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Lyndon B. Johnson faz o juramento a bordo do Air Force One em Dallas em 22 de novembro de 1963, com Jacqueline Kennedy assistindo. | Cecil Stoughton/White House
Lyndon B. Johnson faz o juramento a bordo do Air Force One em Dallas em 22 de novembro de 1963, com Jacqueline Kennedy assistindo.| Foto: Cecil Stoughton/White House

Quando o conversível de John F. Kennedy (JFK) atravessou o Dealey Plaza, ele estava a cinco minutos do Trade Mart, na cidade americana de Dallas, onde duas mil pessoas esperavam para ouvi-lo fazer um discurso. O presidente nunca falou essas palavras. Até agora. Ou quase isso.

Cinquenta e cinco anos depois, em uma das muitas maneiras inovadoras e controversas de como a história está deixando de ser menos sobre datas e mais sobre dados, a tecnologia estendeu Camelot por mais 18 minutos. JFK finalmente entregou o último discurso com a sua “própria voz”.

Pegando mais de 116 mil trechos de falas de outras gravações do 35.º presidente americano, uma empresa escocesa de “clonagem de voz” produziu uma versão de Kennedy narrando seu discurso final que até então estava restrito ao papel:

“A liderança da América deve ser guiada pelas luzes da aprendizagem e da razão”, dizia a versão virtual com o inconfundível “Boston Brahmin” sotaque, “ou então aqueles que confundem retórica com a realidade e o plausível com o possível ganharão a ascendência popular com sua aparentemente rápida e simples solução para todos os problemas do mundo”.

O efeito é poderoso, se não perfeito. Na melhor das hipóteses, Kennedy está claramente falando; ouvi-lo completar sua missão naquele dia levou muitos ouvintes às lágrimas. Na pior das hipóteses, uma inflexão robótica em algumas frases fez parecer que o JFK habita um sistema de correio de voz eletrônico. (”Pressione dois por justiça racial em nosso tempo.”)

A história recriada, atualizada e manipulada digitalmente

Quaisquer que sejam seus defeitos, a reprodução do discurso de Kennedy é apenas uma das maneiras que mostram como a história está sendo recriada, atualizada e manipulada digitalmente como nunca antes visto. De fotografias meticulosamente coloridas a campos de batalha em realidade virtual, acadêmicos, artistas e empreendedores estão arrastando os velhos tempos para a era da digital. E os padrões escolásticos estão se esforçando para acompanhar.

A Academia Militar dos Estados Unidos está trabalhando em um aplicativo para celular nos mesmos moldes de Pokémon Go que permitirá aos visitantes ver como as tropas de George Washington montaram uma enorme cadeia de ferro em todo o rio Hudson. Uma equipe na Carolina do Norte sintetizou um importante, mas não registrado, discurso de 1960 de Martin Luther King Jr., acusticamente acurado até os ecos da igreja de Durham. Outro grupo criou um modelo visual e acústico do “Gunpowder Plot Sermon”, de John Donne, no pátio da Catedral St. Paul, em Londres, com um áudio completo em inglês arcaico. Uma futura versão teatral pode incluir os cheiros de esterco de cavalo e frutas podres.

Era digital da história tem “campos vertiginosos”

A capacidade da era digital de tornar a história mais visceral tem muitos “campos vertiginosos”. “Parece que nos foi dada a capacidade de viajar no tempo”, afimrou Seth Denbo, diretor de iniciativas digitais da American Historical Association.

Mas nem todo mundo está abraçando a magia. Para muitos puristas da história, criando imagens e sons que dependem de adivinhação e de escolhas subjetivas estaria se criando atritos com as adormecidas normas acadêmicas. Como você representaria uma nota de rodapé sobre um latido de um cachorro medieval?

“Eu tive um professor sênior que disse: ‘Esta é uma ponte muito longe para mim’, e eu me demiti do meu papel no comitê consultivo”, contou John Wall, historiador da Universidade Estadual da Carolina do Norte, que liderou a recriação digital do sermão de Donne autorizado pelo National Endowment for the Humanities.

O especialista em JFK, Jeff Shesol, disse que apreciava o fato de que o discurso digitalizado do presidente despertava o interesse para uma parte pouco conhecida da retórica presidencial. Mas ele achou a versão de áudio “assustadora e perturbadora”. Ele compara a reprodução digital do discurso de Dallas a um pronunciamento solene escrito para o presidente Nixon caso o pouso do Apollo 11 tivesse terminado em catástrofe.“O poder desses discursos é que eles nunca foram dados”, disse Shesol. “Há uma dissonância cognitiva para mim ouvir a voz de Kennedy proferida por palavras que ele nunca pronunciou.”

Seth Denbo, que tem doutorado em História pela Universidade de Warwick, na Inglaterra, compara o potencial da história digital com a enorme popularidade dos videogames. “O apelo não é apenas a empolgação de jogar o jogo, também é ter uma ideia de como eram esses espaços e experiências históricas na visão das pessoas do passado.”

Entusiastas defendem a “era digital” de fatos históricos

Os entusiastas dizem que a tecnologia permite que alunos - e clientes - busquem os sentimentos por trás dos fatos. Uma foto de uma menina assustada em Auschwitz deixa de ser apenas uma sombra arquivada quando ganha cores, pois deixa a personagem retratada mais parecida com crianças que vemos todos os dias. É mais fácil compreender como Henry V persuadiu suas tropas em menor número ao ouvir suas palavras, ao invés de apenas lê-las.

Victoria Gallagher estuda há muito tempo o discurso“Fill Up the Jails”, de Martin Luther King, proferido na Igreja Batista “Durham’s White Rock” em 1960. O discurso aconteceu logo após o almoço e é considerado o principal apoio de King ao confronto não violento. Mas nenhuma gravação da noite foi encontrada. Então ela fez uma.

“Não estamos tentando criar uma réplica exata”, disse Gallagher, professor de comunicação da Universidade da Carolina do Norte e chefe do projeto virtual MLK, que cuida da reprodução do discurso“Fill Up the Jails” . “O que estamos tentando fazer é dar às pessoas uma noção real de como era estar naquela igreja.”

A recriação combina performances e tecnologia. A equipe colocou 250 pessoas em uma igreja com as dimensões corretas. O ator Marvin Blanks fez o discurso, gravado em uma sala especial na biblioteca do campus com som Dolby 5.1 e 270 graus de imagens 3D. “Eu lhes digo, as pessoas começaram a chorar estando naquele espaço”, afirmou Gallagher.

A equipe do projeto virtual MLK está agora trabalhando em uma versão animada de realidade virtual, na qual espectadores que usam óculos podem se mover por um santuário animado. Um estudante já conseguiu reproduzir Martin Luther King usando uma roupa específica para captura de movimentos.

Já o projeto de reproduzir digitalmente o discurso de Kennedy foi ideia de Alan Kelly, um publicitário de Dublin admirador de JFK. Com financiamento das empresa Rothco e Times, de Londres, ele contratou a CereProc, uma empresa de tecnologia escocesa que cria vozes digitais para pessoas que perderam sua voz por causa de doenças (incluindo uma para o crítico de cinema Roger Ebert).

Minerando mais de 800 discursos de Kennedy, os técnicos cortaram pedaços individuais de fala chamados fonemas e, em seguida, colocaram cada fonema ao lado de outro fonema. Eles executaram o arquivo com fonemas através de um software e digitaram o discurso de Dallas. “Podemos fazer a voz dizer qualquer coisa”, disse Graham Leary, do CereProc. Mas ressaltaram: “Não queremos que ele diga coisas que nunca teria dito”. O que poderia dar errado?

Kelly disse que a resposta do público foi positiva. Mas quando se ofereceu para dar a gravação para a Biblioteca John F. Kennedy, em Boston, o retorno não foi nada animador. “Eles responderam de forma bem objetiva: ‘Não neste momento’”, contou Kelly. Em um e-mail ao jornal The Washington Post, um funcionário da biblioteca disse: “Este trabalho não se enquadra nas diretrizes de materiais que aceitamos”.

Era digital da história encontra barreiras acadêmicas

As instituições estão observando como as “humanidades digitais”, uma área em expansão, se esforça para permanecer ligada às amarras acadêmicas. Um corpo internacional de estudiosos desenvolveu um conjunto de diretrizes conhecidas na Carta de Londres. E os profissionais estão tentando encontrar maneiras de permitir que o espectador saiba o quanto do que se está vivenciando é baseado em fontes primárias e o quanto é interpretação.

Lisa M. Snyder experimentou várias maneiras de anotar os modelos digitais hiper-detalhados da Exposição Mundial de Chicago em 1893, que ela desenvolve há 20 anos. Em alguns, ela produziu seções que são baseadas em uma sombra mais clara do que aquelas que podem ser documentadas, assim como os esqueletos de dinossauros têm preenchimentos de gesso para os ossos ausentes.

Agora, sua equipe, com financiamento do NEH, está criando maneiras de as notas de rodapé se revelarem automaticamente à medida que os usuários navegam na configuração cibernética. “Quando você está andando perto do Transportation Building, informações sobre cores vão aparecer”, disse Lisa.

A cor tem sido um grande desafio ao reproduzir um evento que foi documentado em preto e branco. Para ter pistas de como realmente era a cena, Lisa extrai todo tipo de evidência presente em jornais, pinturas e guias desbotados. “Eu faço uma quantidade enorme de pesquisa”, contou a historiadora em arquitetura pela UCLA. “Mas, no final, é a minha interpretação do que se parecia.”

A cor também é usada pela artista brasileira Marina Amaral, que conquistou seguidores com seu colorido cuidadosamente pesquisado sobre imagens históricas. Suas fotos incluem atualizações assombradas de Abraham Lincoln, Rasputin e uma doca de banana da virada do século em Nova York. Sua recente obra colorida de Czeslawa Kwoka, uma vitima de Auschwitz de 14 anos, se tornou viral.

“A pesquisa é a parte mais importante do processo”, disse Marina em resposta à reportagem por email. “Estou ciente de que essas fotografias são documentos históricos e quero ser o mais precisa possível.”

Marinal e outros artistas que reproduzem fotos históricas entraram em um debate sobre manipulação que vai dos departamentos de fotografia de jornais aos arquivos de museus. Mas alguns historiadores lhe dão crédito por sua profunda pesquisa e boa mão. “Eu acho que isso é incrível”, disse Samuel Wheeler, historiador do Estado de Illinois que trabalha na Lincoln Presidential Library, em Springfield.

Foi a fotografia da Guerra Civil que desencadeou sua escolha de carreira, contou Wheeler. Vendo cuidadosamente as versões em cores só aumenta sua compreensão e excitação. “Eu acho que a fotografia colorida aumenta a empatia das pessoas”, disse ele. “Preto e branco é uma deixa para uma época passada. As reproduções coloridas não substituem os originais, mas se adicionam a eles.”

Tecnologia é usada para atrair o interesse de jovens

Parte da representação em realidade aumentada do Departamento de História da Academia Militar dos EUA sobre a invasão do Dia D na Normandia Jacob Marchillo/United States Military Academy

Os historiadores estão contando com a tecnologia para tornar o assunto mais interessante para os jovens cujas ideias sobre tempos antigos podem se estender apenas à era do BlackBerry. Na Academia Militar dos Estados Unidos (West Point), o número de matriculados em cursos universitários de História dobrou nos últimos cinco anos, à medida que o departamento lançou uma infinidade de projetos digitais. Na região, está sendo produzido um livro interativo com mapas animados, chamado em inglês de “The West Point History of Warfare”.

Recentemente, os estudantes coloram drones sobrevoando a região francesa da Normandia para capturar imagens para um programa de realidade aumentada que pretende reproduzir, com um smartphone normal, um holograma em 3D do Dia-D da invasão. “Estamos levando o Dia D para todos os cadetes de West Point”, disse o coronel Ty Seidule, chefe do departamento de história da Academia Militar dos Estados Unidos. “Do meu ponto de vista, a história é importante demais para ser entediante.”

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