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 | Daniel Castellano / Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo

Em março deste ano, estudantes e ativistas do movimento negro invadiram a reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. A ocupação, que se arrastou por dez dias, trazia contestação às mudanças dos critérios utilizados pela comissão de avaliação de cotas raciais para negros, pardos e indígenas. 

O problema nascera no mês anterior, quando a UFRGS publicou uma portaria estabelecendo a possibilidade de recurso para candidatos que comprovassem a chamada ascendência fenotípica. A rejeição à portaria obedece à seguinte lógica: se um candidato precisa invocar o critério racial de seus ascendentes é porque, provavelmente, ele próprio não é negro ou pardo. E, não o sendo, não deve utilizar a reserva de vagas. 

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Segundo os manifestantes, a lei que define as cotas raciais deve destiná-las exclusivamente a quem é potencial alvo de discriminação e esteve historicamente excluído do ensino superior. Em apoio ao movimento, dez membros da comissão verificadora pediram desligamento da função. 

Polêmicas como essa, envolvendo cotas raciais, não chegam a ser novidade. No ano passado, centenas de fraudes foram investigadas em universidades e instituições federais do país. Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, houve mais de 100 denúncias. Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), 26 alunos do curso de Medicina chegaram a ser afastados. 

Das 4.017 vagas oferecidas pela UFRGS no início de 2017, mais de 1,5 mil foram ocupadas por alunos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas até o segundo semestre. No mesmo ano, a instituição recebeu uma lista com nomes de estudantes que teriam burlado as regras de cotas raciais. Elaborado pelo coletivo Balanta, o dossiê averiguou a relação de aprovados no vestibular pelo sistema de cotas e comparou seus nomes com as fotos que eles apresentavam em redes sociais. 

À época, uma comissão especial investigou a situação. Depois de uma triagem, que eliminou nomes duplicados ou que não haviam feito matrícula, restaram 334 estudantes. A UFRGS convocou todos para uma aferição silenciosa, na qual os candidatos apenas se apresentavam perante os membros da comissão. Entre os presentes, 35 tiveram a declaração deferida, enquanto outros 239 precisaram entrar com recurso em segunda instância. Antes que o prazo esgotasse, no entanto, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a interrupção das verificações – a fim de evitar “constrangimentos e humilhações”. 

A desocupação de março só acabou depois que a universidade voltou atrás em parte de suas novas determinações. Desde então, a instituição se comprometeu a utilizar o fenótipo do candidato – a observância de sua aparência – como critério primordial para concessão da vaga, e não de seus ascendentes, como trazia a portaria. Agora, fotos e documentos de pais e avós servem apenas para extinguir dúvidas. 

O efeito da lei 

Conhecida como Lei de Cotas, a Lei 12.711 determina que universidades e institutos federais reservem no mínimo 50% de suas vagas a estudantes provenientes de escolas públicas. Dentro desse contingente, uma parte deve ser destinada a negros, pardos e indígenas. Em 2016, pessoas com deficiência foram incluídas. 

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Hoje, a reserva de vagas já é uma realidade Brasil afora. Críticas e fraudes também. “Acredito que as consequências desse tipo de entrada podem aumentar a tensão racial e os conflitos em longo prazo”, diz Fernando Holiday (DEM), vereador em São Paulo. 

Holiday acredita que o ideal seria um ensino básico de maior qualidade promovido pelo sistema de vouchers – quando o governo converte a verba de educação em tíquetes para que os próprios pais paguem a escola ou a universidade almejada para seus filhos. “Assim se instalaria uma concorrência entre setor público e privado. Enquanto isso não acontece, luto pela extinção completa das cotas raciais e a ampliação das cotas sociais para estudantes de escola pública”, afirma o vereador, que é negro. 

Professor de Antropologia na UnB, José Jorge de Carvalho defende o oposto. Para ele, a única maneira de equilibrar a desigualdade racial nas universidades é por meio das cotas. “Seria inocente dizer que as cotas não são necessárias”, diz Carvalho, que além de professor é coordenador do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI). “Basta perceber que o número de vagas nas universidades cresceu ao longo do século e a quantidade de estudantes negros, não”, segue. 

Conforme a legislação, uma revisão da política de cotas deve ser feita até 2022. O objetivo é avaliar a eficácia dos 10 anos do sistema e conferir se, de fato, houve maior representatividade a diferentes grupos sociais e raciais no ensino público superior. Caso não tenha sido produtiva, a medida poderá ser alterada ou até mesmo suspensa. 

A revisão é um mecanismo comum em quase todos os países com políticas de cotas. Atualmente, cerca de 30 nações se valem de algum tipo de reserva racial – que, em geral, não é permanente. Primeiro país a adotar um sistema de cotas, ainda na primeira metade do século 20, a Índia reservava vagas nas universidades e no serviço público para os chamados “dalits”, pertencentes à camada mais baixa do sistema de castas. Tidos como intocáveis e impuros, menos de 1% deles havia cursado ensino superior até 1950. Nos anos 2000, eles formavam cerca de 12% dos acadêmicos. 

No Brasil, ainda é difícil mensurar o impacto da Lei. É consenso, porém, que a medida alterou o perfil dos universitários brasileiros. Conforme relatório da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), se em 2003 cerca de 6% deles eram autodeclarados pretos (conforme classificação estabelecida pelo IBGE), em 2014 esse contingente havia subido para 9,8%. No mesmo período, os que se declaravam pardos saltaram de 28,3% para 37,7%. 

A participação das classes C, D e E também aumentou. Em 2014, dois de cada três estudantes de universidades públicas apresentavam renda de até 1,5 salário mínimo. Segundo a Andifes, essa pluralidade só foi possível graças à política de cotas, juntamente ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu). 

Após a aprovação, os cotistas devem atestar que estudaram integralmente em escola pública e comprovar renda per capita familiar – parte das vagas é destinada para candidatos com renda de até 1,5 salário mínimo per capita (equivalente a R$ 1.431,00), enquanto a outra atende os com renda familiar superior. No caso de negros e pardos, precisam também realizar a autodeclaração. Para indígenas, podem ser solicitadas assinaturas de lideranças da comunidade e de órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai). 

Cada universidade, no entanto, pode criar suas próprias comissões para verificação das informações. É o caso já citado da UFRGS, cujas aferições de fenótipo são feitas de forma presencial antes das matrículas. “Estamos aprendendo a corrigir e garantir a efetividade da política da reserva de vagas”, afirma Denise Jardim, coordenadora da Coordenadoria de Ações Afirmativas da UFRGS. “A Lei de Cotas é uma construção que permitiu reconhecer as dificuldades e as virtudes que a diversidade na universidade poderia alcançar”, complementa. 

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Inspiração 

No Brasil, o sistema de reserva de vagas surgiu pela primeira vez em 2003, no Rio de Janeiro, instaurado por uma lei estadual. A determinação fluminense é similar à norma nacional, mas possui particularidades. Entre elas, a destinação de parte das vagas para filhos de policiais mortos em combate. Só na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), entre 2003 e 2016, quase 23 mil novos alunos ingressaram por meio das cotas. 

Com o correr dos anos, alguns “mitos” se desfizeram, segundo o procurador Anderson Schereiber. “Existia um mito de que o aluno cotista tinha baixa performance e que, por isso, as instituições públicas estariam perdendo qualidade. Entretanto, ficou comprovado que o rendimento deles é igual, quando não superior”, disse o integrante da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ), que chefiou a comissão da revisão da lei estadual, no fim de 2017. 

Outro mito derrubado, afirma, diz respeito às taxas de evasão. Ao longo de 13 anos, 26% dos cotistas abandonaram a UERJ; já entre os que entraram pelo modelo tradicional, o índice foi de 37%. Com o resultado da avaliação, a PGE-RJ propõe um projeto de lei que renove as determinações da legislação vigente para os próximos dez anos. “Se você olha uma comunidade do Rio de Janeiro, vê que ela é 90% negra. Se você visita empresas ou escritórios de advocacia, nota que a maioria dos profissionais é branca”, critica Schereiber. 

Um número crescente de especialistas afirma que o Brasil ainda está longe de encerrar sua política de cotas, especialmente em função do histórico secular de exclusão. Na revisão de 2022, diversos pontos serão discutidos, como as diferenças entre cotas sociais e cotas raciais. Por exemplo: crianças negras bolsistas que estudam em escola de rede privada porque seus pais trabalham como merendeiras ou porteiros da respectiva instituição. Nesses casos, o jovem pobre e negro não consegue entrar na universidade pela reserva de vagas, enquanto estudantes de classe média, que cursaram escola pública, poderão. “É um sistema complexo reduzido em uma lei fraca, porque ela não dá conta dessas particularidades”, conclui Carvalho, professor da UnB.

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