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Abrir um jornal para ler: houve um tempo em que esse gesto que você faz agora – prezada leitora, caro leitor – lançou as bases para a formação das nações. Inspirado no filósofo alemão Hegel, para quem os jornais, no século 19 europeu, passaram a ser a oração matinal do homem moderno, o historiador britânico Benedict Anderson propôs a teoria das "comunidades imaginadas" nacionais. Anderson investiga a consolidação das nações a partir da emergência de um fenômeno próprio das modernas sociedades capitalistas: a leitura simultânea, numa língua comum, de jornais e romances por um número crescente de concidadãos.

Não faz lembrar o gesto sincronizado de torcer para a seleção de um país, especialmente em Copa do Mundo? Nos últimos anos, pesquisando relatos de imprensa antigos sobre rivalidades no futebol internacional, conheci Crítica, o mais popular jornal da Argentina no início do século 20 e o primeiro a dar atenção constante ao futebol naquele país. Um caso, como muitos outros, de comunidade nacional imaginada no campo de jogo – e via imprensa.

Ocorre que na outra margem do Rio da Prata, o vizinho Uruguai também buscava, nessa mesma época, se consolidar como nação: os uruguaios venceram dois torneios olímpicos de futebol, em 1924 e 1928 – este último contra a própria Argentina na final; e coroaram aquela era de ouro da afirmação de sua nacionalidade erguendo em casa a primeira Copa do Mundo, em 1930, quando mais uma vez ganharam uma final dos argentinos.

O curioso é que Crítica– um jornal, lembremos, de Buenos Aires – manteve, ao longo da década, um discurso mais regionalista do que nacionalista, insistindo em que os dois "povos", além da língua, tinham em comum um suposto estilo de jogo. Uma narrativa que se repete na cobertura de alguns jogos entre selecionados argentinos um pouco improvisados e clubes ingleses em visita a Buenos Aires (o primeiro jogo entre as duas seleções propriamente ditas só ocorreria, acreditem, em 1951, em Wembley): o jornal exalta sempre um tal jeito "riopratense" de jogar, em oposição ao inglês.

Várias Copas, uma guerra e um Maradona depois, a rivalidade que ficou é entre os dois países, Inglaterra e Argentina, e não entre platinos e britânicos. Vendo Uruguai e Inglaterra em campo, no jogo que selou o destino inglês nesta Copa, só me vinha à cabeça a oração matinal da nação "riopratense", diariamente repetida na Crítica quase um século atrás: o Uruguai de repente era um pouco a Argentina, e Suárez, o carrasco azul-celeste da vez.

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