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Cena de "Crocodile", episódio protagonizado por Andrea Riseborough | Netflix/Divulgação
Cena de "Crocodile", episódio protagonizado por Andrea Riseborough| Foto: Netflix/Divulgação

ALERTA DE SPOILER: o texto revela vários detalhes da quarta temporada de Black Mirror.

Habilidades proféticas são frequentemente atribuídas à série "Black Mirror" e ao seu criador, Charlie Brooker. O episódio de 2011 sobre um primeiro ministro e um porco teve ressonâncias no mundo real. O episódio "The Waldo Moment" gerou manchetes virais que relacionavam o conteúdo do programa com a chegada de Donald Trump ao poder. E teve ainda "Nosedive", o episódio que se passava em um mundo onde a vida de uma pessoa depende da avaliação de até cinco estrelas em uma rede social – basta pensar na ideia da China de um sistema de crédito social

Mas "Black Mirror" também é sobre o presente. As tecnologias futurísticas de plausibilidade variável da série antológica são usadas como meio para dizer algo sobre o que somos capazes de fazer a nós mesmos e aos outros agora mesmo. 

Nos seis episódios da quarta temporada, que foi lançada recentemente na Netflix, a coisa mais assustadora não é a tecnologia, mas os seres humanos. 

"Crocodile", um episódio sombrio e difícil protagonizado por Andrea Riseborough e uma maravilhosa paisagem da Islândia, narra a história de uma mulher bem-sucedida que mata pessoas para impedir que seu passado arruine seu futuro. A tecnologia presente do episódio é uma poderosa máquina que coleta memórias, controlada por uma investigadora inteligente, ética e educada – interpretada por Kiran Sonia Sawar. 

Mas a tecnologia não é o motivo pelo qual a personagem Riseborough começa a matar; ao contrário, é uma figura do seu passado que planeja revelar um segredo mútuo do jeito mais analógico possível, uma carta anônima para a polícia. 

Já o truque tecnológico que possibilita "USS Callister" – amplamente considerado o episódio mais marcante da temporada – é um já usado por Brooker em "Black Mirror" antes. E é um bom truque: colocar uma consciência humana na linha de fogo de que tipo de crueldade somos capazes de fazer usando a tecnologia quando achamos que ninguém está olhando ou que ninguém poderia nos responsabilizar.

Em "Callister", essas consciências vivem dentro de um jogo privado de simulação controlado por Robert Daly, diretor técnico bastante quieto de uma empresa de tecnologia interpretado por Jesse Plemons. 

Durante seu tempo de descanso, Daly construiu um simulador que permite que ele seja o capitão de bordo do USS Callister – a aeronave de seu programa favorito de televisão. Sua tripulação consiste nas consciências roubadas de seus colegas de trabalho que cometeram algum deslize contra o personagem de Plemons no mundo real. Tudo que Daly precisa para criar um novo prisioneiro é roubar uma amostra do DNA das pessoas – o que ele faz com uma nova funcionária, Nanette Cole (Cristin Milioti). Cole, uma jovem que admira o trabalho de Daly, não sorri o suficiente para ele em determinado momento, fazendo com que seu DNA tenha uma viagem só de ida para o Callister. 

O episódio alterna cenas do mundo de Daly e o mundo real, enquanto a consciência presa de Cole tenta libertar a si e aos clones dos colegas de trabalho do controle de Daly. O episódio alcança duas coisas ao mesmo tempo: ser uma emocionante história de aventura no espaço e personificar a crueldade de uma masculinidade tóxica. Para Daly, o que pode parecer um escape para o ressentimento e a raiva de ser o bom cara sem ser reconhecido como tal é mostrado como realmente é, algo extremamente violento. 

Em 2017, boa parte da população que usa internet já vivenciou o tipo de crueldade online que o Callister mostra, mas o episódio vai ter ressonâncias mais óbvias e particulares com as mulheres dos mundos da tecnologia e dos games, que já experienciaram vários tipos de assédio online. 

Já a estrutura de "Black Museum", uma história sobre violência contra americanos negros, é bastante simples: Nish, interpretada por Letitia Wright, segue Rolo Haynes (Douglas Hodge) em um tour pelo seu museu, o Black Museum, uma atração decadente de beira de estrada no meio do deserto americano. O museu está repleto de artefatos tecnológicos que foram usados em algum tipo de crime. Muitos dos espectadores regulares de "Black Mirror" conhecerão algumas das histórias, mostradas por objetos de episódios anteriores. Mas nem todos: duas novas histórias (para os espectadores, pelo menos) levam Haynes para as histórias curtas que dão para esse episódio um tom de antologia. 

Em uma dessas histórias, Haynes conta a narrativa de um médico que se tornou dependente da experiência de sentir a dor dos pacientes por meio de um instrumento novo. A história é contada com um tom de humor negro: ela contém a violência brutal que se esperaria de um filme de tortura pornográfica e uma piada intencionalmente gratuita sobre ereção. Na segunda história, um homem concorda em compartilhar seu cérebro com sua mulher em estado de coma. Quando a presença constante dela leva os dois a brigas, a esposa é removida do crânio de seu ex-marido e colocada em um macaco de pelúcia. 

Mas então a estrutura de antologia é deixada de lado e o espectador descobre o que Hayne e Nish sabiam o tempo todo: a principal atração do Black Museum é a consciência aprisionada de um homem negro que morreu no corredor da morte – apesar de existirem várias dúvidas sobre sua culpa. Hayne já tinha lucrado muito da tortura da consciência desse homem, permitindo que turistas puxassem a alavanca e o eletrecutassem seguidamente. 

O souvenir mais cobiçado do Black Museum? Um chaveiro que contém um pedaço da consciência do homem no momento do eletrocução, seu rosto distorcido em agonia, para sempre. O novo e tecnológico souvenir é herdeiro de uma ideia antiga: fotos de linchamentos de negros eram vendidas para americanos brancos, frequentemente no formado de cartões postais. 

Nish visita o Black Museum quando ele já foi abandonado pelos visitantes, e a consciência do prisioneiro de Hayne já foi torturada até alcançar um estado vegetativo. Não há mais graça em eletrocutá-lo, nem mesmo para os sadistas e supremacistas brancos que mantiveram as portas de Hayne abertas depois que os turistas pararam de aparecer. 

Mas Nish não esqueceu: ela é a filha do homem. 

Quando ela revela quem ela é, ela fala de outro tipo de dor – o tipo que permanece quando uma injustiça é abandonada sem ser resolvida, mesmo quando outras injustiças são cometidas sobre ela. Nenhuma inovação tecnológica é necessária para relacionar o que é dito por Nish com nossa realidade. Existem várias relações com ensaios, entrevistas e artigos de escritores negros sobre o trauma da morte negra, repetida e viral. 

O que não foi planejado foi a relação com outros eventos atuais: um dia depois do lançamento do episódio, a filha de Eric Garner, a ativista Erica, faleceu aos 27 anos. 

"Mesmo os manifestantes se entediaram depois de algum tempo, logo que ficou claro que o estado não faria nada por eles. Eles se moveram para a próxima injustiça e criaram uma nova hashtag". 

Nanette Cole (Cristin Milioti) em cena do episódio “USS Callister”Jonathan Prime / Netflix

Tanto "Callister" como "Black Museum" têm fins vingativos. Não são exatamente finais felizes, mas não são tão sombrios ou sem esperança como espectadores podem esperar. O lado bom vence: assim como "Na Colônia Penal", de Kafka, os caras maus encontram seu destino através da tecnologia que eles controlavam e perverteram. 

A repetição do tema de consciência humana e os finais vingativos do primeiro e último episódios da série são bons. Mas, enquanto assistia "Black Museum", senti como se estivesse vendo a série se jogar num paradoxo do qual nunca vai conseguir escapar. 

Como muitos já perceberam antes, "Black Mirror" não é um programa para aqueles que odeiam a tecnologia. Ele nos convida a aproveitar e temer as possibilidades que a tecnologia pode trazer. Mas, ao fazer isso, ele também pede que o espectador chegue ao mesmo nível de violência humana.

Tradução de Gisele Eberspächer
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