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Ficção

O pichador de recados eróticos

Perfil inspirado em depoimento concedido por um pichador do Terminal Guadalupe

Daniel Felipe Fonseca

Ele é um machão. Se relaciona apenas com homens, mas gosta de deixar bastante claro: não é nada afeminado. Diz que o fato de fazer programas e de colocar mensagens sacanas nas portas de banheiros públicos, deixando nelas o seu telefone, não tem nada a ver com isso. Pois macho, para ele, é sinônimo de rude - esta, sua característica mais evidente.

Talvez justamente por ser desse jeito é que rabisque portas Curitiba afora. Tudo precisa ser - isso ele não diz, mas parece dizer - escondido. Até porque tudo o que é escondido é mais gostoso.

Não, ele não busca trabalhos freelancers - seu emprego fixo é em uma boate do Parolin. Ao deixar os telefones nos banheiros, procura é amizade mesmo. E, se a conversa fluir, quem sabe não rola alguma coisa a mais? Se vai ter grana na história, aí já é outro papo.

Gosta de ter vários amigos. Por isso é que, além da boate e dos recados nos banheiros, anuncia seu corpo em jornais e sites. Mas há uma diferença fundamental. Na noite, e nos anúncios em classificados, ele é um profissional e se chama Billy. Nas cabines, ele se permite ser apenas Márcio, ninguém além dele mesmo.

Define-se como um cara livre. Não tem compromisso com ninguém, nem pretende ter, tão cedo. Só com Deus. É um homem de fé, sim, mas tem uma queda pelo pecado. Praticamente, nunca namorou, ao longo de seus 32 anos. Teve um ou outro romance rápido em Itanhaém, São Paulo, onde morou antes de vir pra cá - nada que durasse.

Antes de entrar na vida, foi cozinheiro. Oito anos no total. Novo na cidade, seu salário era curto, bem como sua vida. Casa, trabalho; trabalho, casa. Desistiu por ter uma rixa com o patrão. Mas não é como se tivesse sido impelido a alugar o corpo. Antes, foi uma oportunidade.

Através das mensagens pornográficas e dos programas, conheceu rapazes e senhores dos mais variados tipos, de várias partes da cidade. Universitários, pedreiros, bancários, malandros, gente que já pegou travestis (esses não o agradam), forasteiros, gordos (esses também não). Sua maneira de fazer turismo.

Pichação da repórter - ou como eu ajudei a salvar o mundo

Patrícia Fernanda Pereira

Poucas regras envolvem a brincadeira de esconde-esconde: contar até 100; dizer "lá vou eu" quando for procurar; o primeiro a ser descoberto conta da próxima vez; o último que sair salvo pode salvar todos e, talvez a regra mais importante, não se esconder dentro de casa. Era uma tarde de domingo e lá estava eu quebrando uma regra no condomínio onde eu morava, no bairro Fazendinha.

A vontade de ir ao banheiro era tanta que decidi usar o tempo da brincadeira e fui para casa. Eu faria o que tinha a fazer e assim que terminasse procuraria outro esconderijo, ninguém saberia. Mas no meio do caminho tinha uma caneta e, como se não bastasse um, cometi outro delito e escrevi na porta do banheiro. Faltava criatividade e conteúdo relevante, por isso apenas anotei a data 26/04/1998.

Acontece que naquele ano era mania entre os jornais repetir que o mundo ia acabar na virada para o ano 2000. Eu morria de medo e sentia um calafrio cada vez que ouvia as vinhetas do Jornal Nacional e do Fantástico, tamanho o desespero. E num devaneio de criança, achei que minha pichação poderia acrescentar algo para a humanidade. Embaixo escrevi "26/04/sempre", que significava que sempre haveria um 26 de abril. O mundo não acabaria.

A pichação era tão pequena e insignificante (para os outros) que ninguém reparou nem me puniu. Era um segredo meu. Quanto ao esconde-esconde, não lembro o resultado, só sei que não descobriram meu crime. E durante muito tempo, quando eu olhava aquela data, tinha a segurança de que Nostradamus estava errado.

Essa foi minha contribuição para a não extinção da humanidade. Quase 14 anos depois, estou considerando seriamente escrever algo semelhante na porta do meu banheiro atual. Afinal, 21 de dezembro de 2012 está aí.

A cidade é um aglomerado de signos publicitários. Para onde se olhe, vê-se propagandas, logotipos, construções carregadas de conceitos. Há quem se incomode com isso. E quem invente formas de resistência - ainda que algumas delas sejam feitas de maneira inconsciente.

Basta ver a arte urbana. As pichações. Os rabiscos em carteiras escolares. Ou as inscrições em banheiros públicos. Para conhecer mais a fundo essa última modalidade de manifestação, a reportagem foi a campo. Brincando de colecionar frases de banheiro, como fazia no século passado o médico sanitarista Noel Nutels, passeamos por diversos banheiros públicos do Centro de Curitiba e de terminais de ônibus da cidade, num itinerário divertido e nada cheiroso.

Múltiplas vozes

Os banheiros são lugares de amores, desejos e desabafos. Por trás do anonimato que o cubículo oferece, ocorrem verdadeiras expressões de sentimento.

Jake e Ana se amaram, ou pelo menos uma delas estava morrendo de amores no dia em que passou por um sanitário do Centro. A mensagem, simples e direta, guarda uma impossibilidade: como saber quem são, afinal, Jake e Ana?

O escritor carioca Paulo Henriques Britto tem um poema, publicado no livro "Macau" (2003), que cai como uma luva para a questão. Nele, escreve: "(...) Tudo o que pensa passa. Permanece / a alvenaria do mundo, o que pesa. / O mais é enchimento, e se consome (...)". Nunca conheceremos Jake e Ana, de verdade. Mas elas interferiram "na alvenaria do mundo", deixaram sua marca. A mensagem denuncia a presença da passagem humana na Terra, e agregaram sentimento a um objeto.

Há quem duvide das juras de amor eterno de Patrícia e Allisom. No banheiro do Terminal do Boqueirão, onde a enamorada registrou seu amor, uma anônima desconfia da confidência: "Tudo mentira. Ele disse que ela é uma baranga buxuda" (sic). Não bastou declarar a paixão em um terminal apenas, Patrícia também fez o registro no Hauer, onde abaixo há outra resposta cética. "Alissom te odeia, buchuda, bunda caída".

Algumas cabines ao lado, em meio a declarações de amor e ódio, ofertas de emprego e convites para sexo, um tímido "não desanime", escrito em tinta azul, talvez de uma Bic das mais simples, passa uma mensagem de força para os corações aflitos. Com letras grandes, em outra porta, alguém diz que "Jesus Cristo está vivo". Ao lado, a frase "Aquele que tem sede e busca beber da água que Cristo dá, terá dentro de si uma fonte que jamais secará".

Por mais poéticas que sejam, as inscrições nas portas de banheiros públicos, não deixam de ser, economicamente, um problema para a cidade. Segundo dados da URBS, em 2011 foram gastos R$ 76 mil com consertos, substituições e limpeza dos estragos causados pelo vandalismo nas portas dos sanitários públicos de Curitiba. As estimativas apontam que o número de usuários dos banheiros públicos foi de aproximadamente 122 milhões, só no ano passado.

A auxiliar de limpeza e conservação Ana Maria Marquim, 50 anos, diz que precisa esfregar tudo com água, sabão e hipoclorito, "o melhor produto para isso", mas que geralmente não sai e cabe à Urbs pintar e repintar as portas dos terminais. Ana Maria também se incomoda com o teor do que é escrito. "Tem muita besteira. Se fosse só declaração de amor a gente nem ligava".

Reflexões na academia e além

As inscrições encontradas nas portas dos banheiros públicos podem expressar tanto anseios e interesses do indivíduo como também manifestar reflexões sobre a sociedade. Para o fotógrafo e documentarista Diogo Marques, diretor de "Urbanographia Digitalizada de Baixa Resolução (2006)", sobre arte urbana, as pichações mais pessoais tendem a interferir mais na memória individual do autor do que causar grande impacto na memória coletiva. Marques identifica que existe um número crescente de registros fotográficos destas mensagens com um teor mais crítico. E é a partir da construção de um acervo destas pichações que é possível ampliar os olhares sobre a cidade. "Parte da arte das intervenções urbanas feitas em Curitiba passam aos poucos a fazer parte de uma memória social".

As mensagens deixadas nos banheiros da Unicamp chamaram a atenção dos estudantes de Letras Ivan Perina, Luana Pizzi e Taís Franciscon. Os alunos desenvolveram a pesquisa "Letramentos marginais na universidade: o caso das pichações em banheiros", e investigaram as pichações encontradas nos banheiros de três institutos da universidade, entre 2010 e 2011. Para os estudantes, o que diferencia as pichações feitas nos banheiros das que são realizadas na cidade é que o banheiro é um espaço híbrido, que consegue ser ao mesmo tempo público e privado. Em outras palavras, pode ser frequentado por qualquer pessoa, mas sem que seja possível identificar o autor de determinada inscrição. "Dessa forma, o agente da ação escreverá um texto anônimo, mas as pessoas que ele quer que vejam suas críticas, sugestões ou desabafos, possivelmente irão ver", argumenta Luana.

Taís explica que o grupo analisou os banheiros como ambientes que preservam a intimidade do indivíduo. Neles são realizadas uma série de atividades que, embora sejam naturais e comuns a todos, permanecem como tabus na sociedade. Por isso, o espaço se torna confortável para a expressão de outros temas polêmicos.

A ideia da pesquisa ultrapassou o meio acadêmico. Em 2011, os alunos criaram um tumblr "Olha a cagada" http://olhacagada.tumblr.com/, para publicar as fotografias das pichações encontradas nos banheiros da Unicamp. Eles contam que o "Olha a cagada" foi considerado um dos 20 tumblrs mais engraçados pelo portal Uol, com uma média de 250 acessos diários. "Por mais que as pichações sejam 'privadas' (em vários sentidos) atraem muito a atenção de qualquer um, mesmo de pessoas de fora da universidade", considera Ivan.

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