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Porque não cabe à Universidade formar crentes nem sequer sugerir convicções, mas dar ao estudante capacidade para escolher a sua convicção. Já abundam os homens cegamente convictos, muito ‘práticos’, ‘úteis’ para os serviços do Estado, da Igreja, dos partidos e das empresas comerciais. Pode ser que todas essas instituições lamentem, em breve, a abundância de homens convictos e a falta de homens livres. Então, acusar-se-á amargamente o utilitarismo das universidades modernas. O utilitarismo é o inimigo mortal da Universidade.

Otto Maria Carpeaux 

Aristóteles, trezentos anos antes de Cristo, da início à sua metafísica com uma afirmação instigante: “todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer". Passados mais de mil anos, uma instituição personificou o desejo original intuído pelo filósofo, recebendo a denominação de universidade. Derivação do latim universitas, que significa, dentre outros, universalidade, totalidade, a instituição universitária paulatinamente se converteu no centro aglutinador do conhecimento humano, um espaço de ebulição intelectual capaz de dar vazão àquele anseio inato à que se referia o Estagirita.

Quase outro milênio mais tarde, Otto Maria Carpeaux, humanista que marcou a cultura brasileira no século XX, afirmou que "das universidades depende a vida espiritual das nações", e ousou ainda mais ao asseverar que "a história das universidades é a história espiritual das nações". Para Carpeaux, tal é a responsabilidade que pesa sobre a universidade: moldar o espírito do seu tempo. Afligia o autor da monumental História da Literatura Ocidental a constatação da gradativa redução na formação do espírito crítico daqueles que adentram a academia, concomitante ao aumento do que denominava formação utilitarista. Afirmava o ensaísta:

"Não se trata destas ciências ou daquelas profissões. Trata-se do espírito comum que as anima, do espírito filosófico, antiutilitário, desinteressado, que as nossas universidades perderam, e que é a própria ideia de Universidade." (1)

Desassossego semelhante afligiu os pensamentos do espanhol José Ortega y Gasset, um dos mais prolíficos filósofos do século XX. Duro como poucos, Gasset não poupou críticas aos homens de ciência no seu clássico “A Rebelião das Massas”. Por “massa” o autor não pretendia fazer referência à determinada classe ou grupo social, mas, antes, a um modo de ser que se pode observar nos mais distintos grupos e classes. Analisando o desenvolvimento da ciência experimental desde Galileu até Newton, Gasset vislumbra na “barbárie  da especialização” uma força formadora do protótipo de homem massa. Escreve o filósofo madrilenho:

“(...) o homem de ciência é o protótipo do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unipessoal de cada homem de ciência, mas porque a própria ciência – raiz da civilização – converte-o automaticamente em homem-massa; quer dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno.” “Para progredir, a ciência necessitava de que os homens de ciência se especializassem. Os homens de ciência, não ela mesma. A ciência não é especialista. Ipso facto deixaria de ser verdadeira. Nem mesmo a ciência empírica, tomada em sua integridade, é verdadeira se separada da matemática, da lógica, da filosofia. Mas o trabalho dentro dela tem que ser – inevitavelmente – especializado.

“(...)geração após geração, o homem de ciência foi se contraindo, se recolhendo em um campo de ocupação intelectual cada vez mais estreito.” “(...)o cientista, por ter que reduzir sua órbita de trabalho, foi progressivamente perdendo contato, a cada geração, com outras partes da ciência, com uma interpretação integral do universo, que é a única coisa merecedora dos nomes de ciência, cultura, civilização europeia.” (2)

Carpeaux e Gasset alertam para distintos fenômenos cognitivos que corroem o ethos universitário, ressaltando o arrefecimento do espírito crítico atrelado a um horizonte de consciência restrito às discussões contemporâneas e cativo da área de especialização. Carpeaux fazia ainda constante referência aos indivíduos práticos e úteis, talvez hoje personificados por aqueles cuja mente se moldou a um estado dócil, servil, sucumbindo à militância enragé ou ao proselitismo cego. Em conjunto, as provocações destes pensadores do século XX nos inspiram a lembrar uma imprescindível missão da universidade: ser um “espaço  para o ensino e aprendizagem do conhecimento universal” (3), e a refletir sobre o modelo de instituição universitária que desejamos construir, inevitavelmente atrelada ao modelo de sociedade almejado.

Leia também: A universidade sem fronteiras, livre de ideologias e preconceitos

Desde seu surgimento, na Idade Média, muitos modelos de universidade foram propostos. Alguns destaques devido à influência histórica e contemporânea são o modelo alemão humboldtiano, que postula a formação por meio da pesquisa; a tradição inglesesa newmaniana, devotada à formação cultural e à educação liberal; a americana “multiversity”, dedicada à concepção de uma instituição dinâmica e plural; bem como as correntes latino-americanas, inspiradas no movimento de Córdoba e interessadas em uma universidade participativa. Independentemente da tradição em que se apoie a instituição universitária, a superação dos fenômenos para os quais alertam Carpeaux e Gasset passa por uma academia atenta à necessidade de ser criativa, flexível e inovadora. Uma universidade capaz de absorver o melhor das diferentes tradições, que valorize e invista em pesquisa, que propicie ensino para formação profissional e cultural e que preze pelo aprimoramento de sua democracia interna. Uma organização que fomente a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade, a interdisciplinaridade, o empreendedorismo e a formação humanística e cidadã.

O ethos universitário deve despertar o espírito de defesa de uma academia sentinela da liberdade intelectual, onde as mentes encontrem alento para enfrentar o desafio da inquirição científica, onde se cultive a autonomia, audácia, intrepidez. É a busca pela formação de espíritos emancipados, independentes e livres que mantém acesa a chama do desejo por conhecer, e é este desígnio que deve caracterizar o papel da universidade na formação do zeitgeist, o espírito de época.

1. Carpeaux, Otto Maria. Ensaios reunidos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

2. Ortega y Gasset, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Vide Editorial, 2016

3. Newman, Jhon Henry. The Idea of a University. 1852. Disponível em: http://www.newmanreader.org/works/idea/

* Gleisson Alisson Pereira de Brito é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana e encabeça a listra tríplice para reitor da instituição enviada ao MEC.

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