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A relação entre futebol e política é muito mais estreita e antiga do que julga nossa vã filosofia. Logo, quem pensa que essa ligação é recente e data da época em que o Presidente Lula levou a público sua declarada paixão pelo Coringão vai achar surpreendente saber que tudo isso começou no início do século passado, poucas décadas após o futebol ter sido introduzido no Brasil. Segundo reza a história do esporte, Charles Miller trouxe da Europa, em 1894, uma bola e algumas camisas – condição básica para a realização da primeira "pelada" em território nacional. Já a utilização ou associação política com o futebol teria início na Era Vargas, por volta de 1930. Em O futebol explica o Brasil, do jornalista Marcos Guterman, percebe-se nitidamente os contornos da relação do futebol com a vida brasileira e o modo como o brasileiro se enxerga pelo futebol. Aliás, é essa a temática do livro. Uma obra que se debruça sobre a história do país e faz o favor de contá-la ao mesmo tempo em que destaca a importância do esporte mais amado do Brasil nas estratégias políticas governamentais que marcaram, durante quase um século, a vida pública nacional. Em visita a Curitiba durante a participação em um evento que se propôs discutir a relação histórica entre política e futebol, Guterman – que também é editor do Primeira Página do jornal O Estado de São Paulo – conversou com a Gazeta do Povo sobre o surgimento do esporte no país e a relação entre futebol e política. Ao fim da entrevista ainda deu palpites para a escalação de Dunga e também sobre a atual situação da Seleção Brasileira. Como surgiu a ideia do livro? A verdade é que fui procurado para escrever o livro. Defendi, há alguns anos, o mestrado em História na PUC/SP e objeto de estudo do trabalho era a Copa de 1970 e a relação com o governo do Presidente Emílio Garrastazu Médici. Então a Editora Contexto viu a tese e me convidou para escrever um livro sobre essa relação da vida política, econômica e a busca da identidade nacional, transpassadas pela história da introdução do futebol no Brasil. Qual a estrutura do livro? Foi escrito em ordem cronológica? Sim, a metodologia do livro é cronológica. Ele começa com a história republicana e a introdução do futebol no Brasil e eu vou até 2002 para fechar um ciclo. (...) Foi uma escolha intencional. A república , assim como o futebol, começou branca e elitista, pois só brancos jogavam. No início as equipes eram compostas só por homens brancos e demorou um bom tempo para que essa política de segregação fosse rompida. E como foi que o esporte se tornou tão popular? A massa humana que se mobilizava a partir dos anos 1920 era formada por trabalhadores que queriam começar a jogar futebol, pois admiravam o esporte. E o futebol só tem essa atração popular porque ele permite que o mais fraco vença. O jogo foi concebido de tal maneira que o time mais forte não necessariamente irá vencer. No jogo, a malandragem, o jeitinho ou o talento podem se impor às normas estratégicas da disputa e alterarem o resultado final . Os brancos europeus até hoje são preocupados com a estratégia do jogo. O brasileiro veio para romper essa rigidez. Então o povo se identificou de imediato com o novo esporte? Essa massa tratou de se impor pelo esporte, pela cultura, já que não tinha voz política. O futebol foi essencialmente o eixo em torno do qual os trabalhadores se organizaram para se afirmar política, social e economicamente a partir do inicio do século XX. E isso permaneceu assim até o início deste século, quando o povo elegeu um Presidente com o qual podia se identificar. É por isso que o livro se encerra em 2002? O livro termina na Copa de 2002, época em que também se finaliza uma fase histórica do Brasil. Esse ciclo termina com a eleição de um torneiro mecânico, Lula, à presidência da república. A massa tinha ganhado voz política. Mas é importante notar que o Presidente não se legitima pelo futebol como outros candidatos já o fizeram. No caso de Lula, ele se comunica pelo futebol. Ele entende como a massa decifra os signos do futebol. Outro símbolo do fim desse ciclo, que também encerra o livro, foi o Cafu que ao erguer a taça usava uma camisa na qual podia se ler: 100% Jardim Irene. Apesar de ter vencido, de estar no topo, ele não se esqueceu de onde veio e, mesmo sem se dar conta talvez, fez questão de deixar clara a reforçar essa mensagem de fim de um ciclo. Essa passagem também está no livro. Quando o futebol começou a ser usado politicamente? A partir de 1930. Temos aí o surgimento do rádio, o inicio do projeto nacional de Getúlio Vargas e a política brasileira se encontrando como futebol brasileiro. Vale destacar que houve uma transição até o nosso futebol se tornar o que é e ter características nacionais reconhecidas mundialmente. O futebol é uma manifestação esportiva popular onde o brasileiro consegue enxergar uma forma de expressão que é sua. A seleção de 1938, que chegou em terceiro e perdeu só para a Itália, surpreendeu a toda a nação e também ao mundo. Ali o futebol era um elemento político, uma arma utilizada pelo ditador Benedito Mussolini para incendiar o nacionalismo italiano – isso no caso da Itália. Getúlio, aqui no Brasil, também passou a usá-lo ao se comunicar com as massas. Ele passou a fazer discursos para a rádio nos estádios Pacaembu (SP) e São Januário (RJ). Ele sabia o que o trabalhador sentia quando estava no estádio e tratou tirar proveito desse sentimento popular. E qual o envolvimento de Getúlio com o esporte? Embora Getulio tenha colocado gente dele na comissão técnica da seleção, sua interferência nas decisões relacionadas ao esporte não foram tão grandes. Getulio gostava de golfe não de futebol, logo a interferência getulista se deu de modo marginal se comparado ao que aconteceu a partir de 1960. Foi quando a TV chegou ao Brasil, o que proporcionou muita agilidade na comunicação. E isso fez toda a diferença na hora de utilizar o futebol como instrumentos para a massa. Então a ditadura que se instalou no país a partir de 1964 também utilizou o futebol como instrumento de identificação com o povo?

O projeto da ditadura sempre esteve casado com a ideia de que, como no futebol, nós podemos mais que os outros. Não foi a ditadura que inventou a manipulação ou a associação da imagem do Governo ao futebol, isso já existia. Quando a ditadura se instalou já encontrou essa estrutura formada, herança de outras épocas relacionadas à vontade de transformar o Brasil numa grande nação. Qual a relevância do futebol na vida pública nacional? Nenhum político pode abrir mão de ver sua imagem relacionada ao futebol, por conta da grandiosidade do esporte na cultura nacional. Nem FHC se furtou a colaborar e a fazer vistas com o futebol. Disse até que torcia para dois times, um pela manhã e outro à noite. (Risos). A Copa de 50 é outro exemplo de relação entre vida pública e futebol. O país inteiro se mobilizou para sediar e realizar a copa. Assim como acontece hoje, na época se colocou em dúvida se o país conseguiria ou não fazer a Copa e fez. Ergueu Brasília. A mobilização política em torno disso, teve muito peso e um sentimento de nacionalismo gigantesco se espalhou pela nação. Mas não podemos relacionar política com exploração do futebol. Ganhar ou perder a copa do mundo nunca elegeu um presidente. Perde-se eleição mesmo em ano de sucesso em copa, ou vice-versa. Em 82 quando o Brasil perdeu a copa houve um debate gigantesco sobre a identidade do Brasil. Tudo estava em cheque, modelo econômico, sistema político, etc. O Brasil jogou super bem naquele ano, mas não levou. Logo, não basta jogar bem. Tem que ter competência técnica. E isso passou também para a vida política nacional. O governo do Collor tem haver um pouco com isso, pois significava a ascensão da eficiência e da inovação. E em relação à Copa do Mundo deste ano? O que os brasileiros podem esperar da seleção? Em Copa do Mundo pode acontecer qualquer coisa, mas o Brasil está forte. Ganhou de grandes times durante a preparação e as eliminatórias, mas é difícil saber. Há a Espanha, com quem o Brasil não jogou recentemente. Muitos dizem ser ela o bicho-papão dessa Copa. Além do que, essa seleção não é um time de grandes talentos individuais como em 1998. Há, sem dúvida, bons jogadores, mas não há grandes craques como Rivaldo ou Ronaldinho (R9) em seu auge. Faltam jogadores que possam decidir. O Robinho tá jogando mais de meia do que como atacante e isso acabou por sacrificar parte de seu talento natural. Eu acho que tem o Brasil até tem chances, porque a camisa pesa e o time está todo na mão do Dunga, mas não o considero favorito. E já há planos para um próximo livro? Uma continuação talvez? Não tenho planos para outros livros agora, pois essa é uma atividade que consume muito a gente. Foram dois de pesquisa, dois para escrever. Uma trabalheira danada, então não pretendo voltar a fazer isso tão cedo.

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