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Um paciente em Ciudad Juarez durante um tratamento que simula cenas relacionadas a eventos traumáticos pelos quais a pessoa passou | Adriana Zehbrauskas/ The New York Times
Um paciente em Ciudad Juarez durante um tratamento que simula cenas relacionadas a eventos traumáticos pelos quais a pessoa passou| Foto: Adriana Zehbrauskas/ The New York Times

Sempre que Erica Gonzalez colocava os óculos de vídeo, os detalhes de seus quatro dias em cativeiro voltavam correndo para ela. Ela podia sentir o cheiro da camiseta usada para cobrir sua cabeça, o gosto de cinza nas garrafas de cerveja onde lhe davam água – e ouvir as conversas abafadas dos sequestradores."Foi assustador passar por tudo aquilo novamente", disse Gonzalez, "mas me fez bem".

Gonzalez, de 18 anos, é uma de 25 pacientes que recentemente completaram um programa de terapia virtual similar ao usado pelo exército dos Estados Unidos para tratar veteranos da Guerra do Iraque com estresse pós-traumático. Criado por médicos e psicólogos da Universidade Nacional Autônoma do México, o programa-piloto buscou preencher uma lacuna em serviços de saúde mental para os traumatizados moradores de Ciudad Juarez.

A cidade, lar do poderoso cartel Juarez e cobiçada por outras organizações criminosas pela localização estratégica para o tráfico de drogas, tem sido uma das linhas de frente nos esforços do presidente Felipe Calderón contra o crime organizado.

As arrepiantes cenas que aparecem nos óculos foram criadas para residentes desta cidade, que nos últimos anos ostentou o maior número de assassinatos no México. Os óculos mostram uma de seis cenas, incluindo um assalto à mão armada, um posto policial, um esconderijo para sequestros e um tiroteio entre atiradores do cartel e soldados do exército. Em cada caso, os terapeutas usam a cena mais relacionada à experiência do paciente e personalizam as sessões para abordar traumas específicos – por exemplo, tocando uma música ouvida no cativeiro.

Organizadores afirmam que o programa reduziu drasticamente os sintomas do estresse pós-traumático, com uma taxa de sucesso de 80%.

"Houve muita atenção ao problema da violência, algo entendido como segurança pública, tráfico de drogas e polícia", declarou Hugo Almada, que pesquisa o impacto psicológico da violência na Universidade Autônoma de Ciudad Juarez. Segundo ele, porém, o impacto sobre a saúde mental vem sendo amplamente ignorado.

Mesmo aqueles diretamente afetados pela violência da cidade, que ceifou mais de 10 mil vidas nos últimos quatro anos e meio, muitas vezes nem sabem quando precisam de ajuda.

Outro morador traumatizado, Juan Carlos Garcia, de 29 anos, parou de comer e dormir depois que seu irmão foi assassinado e ele teve de identificar o corpo no necrotério. Quase um ano depois, sua esposa e colegas de trabalho convenceram-no a tentar o tratamento com realidade virtual.

Usando óculos e fones de ouvido, ele reconstituiu a série de eventos traumáticos – desde a última vez em que viu o irmão vivo até seu enterro. Depois ele realizou exercícios de respiração com seu terapeuta, técnicas para ajudá-lo a reduzir seus níveis de ansiedade, que eram monitorados enquanto ele via as imagens pelos óculos. E fez lição de casa entre as sessões, passando tempo no quarto de seu irmão, visitando seu túmulo e passando pelo local do assassinato.

Esses exercícios são especialmente importantes, segundo os terapeutas do projeto, pois, ao contrário dos veteranos da Guerra do Iraque, que acabam deixando a zona de guerra, os pacientes em Ciudad Juarez continuam vivendo em perigo. Como os pacientes precisam passar pelo locais de episódios violentos, ou moram perto deles, a terapia tenta ajudá-los a parar de evitar essas rotas e rotinas.

Mas não se sabe se o programa irá continuar, pois o financiamento sob o qual ele foi concebido venceu em dezembro e ainda não surgiu nenhum outro recurso, explicam os organizadores.

Por mais emocionalmente desgastante que tenha sido o processo, Garcia garante ter valido a pena. "Eu ainda me lembro, mas agora já não é tão doloroso", disse ele.

A necessidade de serviços psicológicos permanece muito grande. Um recente estudo da universidade em Ciudad Juarez descobriu que mais de 70 por cento dos moradores já passaram por alguma cena de crime isolada. Os médicos à frente do tratamento de realidade virtual estimam que um quarto da população da cidade sofra de transtorno de estresse pós-traumático.

Maria Teresa Cerqueira, chefe do gabinete da fronteira México-Estados Unidos da Organização Pan-Americana de Saúde, afirmou que muitos habitantes da cidade estavam lidando com a perda de entes queridos, o desaparecimento de pessoas de seu meio ou temores sobre a própria segurança. "Precisamos de muitos terapeutas para ajudar essas pessoas", declarou ela.

Brisa Delgado é uma das vítimas da violência abandonadas pela falta de uma rede de apoio. Membros de uma gangue invadiram uma festa onde ela estava em janeiro de 2010, disparando indiscriminadamente e deixando 15 pessoas mortas. No ataque, classificado pelas autoridades como uma tentativa da gangue de neutralizar jovens confundidos como seus rivais, a cabeça de Delgado foi atingida de raspão por uma bala. Seu psicólogo subsidiado pelo governo a liberou após dois meses de terapia – mas Delgado, uma menina tímida de 18 anos, não se sentia nada melhor.

"Todos os dias eu sonhava que era assassinada", disse ela, encarando suas mãos inquietas.

O descaso com a saúde mental não é exclusividade de Ciudad Juarez. Por todo o México, instituições para doentes mentais são famosas por suas péssimas condições. Numa tarde recente, uma dúzia de pacientes se encolhia no canto escuro de um pátio num desses abrigos em Ciudad Juarez, numa estrada poeirenta ao leste da cidade. Eles espantavam as moscas atraídas pelo cheiro de fezes e roupas imundas.

A maior parte do dinheiro para operar o abrigo vem de doações privadas. A participação do governo é insignificante, explicou o fundador do local, o reverendo Jose Antonio Galvan – que frequentemente coleta alimentos vencidos ou jogados fora para os pacientes. "Estas são pessoas que não existem", afirmou Galvan. "Elas são invisíveis."

Para aqueles cujas vidas foram reviradas pelo crime, o atendimento psicológico pode fazer a diferença entre o isolamento voluntário e a liberdade vigiada. Gonzalez, que permaneceu em casa por vários meses após seu sequestro, começou a se aventurar em passeios. De tempos em tempos ela vai ao cinema com o namorado, e pretende voltar à escola em agosto.

Gonzalez tem medo de ser sequestrada novamente – mas, mesmo assim, sente que obteve muitos avanços. "Antes, eu não conseguia falar sobre isso sem chorar", disse ela, exibindo um pequeno sorriso triunfante.

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