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Agricultores franceses chegam em tratores a Montpellier para se manifestarem em frente à prefeitura da cidade, no dia 26 de janeiro de 2024.
Agricultores franceses chegam em tratores a Montpellier para se manifestarem em frente à prefeitura da cidade, no dia 26 de janeiro de 2024.| Foto: EFE/EPA/GUILLAUME HORCAJUELO

O protesto dos agricultores que há meses se espalha na Europa também se manifestou na Itália nos últimos dias, com os tratores saindo às ruas para expressar também (felizmente de maneira calma e civilizada) um mal-estar difuso e profundo.

As manifestações de descontentamento no meio rural começaram há cerca de um ano na Bélgica e na Holanda. No país das tulipas, surgiu até mesmo um “partido dos agricultores”, que foi um sucesso clamoroso nas últimas eleições provinciais, obtendo 19% dos votos, demonstrando um consenso que vai além do peso relativamente modesto da população “camponesa”. O mal-estar de todo o mundo agrícola europeu em relação às políticas da UE se espalhou com uma espécie de “efeito dominó”. Da França (onde o estrume espalhado pelos “paysans” nas cercanias do Palácio do Eliseu se tornou um símbolo da raiva dos agricultores contra os excessos da burocracia, a lentidão e o assédio de uma administração acusada de não respeitar aqueles que trabalham no campo) à Alemanha (onde a “gota d'água” foi a abolição dos subsídios ao diesel agrícola anunciada pelo governo “semáforo” - as cores da coalizão de partidos que formam o governo da Alemanha hoje, verde, amarelo e vermelho), passando pela Romênia, Polônia, Hungria e Grécia, todo o velho continente foi atravessado pela agitação dos agricultores.

Até mesmo na Itália, o fogo do protesto ardia sob as cinzas há algum tempo. E agora parece estar aceso, dando vazão a motivações às vezes confusas, como acontece com frequência com aqueles que acham que “está tudo ruim”: reclamam das dificuldades do mercado, dos custos de produção, da imobilidade dos representantes sindicais (de fato em crise de identidade), e até mesmo dos danos causados pela fauna não nativa introduzida por iniciativas “ambientalistas” provavelmente precipitadas.

O “cidadão” pode ficar tentado a descartar essas expressões de protesto como uma “ameaçadora turba reacionária” ou como a defesa de “privilégios corporativos anacrônicos” de um setor que na economia moderna parece, em uma análise superficial, ter muito pouco peso. Isso, como no ditado que diz que “quando o dedo aponta para a lua, o tolo olha para o dedo”, seria um erro muito grave.

A agricultura proporciona segurança alimentar e de bens de consumo para os oito bilhões de habitantes do planeta e, de acordo com as estatísticas da FAO, o percentual de subnutridos caiu de 13,1% em 2002 para menos de 8% registrado entre 2012 e 2019. Não se deve ignorar, no entanto, a lenta escalada da porcentagem de subnutridos, com valores novamente acima de 9% desde 2020.

Lembremos também que, graças à fotossíntese, a agricultura global absorve 42 gigatoneladas de dióxido de carbono todos os anos, enquanto emite apenas cerca de dez. Essencialmente, é o único setor socioeconômico altamente relevante e estruturalmente ativo em termos de emissões.

As estatísticas também nos dizem que, em nível europeu, os alimentos produzidos pela agricultura nunca foram tão saudáveis: por exemplo, na Itália, de acordo com dados do Ministério da Saúde Italiano (relatório de 2020), as amostras de alimentos com resíduos de produtos fitossanitários que não estão em conformidade com as regulamentações (notoriamente muito restritivas e prudenciais) são de apenas 1,5% entre as frutas e os legumes e 0,7% entre os cereais, enquanto nenhuma amostra “fora da lei” foi encontrada nos setores de óleo e vinho.

Por fim, o papel da agricultura não deve ser ignorado em termos paisagísticos: muitas paisagens que os cidadãos insistem em considerar naturais são, na verdade, o resultado da ação milenar dos agricultores que as mantêm até hoje graças à sua atividade. Soma-se a isso o fato de que a agricultura controla o território, protegendo-a do risco hidrogeológico, conforme demonstrado pelos eventos de inundação que também afetaram recentemente as áreas montanhosas que, nas últimas décadas, foram abandonadas pela agricultura e reocupadas por florestas frequentemente degradadas.

Um outro elemento para fazer pensar aqueles que querem ir além do lugar comum é o fato de que a agricultura hoje fornece renda para cerca de três bilhões de seres humanos (um bilhão dos quais estão envolvidos na criação de animais), os quais trabalham em 590 milhões de fazendas (9,1 milhões somente na União Europeia). Esses números evidenciam uma complexidade estrutural gigantesca que deve nos levar a evitar interpretações baseadas em slogans ou preconceitos ideológicos: para entender as causas do mal-estar do setor agrícola europeu, devemos ir até a leitura das contas econômicas e de cultivo de fazendas individuais.

O Green Deal mata a agricultura e ameaça o meio ambiente

Entre os cidadãos europeus, está mais difundida do que nunca a ideia de que apenas uma agricultura “natural” e não intensiva é a única verdadeiramente sustentável do ponto de vista ambiental. Pelo contrário, os dados científicos de que dispomos indicam claramente que o meio ambiente é protegido justamente pela intensificação da agricultura com a ajuda de tecnologias inovadoras e de “baixo impacto” baseadas na ciência (genética animal e vegetal, técnicas de cultivo e reprodução etc.), enquanto os sistemas agrícolas com baixa eficiência de produção geram impactos ambientais por unidade de produto muito maiores e geralmente insustentáveis.

Basta refletir, por exemplo, sobre o fato de que, para obter a mesma quantidade de bens com a agricultura extensiva, que produz metade da quantidade por unidade de área que a agricultura intensiva, é necessário o dobro de terra, que hoje só poderia ser encontrada por meio da derrubada de florestas e do desmatamento de pastagens naturais, com enormes danos à biodiversidade. Ou reflita sobre o fato de que, para produzir um litro de leite e levá-lo à mesa do consumidor, é emitido hoje 1,3 kg de CO2 equivalente se esse leite vier da criação intensiva em grandes estábulos abertos, enquanto que esse valor sobe para 3,7 kg de CO2 se o mesmo leite for produzido por animais criados no pasto. Escrevemos isso não tanto para demonizar a pecuária de pasto (o pastor errante da Ásia não é um “vilão” e o produtor de leite das montanhas alpinas e dos Apeninos é um recurso para a conservação da terra!), mas sim para estigmatizar a insensata demonização da agricultura intensiva que já está em andamento há algum tempo.

Infelizmente, afirmar os méritos da agricultura intensiva baseada em pesquisa científica e inovação tecnológica aos olhos do público está se tornando cada vez mais difícil. Durante anos, prevalecem visões grotescas e pseudocientíficas que, por meio da mídia, influenciam as ideias da opinião pública e da política em nível nacional e europeu. É também dessas visões enganosas que deriva a abordagem geral da UE do “Green Deal" (acordo verde), que na agricultura se reflete nas estratégias “do campo para a mesa”, “biodiversidade” e “renaturalização”. Medidas desconcertantes estão tomando forma a partir destas estratégias, incluindo:

  • 1. A intenção de reduzir em 50-60% a quantidade de produtos fitossanitários permitidos para uso, com base em um “algoritmo” rígido que não leva em conta nenhum aspecto racional e coloca em risco toda a proteção fitossanitária das culturas: se as culturas não forem protegidas contra insetos, fungos patogênicos, bactérias, ervas daninhas e outros inimigos, os produtos obtidos serão, em muitos casos, menos saudáveis (muitos fungos e bactérias patogênicos são capazes de produzir toxinas com efeitos negativos para a saúde) e, em muitos casos, tão escassos que sua colheita não será econômica. Vale lembrar que o impacto dessa abordagem “proibicionista” é particularmente perigoso para a agricultura dos países mediterrâneos (Itália, Espanha, Grécia e Portugal), que se baseiam em culturas (frutas, videiras e hortaliças) que têm necessidades significativas em termos de defesa fitossanitária.
  • 2. A intenção de expandir a agricultura orgânica de 9% para 30% da área agrícola utilizada. Isso levará a quedas de rendimento de 20 a 70%, dependendo da cultura, resultando em uma explosão de importações em um momento em que, globalmente, a segurança dos suprimentos de alimentos e energia é a principal prioridade para os Estados que desejam manter sua soberania. Será que a guerra russo-ucraniana não nos ensinou nada?
  • 3. A decisão de “renaturalizar” vastos territórios onde a atividade agrícola ocorre há milhares de anos, sem se perguntar o que resultará disso em termos de defesa contra enchentes ou de defesa da atividade agrícola contra espécies selvagens invasoras.

Tudo isso está ocorrendo em um contexto europeu marcado por uma persistente desconfiança em relação às tecnologias inovadoras de aprimoramento genético (OGM - organismos geneticamente modificados, NBT - new breeding techniques, novas técnicas de melhoramento), cuja rejeição preconcebida coloca os agricultores europeus em uma posição quantitativa e qualitativamente inferior em relação aos concorrentes de outras áreas agrícolas do mundo.

No final, o cahier de doléances (lista de demandas) dos agricultores está realmente cheio, tanto do lado dos méritos não reconhecidos quanto do lado das políticas de “decrescimento”, perigosas não apenas para o setor agrícola, mas para a sociedade como um todo.

Esse protesto é realmente útil?

O protesto dos agricultores só será útil se ajudar a entender uma realidade que vai muito além das “reclamações” do momento, mas que afeta toda a política europeia. Porque o “ambientalismo mal-compreendido” que parece condicionar as instituições da UE (mas também entorpecer os governos nacionais) corre o risco de causar danos à economia, à sociedade e, paradoxalmente, até mesmo ao meio ambiente. Em particular, a política agrícola europeia parece estar orientada para um dirigismo rígido que se assemelha cada vez mais a uma transformação sub-reptícia da agricultura europeia em Colcoz soviético, por meio da qual uma “classe dominante” divorciada da realidade, mas firmemente estabelecida nos “palácios” de Bruxelas, nos Ministérios ou nas Províncias, gostaria de impor aos produtores um assistencialismo sufocante, composto de subsídios semelhantes a esmolas diante de regras operacionais impraticáveis e absurdas a serem aplicadas “no campo”.

Para acompanhar o protesto com a proposta, seria necessário, hoje, engajar-se no “diálogo estratégico” sobre a agricultura, ao qual a Presidente Von der Leyen finalmente se declarou disposta. Mais ainda, seria útil restabelecer em uma nova base a “aliança” entre agricultura e sociedade na qual se baseia a segurança alimentar, hoje exposta a riscos reais. Para que isso aconteça, no entanto, é indispensável uma base cultural, que talvez esteja faltando tanto ao mundo agrícola como aos tomadores de decisões políticas, sobre a qual as instituições acadêmicas terão de empenhar-se cada vez mais profundamente para o interesse geral.

Flavio Barozzi, doutor em Ciências Agrárias na Università degli Studi di Milano, é presidente da Società Agraria di Lombardia. Luigi Mariani é professor de Agronomia na Facoltà di Agraria di Milano.

©2024 La Nuova Bussola Quotidiana. Publicado com permissão. Texto publicado em duas partes no original em italiano: “La UE che dichiara guerra agli agricoltori firma la sua rovina” e “Il Green Deal europeo uccide l'agricoltura e minaccia l'ambiente”.
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