação das receitas líquidas, conforme proposta pela CMO, foi “completamente utilizada para a acomodação de emendas parlamentares de comissão”.
O relator da comissão, Domingos Sávio (PL-MG), aumentou a projeção de arrecadação das receitas administradas, aquelas mais associadas à atividade econômica, em R$ 22 bilhões. A receita líquida foi de R$ 11 bilhões, o exato valor orçado para ser destinado às emendas de comissão. É uma estratégia recorrente subestimar algumas despesas obrigatórias para encaixar outras que são discricionárias, como as emendas.
No relatório de fevereiro, a IFI também destaca a possibilidade de frustração das receitas orçadas para 2025, a subestimação das despesas vinculadas à receita e à Previdência, a superestimação dos gastos com pessoal e incertezas quanto à efetividade das medidas de corte de despesas aprovadas.
Segundo a IFI, as despesas executadas fora do Orçamento chegarão a R$ 20,5 bilhões: R$ 12,5 bilhões relativos ao programa Pé de Meia e R$ 8 bilhões correspondentes ao Fundo de Compensação de Benefício Fiscais (FCBF), criado pela reforma tributária.
Sem manobras, déficit de 2024 teria sido maior
Caso as despesas parafiscais estivessem computadas no Orçamento de 2024, o governo não estaria comemorando o déficit primário de 0,1% do PIB e o cumprimento da meta fiscal, que permitia um déficit de até 0,25% do PIB.
Os resultados apontaram melhoria em relação ao déficit de 2023, que foi de 2,4% do PIB. “Não houvesse a manobra, o déficit de 2024 subiria para 0,9% do PIB”, afirmou o economista Marcos Mendes, do Insper, em artigo na Folha de S.Paulo.
Pelos cálculos de Mendes, somando todos os dribles fiscais – como despesas com calamidades que a lei exclui da conta, pagamento antecipado de precatórios, despesas antecipadas no orçamento de 2023, a suspensão do pagamento de emendas parlamentares pelo STF, receitas não recorrentes e dividendos pagos pelas estatais –, o déficit primário de 2024 poderia chegar a 2,1% do PIB.
“Mesmo quem acredita que o governo será capaz de obter elevadas receitas não recorrentes todos os anos, e discorda da inclusão de gastos parafiscais no cálculo, concordará que o déficit de 2024, sem manobras, foi de, pelo menos, 0,9% do PIB, pontuou o economista.
Estudos mostram aumento do uso dos fundos pelo governo
A Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, em estudo feito a pedido da Liderança da Minoria da Câmara, alertou para as consequências da utilização do Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT) para o aumento da dívida pública.
“A utilização de mecanismo extraorçamentário para ampliar despesas públicas à margem do OGU pode comprometer a credibilidade das regras fiscais”, diz o documento. “Essa prática gera potenciais consequências adversas, como o aumento do custo de financiamento da dívida pública, situação que reduz a disponibilidade de recursos para áreas finalísticas, prejudicando a oferta de bens e serviços públicos no médio e longo prazo.”
No mesmo sentido, um relatório distribuído aos clientes da Warren Investimentos em outubro do ano passado mostrou como o governo tem redirecionado os excedentes dos fundos da pandemia a outros programas. Segundo o documento, a participação da União em fundos (exceto os constitucionais) aumentou de R$ 28,5 bilhões em 2014 para R$ 108,6 bilhões neste ano. Durante a pandemia, o crescimento foi de R$ 60 bilhões.
O aumento ficou concentrado no FGO, com patrimônio de R$ 45,3 bilhões, e no FGI, com R$ 20,7 bilhões, acionados para apoiar diversas iniciativas do atual governo. O FGO foi utilizado para as renegociações de dívidas dentro do Programa Desenrola. Em outro momento, recebeu aporte de R$ 4,5 bilhões para ajudar no socorro às vítimas ao Rio Grande do Sul.
“Eventual problema está no uso excessivo dos fundos, que acabam substituindo gastos e fontes que deveriam estar dentro do Orçamento geral”, afirmou ao Valor o economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, que foi secretário estadual da Fazenda e Planejamento de São Paulo.
A Lei do Acredita (14.995/2024), que permitiu o refinanciamento de dívidas e concessão de crédito, “promoveu mais alterações no FGO, capitalizando o fundo e reforçando a tendência de reutilização de recursos para finalidades diversas daquelas as quais inicialmente foram aportados”, apontou o relatório.







