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Pela lógica, quanto mais pessoas no mundo, maiores as chances de se criar vínculo de amizade com alguém. No entanto, o mundo contemporâneo tratou de desmentir a lógica: o crescimento de habitantes é sinônimo de relações menos densas. Das civilizações antigas às relações fugazes atuais, os vínculos afetivos entre amigos são analisados no livro Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche, de Jelson Oliveira, coordenador do curso de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Ao contrário da civilização grega, que valorizava a amizade, o mundo contemporâneo sofre com vínculos rasos. "A falta de relações sociais mais saudáveis pode ser uma das causas até da violência urbana", opina o autor. Portanto, a amizade se transformou em uma virtude emergencial dos tempos atuais. No conceito da obra, o amigo é aquele que faz suas certezas serem derrubadas. E, como consequência, traz sofrimento – algo terminante proibido pela sociedade, de acordo com Oliveira.

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Por telefone, o professor co­­men­­tou sobre seu livro e explicou os motivos da citação ao filósofo alemão Nietzsche no título. "Mi­­nha intenção era mostrar que, além do lado crítico, ele apresentou uma proposta para a sociedade de hoje. Ainda podemos ler um autor do século XIX, observando seu lado criativo/construtivo e tendo a chance de falar de um conceito urgente nos dias atuais, algo que poderia reorganizar a sociedade", diz. Seguem trechos da entrevista:

Qual a situação da amizade no mundo contemporâneo?

Nós vivemos uma crise das instituições. Muita gente não dedica nada do seu tempo às instituições, como igrejas e ONGs. Por outro lado, há supervalorização da família. Exis­te a ideia de que a família é um ninho de amor, alheio à sociedade. Enquanto nas ruas existem problemas de segurança, na família isso não existe. E a amizade está em crise, porque as pessoas não têm tempo para se dedicar a ela. Pretende-se construir relações menos comprometedoras e menos doloridas. E toda relação é dolorida, porque não há domínio completo sobre isso.

As relações de família não podem ser consideradas como amizade? 

No matrimônio, existe o critério de amizade, mas fica no vácuo do idealismo. Mesmo nas famílias, os horários não batem atualmente. As pessoas saem cedo de casa, voltam tarde, deixam de comer juntas e se relacionar. Perde-se o gosto de estar com outras pessoas e não se chega a criar uma amizade. Por isso que o bar se tornou o templo da amizade hoje. É o local em que podemos sentar e conversar. Con­­tudo, muitas vezes não se estabelecem relações amistosas nesse local, implicando em enfrentamento. E, baseado no conceito do livro, a amizade significa respeitar o outro pelo que ele é.

Ou seja, um dos problemas pa­­ra se estabelecer a amizade é a dificuldade em respeitar o próximo? 

Sem dúvida. A ética da amizade implica em liberdade do espírito, capacidade de nos enfrentarmos e criarmos resistência. O bom amigo é quase um inimigo. É aquela pessoa que nos faz desconfiar das nossas certezas, nos colocando contra a parede. E a amizade é o espaço no qual as pessoas se confrontam. Para Nietzsche, é o espaço da boa disputa. Podemos disputar no sentido de guerrear com meu amigo, lutando para que nós cresçamos juntos.

Quais as dificuldades em usar esse conceito de amizade? 

A amizade é um espaço de partilha da alegria. Em vez de partilhar a dor e a desgraça, deveríamos partilhar a alegria. Só que a sociedade propaga um conceito de não haver sofrimento. E isso atrofia a possibilidade de construir relações de amizade mais duradouras. A vida tem dois la­­dos: o dia escuro e o dia claro. Quem quer ficar só com o lado bom, perdeu a vida inteira.

A amizade virtual é um fenômeno típico dos dias atuais. Essas relações não tiram as pessoas do isolamento? 

No fenômeno recente das redes sociais, chamam-se de amigos pessoas distantes, que você nem se­­quer conhece pessoalmente. Por­­tanto, não é necessariamente amigo de alguém. É só uma coleção de pessoas com quem se tem contato. Isso não é amizade e contribui para o hiper-individualismo atual. As pessoas usam a tecnologia para se isolar – seu próprio celular, sua própria televisão, trancadas na sua própria casa – e esquecem do enfrentamento natural à amizade. 

Quer dizer que o problema está na forma de uso das redes sociais? 

O Facebook, Twitter e Orkut são usados mais como uma rede de comunicação, disseminando notícias e fatos, do que como rede de relacionamento. Poucos usam para construir relações mais consistentes de amizade. As redes sociais são fenômeno do tempo das multidões. Em uma multidão, o indivíduo se anula: não enxergo a mim mesmo e nem a mais ninguém. Muitas das causas defendidas nos últimos tempos são fenômenos de multidão. Trata-se de um reflexo do mundo contemporâneo, em que a geração atual saiu de 2 bilhões de habitantes para 9 bilhões em 70 anos.

Como mudar essa panorama?

Essas relações rápidas, de certo conforto, não são um processo consciente. As relações precisam ser pensadas. Não podemos simplesmente deixar levar, sem raciocinar sobre isso. É preciso se dedicar à amizade, porque os amigos são muito importantes para forjar o nosso caráter e as opções pessoais e profissionais. Também é preciso tirar o preconceito e a desconfiança da amizade. Se mulher conversa com mu­­lher, estão fofocando. Se homem dialoga com homem, são homossexuais. 

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