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Com a reposição populacional em declínio desde o início dos anos 90 no Japão, o número de estudantes diminuiu drasticamente no país nas últimas décadas. | Pixabay.
Com a reposição populacional em declínio desde o início dos anos 90 no Japão, o número de estudantes diminuiu drasticamente no país nas últimas décadas.| Foto: Pixabay.

Em junho de 2015, o Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão, conhecido como MEXT, enviou uma carta às universidades nacionais (públicas), alertando que elas deveriam incrementar sua eficiência para satisfazer melhor as necessidades do país. 

A mensagem pedia um uso mais racional dos recursos e a priorização de áreas estratégicas – se preciso fosse, as universidades deveriam modificar ou até mesmo abolir seus departamentos de ciências sociais e humanidades para economizar. 

Desde então, a carta do governo japonês às universidades ganhou manchetes do mundo inteiro, gerou uma resposta indignada dentro do país e ocasionou reformas e resistências nas instituições locais. Afinal, o que aconteceu após a ameaça de cortar as humanidades? 

Crise institucional

A insatisfação do governo japonês com seu ensino superior pode surpreender, mas se explica pela continuada crise que as universidades do país vivem. Embora apareça sempre bem ranqueado nas provas internacionais de ensino básico – no mais recente Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos, os estudantes japoneses ficaram em 8º lugar em leitura, 5º em matemática e 2º em ciências (o Brasil, respectivamente, ocupa a 61ª, 67ª e 65ª posições entre 72 países) – o Japão não repete o desempenho no nível universitário. 

Hoje, segundo rankings globais de ensino superior como o Times Higher Education, o país tem apenas duas universidades entre as cem melhores do mundo. Com as mudanças, o plano do governo era aumentar o número para dez até 2025.  

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Especialistas entendem que o Japão sofre com uma longa redução das taxas de fertilidade, o que vem envelhecendo a população e tornando a estrutura universitária existente excessivamente grande e custosa frente ao que a demanda do país exigiria. Hoje, o Japão conta com 86 universidades nacionais e quase 700 outras instituições superiores, entre universidades privadas ou mantidas por governos regionais. Enquanto as nacionais recebem cerca de 80% das verbas públicas, elas concentram apenas 20% das matrículas. 

Ao mesmo tempo, uma bomba demográfica tem mantido o sistema inteiro em constante crise: com a reposição populacional em declínio desde o início dos anos 90, o número de estudantes diminuiu drasticamente no país nas últimas décadas; a quantidade de jovens japoneses com 18 anos, idade em que normalmente deveriam estar cursando o ensino superior, despencou de 2 milhões em 1990 para 1,19 milhão em 2016.  

Atualmente, quatro em cada dez universidades particulares não conseguem cumprir suas metas de matrículas, em função da falta de alunos. Além da queda populacional, o Japão tem um número atipicamente baixo de estudantes universitários quando comparado a outros países desenvolvidos – apenas metade dos alunos recém-saídos do ensino médio se matriculam em um curso superior, preferindo cursos profissionalizantes ou o ingresso no mercado de trabalho. 

A proporção é inferior à média de 62% da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e de 82% registrada pela vizinha Coreia do Sul. A redução do número de estudantes tem aumentado a pressão da iniciativa privada por uma redistribuição das verbas e, por outro lado, também faz com que o governo passe a cobrar cada vez mais resultados das instituições públicas.  

Respostas indignadas 

Mais do que causar indignação nas universidades, inclusive nas duas principais instituições do país (a Universidade de Tóquio e a Universidade de Kyoto, as duas que aparecem entre as cem melhores do mundo), a iniciativa do governo também gerou contrariedade mesmo em setores de quem o governo esperava apoio. A Keidanren (Federação das Indústrias do Japão), uma das organizações mais influentes do país, publicou uma nota dura em resposta às iniciativas do governo.  

“O que a indústria quer em termos de recursos humanos não é que estejam ‘prontos para o combate’”, diz a declaração, em resposta a uma expressão que o governo utilizou ao se referir à preparação de jovens para encarar o mercado de trabalho. “Elas querem empregados que estão saudáveis, em boa forma física, e imbuídos de um senso de virtude pública”. 

A Keidanren defende ainda que “estudantes universitários devem adquirir um entendimento especializado no seu campo de conhecimento e, de forma igualmente importante, cultivar um entendimento da diversidade social e cultural através de aprendizados e experiências de diferentes tipos”.  

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Um estudo recente mostrou, por exemplo, que alunos de cursos altamente técnicos como as engenharias e as ciências naturais e matemáticas tinham piores hábitos de leitura do que aqueles matriculados em cursos de humanidades: segundo levantamento da Federação Nacional das Associações Cooperativas Universitárias do Japão, a Univcoop, cerca de 51,4% dos estudantes destes cursos costumam ler com diferentes níveis de frequência, contra 45,5% daqueles matriculados na área de ciências e apenas 37,4% nas áreas médica e farmacêutica.  

“Empresas estrangeiras no Japão costumam lamentar que é difícil recrutar empregados capazes porque a maioria dos candidatos tem uma falta de capacidade de reflexão, tem um inglês ruim e são excessivamente passivos, esperando por instruções em vez de tomar iniciativa”, argumenta Jeff Kingston, professor de estudos asiáticos da Universidade Temple, nos Estados Unidos.  

“As humanidades não são uma panaceia, mas minimizar seu papel no ensino universitário tem mais chances de exacerbar do que de retificar essas deficiências”, defende o pesquisador.  

Resposta do governo e consequências 

Diante da reação, o governo recuou. Já nas semanas seguintes à carta original que causou a controvérsia, o Ministério da Educação buscou rebater os questionamentos dizendo que havia sido mal interpretado. 

Segundo Yutaka Tokiwa, um oficial do MEXT, o “real significado” da mensagem enviada às universidades era reforçar que seriam necessários sacrifícios para sobreviver em um cenário com menos alunos e menos recursos, sem fazer uma exigência explícita pelo fechamento dos departamentos de humanidades – em vez disso, argumentou Tokiwa, a carta do ministério apenas questionava os reitores se eles acreditavam que a estrutura atual era a melhor para enfrentar a crise.  

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Apesar do desmentido, a demanda do MEXT por diminuir a oferta de cursos de ciências sociais e humanas não era exatamente contraditória à postura manifestada pelo governo anteriormente. 

“Em vez de aprofundar pesquisas acadêmicas que são altamente teóricas, vamos conduzir uma educação mais prática e vocacional, que antecipa melhor as demandas da sociedade”, havia afirmado o primeiro-ministro Shinzo Abe em uma reunião da OCDE em 2014. 

Além disso, pelo menos 26 universidades japonesas anunciaram o corte ou fechamento total de seus cursos nas áreas afetadas, e estima-se que pelo menos 1,3 mil vagas para professores de humanidades tenham deixado de ser abertas no ensino superior após a carta do ministério.  

A reforma perdeu força após o então ministro da Educação, Hakubun Shimomura, renunciar ao cargo no final de 2015. Por sua pasta também incluir o Esporte, Shimomura era um dos principais envolvidos na preparação para os Jogos Olímpicos de 2020, e foi derrubado após polêmicas envolvendo o primeiro projeto de reforma do Estádio Nacional de Tóquio, que viu seu orçamento inicial dobrar para 2 bilhões de dólares e teve a renovação cancelada. Um novo projeto, mais barato, foi selecionado após Shimomura deixar o MEXT.  

Subsídios e gratuidades buscam atrair alunos  

Apesar das manchetes internacionais que a carta do governo japonês rendeu na época, as mudanças prometidas afetaram principalmente as universidades onde os departamentos de humanidades já eram reduzidos. As instituições mais fortes, como a Universidade de Tóquio e a Universidade de Kyoto lideraram a resistência desde o início, anunciando que não alterariam seus cursos. 

Segundo Makoto Gonokami, presidente da Universidade de Tóquio, sua instituição não sofre com a falta de interessados em ingressar nos cursos que o governo ameaçava reduzir. A única mudança, argumenta Gonokami, é que “as universidades nacionais não poderão mais depender tanto das verbas estatais”.  

Para contornar a crise que afeta seu ensino superior, o governo japonês passou a investir em outras iniciativas, bem menos controversas. Com o objetivo de aumentar a relevância internacional da ciência produzida no país, o Japão iniciou em abril um projeto para ampliar o ensino do inglês nas escolas e aumentar a familiaridade dos estudantes com o idioma desde cedo. 

A idade mínima para o início das aulas foi reduzida em dois anos, começando agora na terceira série do ensino fundamental. Para aumentar a proporção de jovens interessados em cursar o ensino superior, o governo também começou a discutir neste ano um incremento dos subsídios para os estudantes, aumentando a gratuidade em todos os níveis de ensino, incluindo as universidades.  

Outras questões, no entanto, seguirão desafiando as autoridades pelas próximas décadas. O declínio populacional japonês não dá sinais de arrefecer, e algumas estimativas indicam que, até 2050, a população terá caído para cerca de 90 milhões de pessoas, frente aos 125 milhões atuais. 

Com menos recursos e estudantes, as universidades também precisam encontrar maneiras de continuar a formar cientistas – mesmo nas áreas técnicas priorizadas pelo governo de Shinzo Abe. 

Atualmente, a maioria dos jovens que se destacam na pesquisa científica não tem permanecido na academia, preferindo empregos mais lucrativos na indústria: menos de 10% dos japoneses que concluem um mestrado continuam os estudos e fazem o doutorado.  

O pouco interesse em avançar com as pesquisas acadêmicas faz o Japão temer pela continuidade da excelência científica que começou a construir após a Segunda Guerra Mundial: desde a virada do século, o Japão já teve onze Prêmios Nobel nas áreas de Física, Medicina e Química – dez deles trabalhavam em universidades do país ou do exterior.

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