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Gazeta do Povo – Em 2006 faz 50 anos da assinatura do seu primeiro contrato com o Santos. Em valores atuais, seu salário não seria maior do que o de um jogador mediano. O que mudou no futebol de lá para cá?

Pelé – Aquela era uma época que dava para fazer a vida também. Mas era diferente. O Santos, para pagar o salário, tinha que fazer excursão. Em janeiro e fevereiro excursionava pela América Latina e África, e junho e julho, que era verão, no Hemisfério Norte, viajava para a Europa. Naquela época a arrecadação eram os ingressos e as cotas dos times. Como a renda dos jogos não dava para cobrir as propostas que eu tinha para ir para a Europa, o Santos fez um acordo comigo e começou a pagar com uma parte da cota. Se tinha uma cota sem o Pelé, 50% do que passasse disso era do Pelé. Mesmo depois da Copa de 58, uns três ou quatro ganhavam mais que o Pelé. Então não dá para fazer comparação. O que mudou mais de lá para cá foi o envolvimento das grandes empresas no futebol. O futebol virou uma máquina de fazer dinheiro em todos os sentidos.

Uma indústria...

A grande mudança foi essa. Eu brinco com o Ronaldinho e com o Robinho: "vocês ficam reclamando que estão jogando muito, mas pra ganhar o que vocês ganham num mês a gente jogava 10 anos". Reclamam de tudo. O material esportivo, por exemplo. Hoje você põe a chuteira no pé como um mocassim. Antigamente as chuteiras eram duras, tinham de ser amaciadas. E como a gente amaciava? Pegava os coitados dos juvenis e eles ficavam treinando 15 dias com as nossas chuteiras para depois a gente jogar. Mas tem outra mudança, a social. Quando a seleção brasileira foi pra final da Copa em 58, eu falei: "poxa não tem nenhum negro". Eu ficava encafifado. Por quê só no Brasil que tem negro, nas outras seleções não? Hoje tem negros em todas as seleções. O Brasil foi abrindo as portas e mudou socialmente o futebol.

Recentemente houve casos de racismo no futebol na Europa. Você já teve esse problema?

No nosso tempo, quando a gente ía jogar na Argentina eles falavam: "os macacos do Brasil". A gente entrava em campo e o Santos mandava brasa, ganhava o jogo. Os caras falavam "negro", o outro respondia "a tua mãe". Acabava o jogo, acabava tudo. Hoje, com o número de jogos que temos em todo o mundo, tem só um caso de briga pessoal que o outro chama o outro de negro, ou de alemão, de feio, ou de bonito. Aí todo mundo fala em racismo no futebol. Isso é um absurdo. É um caso esporádico. Essa briga que tem, que sempre teve e não vai mudar nunca, é uma briga de cada um dentro do campo.

Então aquele caso do Grafite...

Foi um absurdo. É a mesma coisa no caso de doping. Um jogador ou outro aparece com doping e aí fala-se em "doping no futebol". A gente tem que ver é a sociedade, os problemas que antigamente não havia no futebol. Nos campos não tinha hooligans, não tinha briga. Então são os problemas sociais de hoje. O mundo atual, essa falta de emprego, falta de segurança, guerra em todo lugar. Isso leva os jogadores, as torcidas, a desabafar de vez em quando dessa maneira.

Também não se vê hoje o exemplo da Suécia na final da Copa de 58, de enxugar o gramado para não prejudicar o futebol brasileiro. Esse tipo de gentileza não se vê mais, não é?

Infelizmente na vida atual, na sociedade atual, e aí não tem nada que ver no futebol, é a própria maneira de ser administrada as nossas vidas pelos políticos que pesa nisso, porque você não tem segurança nenhuma. É corrupção em todo lugar. Se você fala em corrupção na política, em todo lugar se vê corrupção na política. Isso é real. Agora, uma briga ou outra no futebol, no meio de tantos jogadores e tantos jogos, isso é coisa esporádica.

Ao longo da sua carreira, você foi jogador de um único clube. Hoje você conseguiria manter a façanha de jogar num time só?

Eu acho que sim, porque não mudou nada. São as mesmas propostas que tive naquela época, fortunas para sair do Santos. O presidente da Fiat queria dar ações ao Santos para o Pelé jogar no Juventus da Itália. Quando o Real Madrid levou o Didi, o Vavá, depois foi o Nenê, fez a mesma proposta para o Pelé. O Juventus, o Milan, queriam levar o Pelé de todo jeito. O Zito também teve proposta pra sair, não saiu. O Pepe teve proposta pra sair, não saiu. Vários jogadores na época saíram. Mas nós no Santos estávamos bem e não quisemos sair. E agora seria igual, porque eu joguei sempre por amor ao Santos, à seleção brasileira.

Os saudosistas dizem que naquela época se jogava por amor à camisa, diferentemente do que acontece hoje. É verdade?

É verdade. Quando você falava no Tostão, sabia que era do Cruzeiro. Falava no Rivellino, sabia que era do Corinthians. Hoje a falta de fidelidade do jogador é tão grande que ele não tem receio de fingir. É contratado pelo Real Madrid, ou aqui no Brasil pelo Santos, aí vai na torcida e é apresentado – agora é uma festa, apresentam o jogador como se já tivesse ganho a partida – e o cara vai e beija a camisa. No outro campeonato vai para o Flamengo ou para o Vasco e beija a camisa para o público da mesma maneira. Então não existe mais amor ao clube, existe amor ao dinheiro. Essa foi realmente uma grande mudança de comportamento. Infelizmente hoje a matéria fala mais em quase todos os sentidos.

Muitas vezes hoje o jogador ganha mais fora de campo, com contratos publicitários, do que dentro de campo. Isso é bom ou ruim para o futebol?

Isso é o mundo moderno. Não é só no futebol, é em qualquer esporte. Até no tênis, que não tinha publicidade, hoje você vê os jogadores cheios de marcas. O técnico, inclusive, acho que o técnico que fez o início do campeonato não poderia ir para outra equipe antes de terminar aquele campeonato. O técnico fica três, quatro jogos numa equipe e muda no mesmo campeonato, aí conhece o jogador, conhece a outra equipe. Vai como olheiro. Isso é um absurdo. E no Brasil há troca de técnicos a toda hora.

E há casos de técnicos que mudam de time no meio do campeonato e se tornam campeões com oito, dez partidas.

E outra coisa, tem técnicos que acabam o contrato ou foi mandado embora, trabalha no outro time e tem salário nos dois. É o futebol atual, onde a preocupação maior é faturar. A coisa do jogador ter proposta de fazer publicidade, isso é normal. O jogador tem que saber escolher. Se eu quisesse ganhar dinheiro, o que tenho de proposta para fazer propaganda de bebida alcoólica, de cigarro. Não aceito, mas respeito quem faz porque o jogador de futebol tem 15 anos de carreira, no máximo 20, e aí tem de estar garantido para o resto da vida.

E você, ganhou mais dinheiro dentro ou fora do campo?

Olha, eu posso garantir que ganhei mais dinheiro fora do campo do que dentro, justamente por causa das possibilidades. Mas dentro, o que ganhei com o Santos, depois com o Cosmos nos cinco anos que passei lá, graças a Deus deu pra fazer minha vida. Não posso reclamar, não.

Os empresários e as empresas de marketing mais atrapalham ou mais ajudam o futebol?

A maioria dos clubes está falida e um monte de presidentes de clubes diz que está vendendo jogadores por causa da Lei Pelé, do passe livre. Por quê na Europa os jogadores não saem tanto e têm o passe livre também? Porque na Europa eles são profissionais, são bem administrados. O Flamengo vendeu uns 80 jogadores e está falido. Cadê o dinheiro? O Vasco está com problemas e vendeu jogadores. Então o problema é falta de honestidade, da corrupção na administração. Não tem nada a ver com a Lei Pelé. Ela veio beneficiar o jogador. Agora, se o jogador que tem o passe livre, que deixou de ser escravo do clube, pôs o passe na mão do empresário, é problema dele.

O Brasil é o maior celeiro de craques do mundo, mas seu futebol é mal administrado. Esse é o motivo da falência?

Infelizmente. Dentro do campo, é o maior país do mundo no futebol, na administração é o pior. Se estivesse bem administrado, o Flamengo não estaria falido. O Flamengo é o time que tem mais torcida no mundo e está falido. O dinheiro que entrou há pouco tempo sumiu e até agora ninguém sabe para onde foi. Agora a culpa é do passe do jogador?

Por quê o futebol demorou a ter contratos milionários se comparadado a outros esportes com menos praticantes, como o basquete e o beisebol?

É diferente. No beisebol e no futebol americano sempre teve passe livre. O que os Estados Unidos faturam no basquete o Brasil deveria faturar no futebol. Mas a administração não é profissional. Um tempo atrás quem mantinha os times do interior de São Paulo eram os grandes da capital. O Santos, o Corinthians, o Palmeiras contratavam os jogadores dos times pequenos e eles se mantinham. Agora os garotos estão saindo dos times pequenos e indo direto para a Europa.

Do ponto de vista comercial, o Brasil tem agora a seleção brasileira mais cara de todos os tempos. Mas você acha que ela é a melhor?

Individualmente é uma das melhores. A de 82 chegou a ter o mesmo nível, mas não tinha o mesmo número de jogadores. Essa safra tem praticamente duas equipes do mesmo nível. O Robinho é o melhor da América Latina e é reserva. Como conjunto, a gente ainda não sabe. Na Copa de 70 o Brasil tinha talvez uns oito supercraques, não tinha 22, e até hoje ainda é considerada pela Fifa a melhor do mundo. Essa seleção brasileira de agora é uma das que tem mais talentos individuais.

Você ainda consegue ver futebol com a mesma paixão e ingenuidade do menino que se surpreendeu ao ver o pai chorar porque o Brasil perdeu a Copa de 50?

Bom, eu não queria ver o Brasil perder também (risos). Continuo assistindo futebol. Tivemos há uns dois, três anos um lampejo do Santos daqueles tempos, que foi com Robinho e o Diego. Era gostoso ver o Santos jogar. Sofro pra caramba, mas vou ver.

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