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Lula em encontro com evangélicos no Rio de Janeiro
Lula em encontro com evangélicos no Rio de Janeiro| Foto: EFE/André Coelho

Com a disputa palmo a palmo por votos nesta reta final da corrida presidencial, a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem demonstrado ciência de que não há como desprezar o eleitorado evangélico (algo como 65 milhões de pessoas ou 31% da população, segundo dados do Datafolha de 2020). Se, no passado, Lula transitava facilmente entre grandes lideranças protestantes, como Edir Macedo e Silas Malafaia, nos últimos anos viu esse apoio migrar para Bolsonaro. Para contornar a situação, além de se aproximar de parlamentares evangélicos e abrandar o discurso sobre temas controversos, como o aborto, a campanha petista tem investido em uma estratégia online simulando movimentos protestantes orgânicos, o que pode violar as normas eleitorais, segundo juristas ouvidos pela reportagem.

Em 2018, Malafaia, que é líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, declarou que Bolsonaro “é o único que defende diretamente a ideologia da direita”, encarnando “os valores mais caros ao nosso povo na questão dos costumes”. Ou seja, a fala deixa implícito que evangélicos costumam ser mais inflexíveis a mudanças nas pautas de costumes propostas pela militância de esquerda, como aborto, ideologia de gênero e legalização das drogas. O fato de a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, ser evangélica também é um trunfo da campanha de Bolsonaro e tem transformado o meio protestante em uma barreira para os planos petistas.

Para quebrar o gelo com esse público, Lula tem se aproximado de parlamentares evangélicos, como a senadora Eliziane Guerra (Cidadania-MA), que é evangélica e filha de pastor. O petista também aposta em um discurso mais brando, manifestando inclusive na carta aos evangélicos, divulgada neste mês, não ser a favor do aborto, ao contrário do que disse há seis meses, durante evento promovido pela Fundação Perseu Abramo, quando defendeu a legalização da prática.

"Aqui no Brasil, por exemplo, as mulheres pobres, elas morrem tentando fazer aborto, porque é proibido, o aborto é ilegal. Então, a mulher pobre, ela fica cutucando o seu útero com uma agulha de crochê, ela fica tomando chá de qualquer coisa (...) Quando a madame pode fazer um aborto em Paris, ela pode escolher Berlim, ir para Berlim, procurar uma boa clínica, e fazer um aborto. Aqui no Brasil ela não faz porque é proibido, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo mundo ter direito e não ter vergonha”, disse Lula, na época.

O efeito, no entanto, tem sido limitado, restando ao PT o apoio de comunidades evangélicas progressistas isoladas, como a independente Igreja Batista do Caminho, do pastor Henrique Vieira, recém-eleito deputado federal (PSOL-RJ).

Em uma estratégia mais agressiva para para capturar o eleitorado cristão, a militância petista tem se valido de notícias falsas para afastar os evangélicos de seu adversário —  com campanhas de difamação associando Bolsonaro à maçonaria, ao satanismo e até à pedofilia. Outra tática de Lula é a promoção de uma campanha dissimulada para atrair os evangélicos, criando sites e perfis nas redes sociais que simulam movimentos evangélicos orgânicos. As plataformas encenam, portanto, apoio espontâneo dos evangélicos a Lula, mas têm por trás a própria campanha petista.

Segundo juristas, a prática pode ser enquadrada como violação de diversos princípios e normas eleitorais, e ter como punição desde a remoção do conteúdo e multa até uma declaração de inelegibilidade do candidato.

Restitui Brasil

Quem acessa o site Restitui Brasil e suas redes sociais, se não observar atentamente, não percebe que a plataforma pertence à campanha de Lula como meio de ganhar a simpatia do eleitorado evangélico. A primeira mensagem que surge ao acessar a página é um versículo bíblico e, logo abaixo, há um espaço para que se faça um cadastro, incluindo nome, e-mail, telefone, estado e igreja.

O apoio a Lula aparece aqui e ali no site, voltando-se ao público evangélico: os gritos de guerra do PT contra as “elites” são trocados por mensagens de paz e clamores por união, os clichês marxistas dão lugar a mensagens bíblicas — mas que enfocam sempre a “justiça social; o Lula sindicalista é trocado pelo “Lula pastor'', fazendo orações.

Em outro espaço do site — que possui uma paleta de cores azul-amarelada, totalmente diferente dos tons de vermelho característicos de campanhas passadas do petista — é pedido para que se façam orações pelo Brasil, por Lula e por Alckmin, acrescentando o texto bíblico: “Quando os justos governam, alegra-se o povo'', mas omitindo o segundo trecho do famoso provérbio: “mas quando o ímpio domina, o povo geme”, (Provérbios 29:2). Atitude semelhante à de Lula em sua Carta aos Evangélicos, onde citou que sempre pensava no trecho bíblico que diz: “A verdadeira religião é cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades. (Tiago 1:27)”, mas novamente cortava e omitia o final deste versículo, que não lhe era favorável, que acrescenta: “e guardar-se da corrupção do mundo”.

Na seção “quem somos” do site não é informado quem é seu autor ou o dono, mas há um texto que diz que são “evangélicos, seguidores de Jesus, membros de diferentes igrejas, em diferentes estados brasileiros, comprometidos com a Democracia e com a vida em abundância”. Estes, dizendo-se preocupados com o futuro da nação, acreditam que a eleição de Lula e de Alckmin é “a alternativa imediata e urgente para frear os males que nosso país está enfrentando” e para “restituir tudo quanto nos foi roubado”.

Apenas nas últimas seções do site, intituladas “O Brasil da Esperança” e “O Que Queremos”, fica claro que este pertence à campanha de Lula — embora estas seções só tenha sido inseridas no site recentemente, conforme mostram os registros feitos em agosto no sistema Archive Web, que guarda cópias de sites e páginas na internet em determinado momento. Outra confirmação de propriedade é o fato de o link do Restitui Brasil estar no portal de transparência do TSE ao lado de diversos outros sites pertencentes ao petista.

Evangélicos com Lula

Outra campanha dissimulada de apoio a Lula é encontrada no perfil do Instagram Evangélicos com Lula, que traz diversas publicações exaltando a religiosidade do candidato petista. Uma delas, feita em agosto deste ano, traz a legenda “Não viveremos em um governo das trevas! É hora de clamar pela restituição do Brasil”. Um vídeo, publicado no último dia 13, trazia a legenda “como ser um verdadeiro cristão?”, com imagens de Lula abraçando idosos e depoimentos de protestantes a favor do candidato.

Junto do perfil há um repositório de arquivos para a militância, que também pertence ao Restitui Brasil e traz diversas mensagens bíblicas para a campanha de Lula. Há mensagens de apoio de pastores, como Azoil Zerbinato, da Igreja Metodista do Rio de Janeiro, que afirma: “Chegou a oportunidade de dar um basta à fome e ao desemprego, aos crimes contra às mulheres e de unir o povo brasileiro pra fazer um Brasil grande novamente”, frase semelhante à utilizada por Donald Trump em sua campanha à presidência nos Estados Unidos, em 2016.

Evangélicos com Lula possui também uma página no Facebook. Em sua seção “sobre”, não é informado que se trata de um perfil pertencente à campanha de Lula, mas consta: "Sejam bem-vindos à página criada ao apoio de evangélicos à candidatura de Lula. Ela é administrada por um grupo de evangélicos pró Lula". Entretanto, através de sua biblioteca de anúncios — que são voltados, principalmente, para o público de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, locais onde Lula está buscando virar votos — pode-se observar que o perfil pertence à candidatura de Lula, já que a rede social obriga que anúncios eleitorais tenham público o nome do político que patrocinou a publicação.

Verdade na Rede

Situação similar ocorreu no fim de setembro, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou que a campanha de Lula retirasse do ar o site Verdade na Rede, sob pena de multa no valor de R$ 10 mil, após a campanha de Bolsonaro ter ajuizado representação argumentando que o site estaria se passando por uma agência de checagem independente para divulgar propaganda eleitoral em prol de Lula e contra o candidato à reeleição.

Ao deferir pedido de tutela de urgência, a ministra Maria Claudia Bucchianeri observou que os usuários do site Verdade na Rede, ao se cadastrarem para receber conteúdos, seriam induzidos a acreditar que este era um veículo politicamente neutro e “sem indicativo claro de que os dados fornecidos de boa-fé seriam direcionados a uma campanha eleitoral”. Outro ponto destacado por ela é o fato deste site ter as cores destoantes de todos os outros pertencentes a Lula.

“A pessoa precisa saber que está se submetendo a uma propaganda para saber se quer consumir essa propaganda eleitoral ou não. Me pareceu grave a organização do site como uma agência de checagem”, afirmou a magistrada.

Infrações eleitorais

Mestre em Direito Constitucional, Caio Guerra, que é advogado e professor universitário, recorda que, como a página Evangélicos com Lula e o site Restitui Brasil estão vinculados como dados de campanha eleitoral do candidato Luiz Inácio Lula da Silva junto ao site do TSE, apresentam viabilidade de propaganda eleitoral na internet, segundo a Lei das Eleições (9.504/1997).

“Assim sendo, o site e a página do Facebook, por não serem expressamente rotulados como propaganda eleitoral e nem se identificarem como produzidos conforme o interesse da aliança que lançou a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, violam diversos princípios e normas eleitorais, tendo como destaque o ‘princípio da obrigatoriedade de transparência’”, explica Guerra.

Ele cita ainda uma violação ao artigo 242 do Código Eleitoral, que estabelece que a propaganda eleitoral deverá sempre mencionar a legenda partidária, não devendo “empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”.

Já para Miguel Vidigal, advogado especialista em Direito Civil e diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), dizer quais irregularidades estão presentes no caso da campanha Evangélicos com Lula se torna até difícil, devido aos tempos que o país está passando. Ele exemplifica com a retirada da internet de um documentário produzido pela Brasil Paralelo que, mesmo não trazendo qualquer fake news, segundo a própria decisão do TSE, conteria uma “desordem informacional” capaz de confundir o “eleitor ordinário”. Vidigal frisa que as aspas são do próprio ministro Ricardo Lewandowski, ao julgar o pedido.

“Não consigo entender uma decisão que paute sua proibição por um conceito que inexiste em nosso ordenamento jurídico. Mas, se aquele documentário incorreu nesse erro, me parece que, nitidamente os casos indicados acima também feriram o princípio inovador criado pelo ministro e seguido pela maioria de seus pares”, acrescenta o jurista.

Vidigal recorda que a resolução 23.610/2019 do TSE determina que “a utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiras(os), pressupõe que a candidata, o candidato, o partido, a federação ou a coligação tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação, sujeitando-se as pessoas responsáveis ao disposto no artigo 58 da Lei das Lei das Eleições, sem prejuízo de eventual responsabilidade penal”.

O advogado também lembra a polêmica resolução 23.714 do TSE, expedida na última quinta-feira (20) pelo ministro Alexandre de Moraes, estabelecendo que é vedada, “nos termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”.

Conforme o artigo 96 da Lei das Eleições, “reclamações ou representações” por propaganda eleitoral irregular podem ser feitas por qualquer partido político, coligação, candidato e o Ministério Público eleitoral, devendo “relatar fatos, indicando provas, indícios e circunstâncias”.

O advogado e consultor jurídico Silvio Kuroda, especialista em Direito Público e ex-assessor de ministro de Tribunal Superior, reforça que a liberdade de expressão e de pensamento, garantias previstas no artigo 5º da Constituição Federal, são bens jurídicos ligados diretamente à manifestação da vontade. Nesse sentido, a prática para alcançar os evangélicos pode ser tratada como uma conduta sistêmica e continuada de induzir a população mais vulnerável, principalmente idosos e adolescentes eleitores, o que o Direito Civil chama de vício de consentimento (apoiando-se em uma falsa ideia da real situação das coisas, a pessoa supõe algo que, na verdade, não é).

“No âmbito penal, induzir alguém a erro, por meio fraudulento, com a finalidade de obter vantagem ilícita de qualquer natureza, caracteriza, ainda, o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal, além de ilícitos eleitorais e até mesmo ato de improbidade administrativa se for agente público, conforme o caso. Para a apuração, cabe representação ao Ministério Público Eleitoral ou ao Juiz Eleitoral para a instauração de Ação de Investigação Judicial Eleitoral”, afirma Kuroda. O advogado explica que, em caso de comprovação de ilegalidade, as penalidades podem ser variadas, como a declaração de inelegibilidade, a cassação de candidatura ou mandato, a remoção de propagandas e multas.

A Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria de Lula, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.

Conteúdo editado por:Bruna Komarchesqui
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