
São Paulo - Berros do rapper Notorious B.I.G, samples furtados do Public Enemy, milésimos de segundo do órgão setentista dos Black Crowes, tudo pontuado pelos gemidos alternados das vocalistas do SaltnPepa e por batidas, baixos, guitarras, trechos e até interjeições de outros dezessete artistas. O resultado, que não é um caos sonoro e nem de perto lembra nenhuma das músicas originais, é "Friday Night", uma das canções que o norte-americano Gregg Gillis, o Girl Talk, criou com retalhos de outras.
Como sempre, ele não pagou para usar nenhuma delas e nem planeja fazê-lo afinal, é apenas o seu jeito de compor. Se mesmo assim teimassem em lhe empurrar a conta, por essa faixa ele deveria cerca de US$ 210 mil que seriam divididos entre centenas de donos de direitos autorais e gravadoras. Ele não tinha esse dinheiro, mas não foi só por isso que escolheu ficar na ilegalidade: a principal razão é que ele não crê que deva algo a alguém. Se a legislação diz que sim, ela que mude.
Com mashups de 218 canções de outros artistas, o álbum que o tornou conhecido, Night Ripper (2006), custaria mais ou menos US$ 4 milhões só de copyright, sem descontos. Ignorar esse fato e entender que toda arte tem dívida com o passado fez com que Gillis se descobrisse como músico: seu instrumento é um laptop equipado com o programa de edição de áudio Adobe Audition e qualquer fonograma, protegido ou não, ao seu alcance. Já para a lei, isso faz dele um ladrão.
Ele nunca achou isso realmente um problema, até porque nunca foi processado (se qualquer uma das gravadoras lesadas não gostasse do resultado, elas poderiam). O nome do seu selo, especializado em samples e remixes, mostra bem a condição da sua música hoje: Illegal Art.
"Todos roubamos um pouco. É a mesma coisa do mundo offline: toda arte tem algum nível de influência. Existem poucas ou praticamente nenhuma ideias originais. Algo que parece novo quase sempre é uma boa recontextualização de um conceito antigo. A diferença é que hoje essas reinterpretações foram facilitadas pela tecnologia. São diretas e acontecem o tempo todo. Mas a mistura é e sempre foi um elemento fundamental para qualquer artista", argumenta. Assumir isso, por alguma razão, fez que ativistas do mundo todo o adotassem como uma espécie de ícone da geração criada com a internet, acostumada com obras criadas em cima de outras e com o compartilhamento de arquivos. Legal ou não.
Ele é personagem principal de dois documentários sobre os desequilíbrios dos direitos autorais no mundo: Good Copy, Bad Copy (2007) e RIP: a Remix Manifesto (2008). O criador do Creative Commons e guru da cultura livre Lawrence Lessig disse que um mundo que o vê como criminoso (e não artista) está claramente com prioridades erradas.
Greg, porém, não vê as coisas de modo tão ideológico assim. É só a sua maneira de fazer música pop, dançante e inovadora: juntando apenas as melhores partes de um monte delas. Antes de viver de música, o que faz há três anos, Gillis trabalhava como engenheiro biológico. A experiência, diz ele, de alguma forma influenciou a sua forma de pensar em sons: as grandes descobertas científicas também são frutos da união de diversos elementos aparentemente desconexos e do trabalho de diversas pessoas, em diferentes épocas e contextos.



