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Afeminista e advogada Ruth Proskauer Smith (foto) doou seu corpo à universidade, mas foi enterrada como indigente | Ozier Muhammad/NYT
Afeminista e advogada Ruth Proskauer Smith (foto) doou seu corpo à universidade, mas foi enterrada como indigente| Foto: Ozier Muhammad/NYT

Uma pessoa morreu em seu apartamento multimilionário; a outra deixou US$1,3 milhão para instituições de caridade; a terceira era um figurinista de ópera que viajava para a Europa regularmente com o parceiro fiel. Todos doaram seus corpos à ciência e acabaram servindo de cadáveres de estudo para os alunos do primeiro ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York. Todos assinaram formulários que prometiam cremação e o descarte de suas cinzas pela instituição “de forma apropriada e digna”.

Como então seus corpos dissecados acabaram em valas comuns na Ilha Hart, local onde a prefeitura da cidade enterra os indigentes e os que não foram reclamados pelos familiares?

Esses casos, descobertos durante uma investigação do New York Times sobre os enterros realizados na ilha, chocaram os familiares e amigos – e também levantaram questões importantes sobre a doação de corpos quando faculdades de Medicina dos EUA dependem cada vez mais dela, e não do uso de indigentes, como material de estudo para os profissionais do futuro.

Nos EUA, grandes empresas representam uma demanda gigantesca por tecido humano na ciência e na indústria, sem contar os programas acadêmicos que ensinam Anatomia nas faculdades de medicina.

Agora, após revisar seus registros anatômicos, a pedido do Times, a universidade pede desculpas e reconhece que essas ocorrências fazem parte de uma prática realizada durante vários anos. Até 2013, a escola enviava uma série de cadáveres doados por cidadãos comuns para o necrotério municipal à custa do contribuinte.

“Enquanto instituição, não tínhamos conhecimento que isso vinha ocorrendo. Garanto que já não acontece mais”, afirmou Lisa Greiner, porta-voz do Centro Médico Langone da NYU.

Suspeita

A descoberta, porém, reforça a preocupação antiga de alguns anatomistas com a falta de regulamentação e supervisão das operações nacionais de doações de órgãos – e pode repercutir nas 16 faculdades do estado de Nova York, que usam mais de 800 cadáveres doados ao ano.

Lisa confessa que não se sabe como tantos corpos doados à universidade foram parar na Ilha Hart, em parte porque alguns registros se perderam na passagem do furacão Sandy – e também porque o diretor do programa durante muitos anos, o Dr. Bruce Bogart, que se afastou da maior parte das responsabilidades em 2011 e se aposentou oficialmente em 2013, hoje sofre de demência.

As faculdades de Medicina que contam com um bom suprimento dividem o excesso com aquelas que não têm quase nada; foi assim que corpos doados a outras instituições acabaram na universidade. De fato, entre os cadáveres que a universidade despachou para a ilha estava o de Leo Van Witsen, autor de um livro importante sobre os figurinos de ópera, que tinha cedido seu corpo para a Faculdade de Médicos e Cirurgiões da Universidade Columbia.

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Segundo os registros da NYU, o programa da Columbia não precisava do corpo de Van Witsen quando ele morreu, aos 96 anos, em 2009; assim, com a permissão de seu executor testamentário, acabou transferindo-o para a instituição de Nova York, como explica Lisa Greiner. Três anos depois – aparentemente porque, sem perceber, o executor teria marcado no formulário que a família não queria a devolução dos restos mortais – a escola então enviou Van Witsen para o necrotério municipal como indigente em vez de cremá-lo.

“Ele merecia muito mais que isso, mesmo que fosse para ter as cinzas espalhadas no Central Park”, afirma Sharon Stein, antiga vizinha que descreveu Van Witsen como “controverso, interessante e bem vestido” e se lembrou de que ele escapou do Holocausto como refugiado da Holanda, em 1938.

Sem um registro público, não há como identificar sistematicamente quantos doadores acabaram na Ilha Hart. O Times se deparou com os casos ligados à universidade enquanto repassava a base de dados de 62 mil enterros realizados ali desde 1980, originalmente compilados por voluntários da ONG Hart Island Project. Um intervalo de um a três anos entre a morte e o enterro geralmente é sinal de que o falecido teve um destino médico. Entre centenas de casos semelhantes, porém, às vezes somente um nome incomum ou uma informação excepcional tornaram possível a investigação.

Um dos mais incríveis é o de Marie Muscarnera, enterrada como indigente, em 2008, três anos após sua morte, aos 91 anos; o irmão Joseph, que morrera poucos meses antes dela, também jaz em uma das valas de Hart. Entretanto, o espólio em nome dela consta de uma lista, de 2009, de doadores da faculdade na faixa dos US$550-US$999 mil.

Como se descobriu, Marie foi criada na pobreza extrema, no Brooklyn, primogênita de uma família italiana de imigrantes com dez filhos que dependiam do trabalho da adolescente para sobreviver. Entretanto, quando morreu, em 2005, sua determinação inabalável, o talento de costureira e alguns investimentos inteligentes já tinham lhe rendido a polpuda quantia de quase US$1,3 milhão, doada para instituições de caridade – incluindo US$691.700 para a Faculdade de Medicina da NYU. Além disso, como Joseph, que era deficiente e viveu anos sob seus cuidados até morrer na Langone, ela doou seu corpo para a instituição.

No formulário que assinou afirmava: “Desejo que meus restos mortais sejam cremados e que a Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York seja responsável por enterrar ou espalhar as cinzas de forma digna”.

Em vez disso, depois de usar seu cadáver durante três anos, o programa de Anatomia pagou US$225 a uma funerária para levar o corpo ao necrotério municipal, no Bronx, onde foi colocado em um caixão barato e levado para a Ilha Hart, onde a Prefeitura pagou US$0,50/hora para os presidiários que ali a enterraram. A cremação custa US$155 a mais por cada corpo para a escola.

Lisa garante que o dinheiro não teve nada a ver com a decisão. “Realmente não parece que nenhuma dessas pessoas foi enterrada em Hart por economia.”

Repercussão

Todd Olson, professor de Anatomia da Faculdade de Medicina Albert Einstein, ex-diretor do programa de doações anatômicas e ex-líder de organizações nacionais e estaduais do setor, admitiu ter ficado enojado ao ter conhecimento do método com que a NYU descarta parte dos corpos doados.

“É completamente fora dos padrões da norma prática. É de um desrespeito sem fim. Bom, para qualquer lugar que se olhe é possível ver gente se aproveitando do acesso aos mortos; afinal, eles não falam mais.”

Para Brandi Schmitt, membro da Associação Americana de Anatomistas Clínicos e diretora do programa de doação anatômica da Universidade da Califórnia, a existência de uma política que passou despercebida por tanto tempo em uma instituição de tamanho destaque mostra a falta de transparência e de supervisão das doações. Em nível nacional, a operação inclui grandes empresas que representam uma demanda gigantesca por tecido humano na ciência e na indústria, sem contar os programas acadêmicos que ensinam Anatomia nas faculdades de medicina.

“Continuamos sem leis e diretrizes abrangentes que permitam ao leigo compreender a escolha que está fazendo”, afirma sobre as doações de cadáveres.

Para ela, a descoberta das falhas na universidade inevitavelmente afetará a percepção pública em relação a outros programas que dependem da reputação da instituição para atrair doadores. “Cumprir o que se promete é a base de uma política decente. As famílias, os amigos e o doador em vida merecem acesso a um processo de acompanhamento e supervisão que seja, no mínimo, respeitoso.”

No caso de Marie, o irmão Vincent, marcou o item que dizia: “A família abre mão do cadáver de Marie Muscarnera”. Em entrevista realizada em 2015, o professor aposentado de 90 e poucos anos que se autodenomina “um solitário”, disse que não tinha ideia de que a universidade enviaria o corpo para uma vala comum e que ninguém lhe disse nada quando estava sendo pressionado a tomar decisões ao lado do leito da irmã moribunda.

“Acho que, com tanto dinheiro, eles poderiam nos ter oferecido um enterro normal”, concluiu.

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