“Eu compro essa briga com as ONGs, com isso de associar o desmatamento com a expansão da fronteira agrícola brasileira. Em primeiro lugar, essas ONGs precisam plantar árvores nos países deles”.
Essa frase foi proferida há onze anos, em janeiro de 2008. Seu autor foi o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele, na época, criticava a ação do Ministério do Meio Ambiente, então conduzido pela ministra Marina da Silva, que havia denunciado o crescimento na derrubada das matas na Amazônia, relacionando-o à ação do agronegócio. “Antes é preciso investigar e verificar o que aconteceu”.
Um ano antes, o Senado havia criado uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a transferência de recursos financeiros da União para as organizações não governamentais (ONGs), em especial as que atuavam na Amazônia. Na mesma época, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, assinava uma portaria determinando que a Secretaria Nacional de Justiça preparasse uma lista detalhada de todas as ONGs atuantes na região.
Em 2008, o ministro da Justiça, Tarso Genro, declarou: “Grande parte dessas ONGs não está a serviço de suas finalidades estatutárias. Muitas delas escondem interesses relacionados à biopirataria e à tentativa de influência na cultura indígena, para apropriação velada de determinadas regiões, que podem ameaçar, sim, a soberania nacional”. No ano seguinte, o secretário nacional de Justiça do governo PT, Romeu Tuma Júnior, afirmou que as ONGs que não fornecessem detalhes de suas operações seriam consideradas ameaça à segurança nacional e expulsas do país.
Em 2012, 305 convênios do governo com entidades sem fins lucrativos, somando R$ 755 milhões, foram investigados pela Controladoria-Geral da União. Dois anos depois, sob o mandato de Dilma Rousseff (PT), o governo aprovou o marco regulatório das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) visando aumentar a transparência da prestação de contas dessas entidades.
Agora as ONGs estão novamente no centro de uma polêmica. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) sugere que o corte de repasses para essas instituições tem relação direta com as queimadas identificadas na região. Independentemente da veracidade da acusação, o fato é que existem 15.900 entidades não governamentais agindo na região. Muitas delas são estrangeiras e recebem também repasses de fora do país.
Neocolonialismo verde
O tema incomoda o atual governo. A primeira medida provisória assinada por Bolsonaro na presidência atribuía à Secretaria de Governo a responsabilidade de monitorar as atividades de ONGs e outras instituições internacionais atuantes no Brasil. Ainda em janeiro, o Ministério do Meio Ambiente suspendeu convênios com ONGs e determinou o levantamento de todos os repasses do Fundo Clima e do Fundo Amazônia, que dava suporte a 52 projetos, somando aproximadamente R$ 600 milhões.
“Muitos fatos alimentam o debate sobre a internacionalização da Amazônia, provocando incidentes diplomáticos”, afirma a cientista social Andréa Rabinovici, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em artigo de 2008 sobre o assunto:
“Defende-se seu uso sustentável, em contraposição à sua transformação em um jardim botânico do mundo, sem uso econômico, apenas para ser admirada. A agenda brasileira soma negociações sobre o tema, envolvendo desde o uso de madeiras até o acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios”.
A pesquisadora aponta que a ação é antiga e bem enraizada na região: “A partir da década de 1960, muitas ONGs transnacionais elegeram a floresta amazônica como alvo de suas campanhas. Programas e projetos têm sido responsáveis por grande parte da formação da opinião pública sobre a região, bem como parte fundamental nas soluções”, afirma.
“Muitos governos locais anseiam pelos aportes de recursos canalizados pelas ONGs para a conservação de suas florestas, cientistas batalham pelo financiamento de suas pesquisas e a geração significativa de conhecimento publicado por elas”. Em resposta, os críticos chamam a ação de “neocolonialismo verde”. De fato, as organizações não governamentais atuantes na região são milhares, têm orçamentos bilionários e enorme influência sobre a região.
Entidades investigadas
“As ONGs transnacionais, acusadas pelos militares de internacionalizar a Amazônia, respondem a estas questões tornando-se brasileiras em seus estatutos e trabalhando em parcerias com entidades locais”, prossegue Andréa Rabinovici. “As Big International Non Governamental Organizations (BINGOS) muitas vezes criam campanhas especiais, que incrementam substantivamente a arrecadação de recursos financeiros. Estas campanhas, bem-sucedidas na captação, nem sempre demonstram efetividade na conservação da biodiversidade, fato explicado em parte pelo desconhecimento efetivo da realidade local, ou pela priorização de demandas equivocadas”.
Depois das investigações de 2012, outras ONGs, estrangeiras e nacionais, foram alvo de fiscalização. Em 2017, a organização não governamental Missão Evangélica Caiuá passou a ser investigada por uma força-tarefa composta pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Contas da União, pelo Ministério Público do Trabalho e pela Polícia Federal.
A instituição, fundada em 1928 e especializada no cuidado de saúde dos indígenas de todas as regiões do Brasil, com destaque para as ações em Roraima, recebeu mais de R$ 2 bilhões de repasses do governo federal ao longo de cinco anos – a ONG atua desde o início do século, mas os repasses dispararam depois de 2010.
Missões religiosas
De acordo com o levantamento As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil – 2016, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atuam na Amazônia Legal 15.900 ONGs, de um total, no Brasil, de cerca de 400 mil. O perfil dos fundadores e dos participantes varia muito, assim como o foco do trabalho, que pode ir da proteção a comunidades indígenas até a preservação ambiental, passando pelo financiamento de pesquisas.
Do total de entidades atuando na região, 35,94% têm caráter religioso. Associações patronais e de produtores rurais vêm em segundo lugar, em 18,95% do total. As ONGS dedicadas ao meio ambiente e à defesa de minorias respondem por 3,25% do total.
Segundo o Mapa das Organizações da Sociedade Civil, criado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as entidades instaladas na região Norte geram 70.645 empregos, menos do que os 166.206 do Centro-Oeste, os 305.430 do Nordeste, os 410.070 do Sul e os 1.351.812 do Sudeste.
De onde vem o dinheiro? Segundo a pesquisa TIC Organizações sem Fins Lucrativos, realizada em 2012 com base em entrevistas com 3.546 organizações de todo o Brasil, a principal fonte de recursos é a contribuição dos associados. Mas, dos valores coletados com doações, a maior parte vem do governo, que contrata essas entidades para desenvolver parcerias.
As doações vindas do exterior são importantes, como aponta a pesquisadora Paula Renata Pantoja de Oliveira, em artigo sobre o financiamento de entidades de defesa dos direitos humanos no Pará. “O estudo demonstrou que a captação de recursos das ONGs analisadas realiza-se através de estratégias dominantemente ausentes de práticas de gestão institucionalizadas”, ela escreve, “altamente dependentes de recursos de doações internacionais, dotadas de baixa diversificação na captação de recursos, e sustentavelmente frágeis no processo de manutenção de suas atividades”.
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