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Parece estranho, mas o cérebro não é programado para ler. O que isso significa?
| Foto: Unsplash

A escrita, sem dúvida, é uma invenção decisiva para a história da humanidade. Para tudo o que se faz hoje, é quase que indispensável a utilização dessa habilidade. Mas para que chegássemos a essa circunstância, não foi tão fácil assim.

De geração a geração, foi necessário que se ensinasse, sistematicamente, esse conhecimento. É impossível, na história da humanidade, que alguém tenha aprendido a ler e escrever sem que tivesse passado por esse processo.

Enquanto algumas atividades são naturais para o ser humano, como andar, se locomover e, até, falar (salvo exceções, como casos de transtornos), a leitura é algo que o cérebro não foi programado para decifrar.

Este órgão, na verdade, não é capaz de, automaticamente, decodificar sistemas inventados pelo ser humano. É natural correr, por exemplo, mas não é natural jogar futebol. Para isso, é preciso ter conhecimento de uma série de regras.

No caso da leitura e a escrita, não é diferente. E é isso que explica o Augusto Buchweitz, doutor e pesquisador do Instituto do Cérebro e professor da Escola de Ciências da Saúde da PUC do Rio Grande do Sul. Leia a entrevista completa:

Aprender a ler e escrever é algo natural para o ser humano? Como o nosso cérebro reage a isso?

Há aprendizados que são mais naturais para o ser humano, como a linguagem oral e questões motoras. Outros, que estão relacionados com uma invenção do ser humano – como o sistema de escrita -, não são naturais.

O cérebro é programado para, naturalmente, desenvolver certas habilidades. Há dois tipos de conhecimento. Primeiro, os automáticos, também chamados de procedurais ou procedimentais, que são habilidades motoras. É tudo o que você começa treinando e depois vira automático, como engatinhar, caminhar, se levantar, ser bípede, ter coordenação motora, realizar movimentos bruscos e depois de coordenação fina, como usar os dedos para pegar objetos.

O outro conhecimento é o declarativo, que conseguimos verbalizar. Como, por exemplo, o que conseguimos explicar, pensar e filosofar. Também são as habilidades de linguagem oral, como a criança que naturalmente balbucia, começa a verbalizar palavras e, depois, se comunica. Mas, neste caso, não estamos considerando pessoas que têm transtornos. Salvo essas questões.

Mesmo a linguagem oral se desenvolve sozinha, involuntariamente?

Sim, não há como ela não se desenvolver. Existem relatos da década de 70 a respeito de uma menina encontrada no porão de uma família, na Califórnia, e que não tinha linguagem oral. Ela foi mantida lá desde criança. Salvo essas situações absurdas, a linguagem oral surge naturalmente para o ser humano.

Ela é estimulada pela socialização, mas, ao mesmo tempo, mesmo que esteja em um ambiente em que não se comuniquem diretamente com ela, vai aprender a falar. A criança precisa ouvir os sons da língua e, se houver interação com ela, é melhor ainda.

Mas embora ela aprenda normalmente, existem maneiras que influenciam a qualidade desse aprendizado e que, depois, são fundamentais para a alfabetização. A criança com quem você conversa mais, interage através da leitura de livros, terá mais vocabulário e conhecerá melhor os sons da língua.

Sabemos que, com crianças, geralmente, nós, adultos, utilizamos menos palavras, ou palavras mais simples. Pouco se fala, mais se dá comandos. Mas a qualidade da interação é muito importante para que se desenvolva uma boa qualidade oral.

Falar é natural, mas ler não. Como funciona, então, para aprendermos aquilo que o nosso cérebro não foi programado para aprender?

Neste caso, revela-se uma propriedade maravilhosa do nosso cérebro, que chamamos de plasticidade ou neuroplasticidade. É uma propriedade do cérebro de poder se reconfigurar ou formar novas conexões quando ele precisa aprender, e serve para toda a vida.

Quando uma criança é alfabetizada, por exemplo, e começa a aprender os sons da língua, rimas, a relação entre letras e sons, isso exige que ela reconfigure o cérebro para processar a linguagem nesse novo formato visual. Não é natural para o ser humano. Natural, para nós, é a linguagem oral.

Uma criança aprende a caminhar normalmente, mas, para jogar futebol, precisa ser ensinada e aprender uma série de regras e movimentos específicos. Ela também aprende a linguagem oral, mas, para aprender a ler, precisa ser ensinada. De um lado, o que é natural e, de outro, o que inventamos: o futebol, basquete, qualquer outro esporte, a leitura. O fato dela saber caminhar e correr não significa que ela sabe jogar futebol.

Assim como não é só pelo fato de a criança aprender a linguagem oral que, automaticamente, vai conhecer a linguagem escrita. Não vai. Ela precisa, sistematicamente, ser ensinada.

O que acontece no nosso cérebro quando aprendemos a ler e escrever?

Eu sempre faço uma brincadeira para exemplificar, que é a seguinte: se eu perguntar a alguém que não foi alfabetizado como ficaria a palavra amor de trás para frente. É Roma, certo? Mas ele não conseguiria fazer essa brincadeira, pois escuta um som e não tem, para esse som, uma representação visual. Por isso, não consegue ler de trás para frente.

Com base no que podemos afirmar que a palavra amor, de trás para frente, se torna Roma? Imaginamos a palavra e lemos. A gente reconfigura a linguagem, que passa a ter uma nova configuração de sons, associados a símbolos que a gente inventou.

Se eu perguntar, novamente, a uma pessoa que não foi alfabetizada, se as palavras "amor" e "andorinha" começam com o mesmo som, ela não vai acertar, necessariamente. Isso acontece porque ela não associa o som com a letra, e não consegue fazer essa relação. Quando somos alfabetizados, muda-se completamente a maneira como percebemos os sons da língua. Dividimos esses sons em pedacinhos menores do que normalmente dividiríamos. Mas uma pessoa que não é alfabetizada não consegue fazer esse tipo de brincadeira.

Se você tirar "cho" da palavra cachorro, e juntar o que sobra, o que fica? Carro, certo? Se você não foi alfabetizado, não conseguiria fazer essa relação. Esses são exemplos simples de como a alfabetização não é natural. Além disso, uma pessoa que não foi alfabetizada percebe a linguagem oral de uma maneira e, depois que é alfabetizada, muda tudo.

Por não ser natural, é necessário um ensino sistemático e explícito?

Sim. E o primeiro passo desse processo é que a criança tenha conhecimento dos sons da língua, para poder associá-los com letras. Isso não é natural e, quando aprendemos a ler e escrever, o cérebro passa por um processo de adaptação para perceber essas novas associações, conseguir juntá-las e formar novas palavras.

Alguém finalmente aprende a ler a partir do momento em que, sistematicamente, compreende que letras e combinações de letras formam associações.

É impossível pensar que vai memorizar todas as palavras do vocabulário, não existe como. Amanhã, por exemplo, se inventa um novo aplicativo, chamado truga. Essa palavra você nunca viu, e por que você conseguiu ler? Porque sabe o som que cada letra tem e quando junta consegue ler uma nova palavra.

É só assim que se consegue alfabetizar. Não tem outra maneira de conseguir quebrar o código e ler todas as milhões de palavras que existem. É preciso essa habilidade fundamental que é a base do princípio fônico: associar letras e sons.

Adultos encontram muito mais dificuldade. Na verdade, quanto mais se demora, mais difícil e pior é. É melhor alfabetizar mais cedo, com 5 ou 6 anos. Há evidências científicas de que essa criança tem muito mais chance de se tornar um bom leitor.

O que é fundamental nesse processo? Há métodos para alfabetizar que se destacam?

Esse é um processo de diversas etapas, que começa na primeira infância. Em uma primeira etapa, estímulos são importantes, para que a criança tenha arcabouço de vocabulário. E, também, para que a criança se sinta bem emocionalmente e perceba a importância da leitura. Crianças repetem muito o que veem e, se veem a importância do livro, começam a se interessar por isso.

A segunda parte é a quebra do código, quando se realmente alfabetiza. A melhor maneira de fazer isso é usar o princípio fônico, para ensinar a criança a associar letras e sons e as combinações que existem. Se a criança tem um bom arcabouço de linguagem e se utiliza o princípio fônico, o processo de alfabetização dura seis meses, no máximo, um ano.

O que vem a seguir é um outro desafio. Muitas vezes se critica a adoção do método fônico de forma infundada quando afirma-se que ele não propõe "formar o leitor", que é muito árido porque trabalha só a associação da letra com o som. Na realidade, ele é um instrumento fundamental, pensando em como o cérebro aprende e funciona.

A criança que não está bem alfabetizada, lê muito devagar e com muita dificuldade. Se você lê um parágrafo com muita dificuldade, quando chega no fim dele, é muito difícil entender o que está escrito.

Se eu pedir para que alguém que não sabe francês leia um parágrafo na língua, ela vai ler bem devagar, travando muito e, quando chegar no final, será muito difícil dizer o assunto daquele parágrafo. Se gasta muita energia para isso. Em termos simples, mal comparando, é o que acontece com a criança que não está bem alfabetizada. Ela lê com muito esforço e, quando chega no final de um parágrafo, se chegar, está cansada e não consegue dar o próximo passo.

O nosso cérebro tem limitações. Se gastamos toda a nossa energia no início, tentando ler as palavras, não sobra nenhuma energia para entender a história – que é algo difícil. Para entender a história, é preciso entender muita coisa.

A questão fundamental do processo de alfabetização é que é preciso fazer com que a leitura de palavras da língua seja algo automático, rápido, fácil, fluente e apurado. Se não for, é frustrante. Na escola, há crianças de 9 anos que não são alfabetizadas. Por que eles não leem? Porque é uma tarefa hercúlea ler 5 parágrafos. Tente ler um texto em alemão tendo que, a cada duas ou três palavras, parar para buscar o significado no dicionário. Você não vai ler, vai desistir. Ainda mais uma criança de 7 ou 9 anos, que se frustra muito mais rápido, e é muito mais difícil mantê-la interessada.

Parte da academia brasileira parece não aceitar evidências científicas, o sr. concorda?

Existem debates muito ideológicos, e isso, infelizmente, faz com que toda a atenção se volte para um lado que não tem a ver com o que realmente interessa, que é "qual o melhor jeito de alfabetizar uma criança, de acordo com a ciência".

Há centenas de estudos em diferentes línguas, países, de diferentes cientistas, que mostram sempre a mesma coisa. Quando se usa o princípio fônico para alfabetizar, o sucesso é sempre maior. É claro que, nunca, nada é 100%. Temos sempre que lembrar o que é uma probabilidade de ser mais eficaz, contra argumentos do tipo "na minha cidade, não funcionou".

Isso não se aplica a todos os casos individualmente, mas é uma ideia do que é melhor a nível de um país do tamanho do Brasil, que é muito heterogêneo. Existem princípios que se forem seguidos, vão ajudar muito, onde quer que você esteja.

A discussão sempre fica no nível da importância do texto e do conhecimento. Mas as pessoas precisam entender que, para que se desenvolva criatividade, compreensão de texto, é preciso de habilidades fundamentais, do básico.

Ninguém vai fazer cálculo em matemática sem aprender tabuada. Ninguém vai tocar uma obra de Beethoven sem, primeiro, aprender os acordes, e ficar repetindo, até que se consiga começar a ler a partitura.

Por que, então, na leitura, esse debate é invertido? É uma coisa maluca. Se você contratar um professor para dar aula de piano para seu filho, e ele pedir que ele toque uma obra de Beethoven, você, provavelmente, o mandaria embora. Diria que é preciso começar pelas notas, pelos acordes, como achá-los na partitura, e como fazer essa leitura para, depois, conseguir tocar uma partitura de Beethoven. Com a leitura, mau comparando, não é diferente.

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