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Hugh Jackman interpreta Gary Hart no filme “O Favorito” | Divulgação/Sony Pictures-Columbia Pictures
Hugh Jackman interpreta Gary Hart no filme “O Favorito”| Foto: Divulgação/Sony Pictures-Columbia Pictures

Algo mudou para sempre, e talvez para pior, em um dia de maio de 1987, diz o diretor Jason Reitman. 

Gary Hart, então o principal concorrente para a indicação democrata à presidência em 1988, foi confrontado em um beco atrás de sua casa em Washington, D.C., por repórteres do Miami Herald. Um dia antes, a equipe do Herald, seguindo uma denúncia anônima, havia seguido uma jovem até Washington, onde a viu entrando na casa do ex-senador do Colorado. Eles não a viram sair naquela noite. 

A história do Herald ("Mulher de Miami tem ligação com Hart") desencadeou uma conflagração na mídia. Poucas horas depois da publicação da história, pipocaram histórias sobre o suposto caso entre o candidato e a mulher não identificada, mais tarde identificada como Donna Rice, uma aspirante a modelo e vendedora de produtos farmacêuticos. O frenesi em torno do caso devorou a nascente campanha presidencial de Hart.

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Esse é apenas um pedaço da história. A questão mais importante — como Reitman explora no filme "O Favorito", seu relato dramatizado do episódio de Hart que estreia dia 16 de novembro nos EUA — é como e por que tudo aconteceu. 

O episódio de Hart abriu a Caixa de Pandora para maiores e mais famosas revelações sobre Bill Clinton, John Edwards, Donald Trump e vários outros políticos e pessoas proeminentes. Agora ninguém tem dúvida de que as vidas pessoais e pecadilhos das pessoas que se tornariam presidentes sempre serão expostos por alguém, seja o Washington Post ou programa de celebridades "Access Hollywood". 

Mas, naquele maio de 1987, isso não foi considerado importante. 

É por isso que Reitman — trabalhando a partir de " All the Truth Is Out: The Week Politics Went Tabloid — Toda a Verdade foi Revelada: Como a Política foi Parar nos Tabloides, em tradução livre", livro sobre o escândalo publicado em 2014 pelo co-roteirista Matt Bai — acha que o episódio apresenta uma espécie de ponto de inflexão na história, um momento crítico em que as placas tectônicas culturais, políticas e midiáticas abruptamente mudaram para sempre. 

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Quando ele tomou conhecimento dos detalhes do escândalo de Hart por meio do livro de Bai, Reitman (que tinha dez anos de idade quando Hart e Rice ocupavam brevemente as manchetes) ficou surpreso e intrigado. 

"Eu não conseguia acreditar que havia um momento em nossa história recente em que o suposto próximo presidente dos Estados Unidos estava em um beco no meio da noite em frente à sua casa com um grupo de jornalistas, e ninguém sabia o que fazer. Porque ninguém havia estado nessa posição antes ", diz. "Eu ouvi essa história e parecia um filme." 

O escândalo de Hart desapareceu entre as névoas da história, possivelmente porque tudo passou tão rápido, e possivelmente porque foi sucedido por vários outros tufões midiáticos. Hart — interpretado por Hugh Jackman com pompa melancólica, em uma performance atípica — cancelou sua campanha presidencial seis dias após a publicação da reportagem do Herald e logo após o The Washington Post dizer que estava investigando outro caso dele.

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Hart tentou reentrar na corrida antes das primeiras primárias em 1988, mas a essa altura sua via crucis organizada pela mídia estava completa. Então ele desistiu e nunca mais disputou nada. Ele passou a escrever vários livros, obteve um PhD em política de Oxford e co-presidiu uma comissão pré-11 de setembro que advertiu premonitoriamente o então novo presidente, George W. Bush, sobre a perspectiva de um ataque terrorista nos Estados Unidos em 2001. Agora aos 81, ele continua com sua esposa, com quem é casado há 60 anos, Lee Hart. 

Em uma breve troca de e-mails, Hart disse que não conseguiu falar sobre o filme sem a permissão da Sony Pictures. Um executivo de estúdio, Danielle Misher, recusou o pedido de entrevista. "Infelizmente, o senador Hart não está disponível neste momento", escreveu ela. 

O que as pessoas lembram de Hart e Rice, se é que se lembram de alguma coisa, é que foram vistos juntos em um cruzeiro noturno para uma ilha nas Bahamas em um iate com um nome absurdamente irônico, "Monkey Business" (expressão que em inglês significa algo como “comportamento reprovável, safadeza, traquinagem”). Eles também podem lembrar que Hart havia respondido aos rumores sobre sua vida pessoal dando ao repórter do New York Times E.J. Dionne uma citação digna do Oscar de Auto-Estima Elevada: “Podem me seguir onde quiser... Vá em frente. Vocês ficariam muito entediados.” 

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Reitman diz que um detalhe particular sobre Hart e Rice é amplamente esquecido. A foto infame de Rice sentada no colo de Hart (na qual ele está vestindo uma camiseta com os dizerem "Tripulação do Monkey Business ") não o tirou da disputa; foi publicada pelo tabloide National Enquirer cerca de três semanas depois de ele ter desistido da campanha. 

Mas Reitman – cuja eclética filmografia inclui "Juno", "Amor Sem Escalas" e a sátira política "Obrigado por fumar" — está menos interessado nesses detalhes do que nos importantes temas que o caso de Hart representa. 

"Você tinha um candidato à presidência que era bonito, inteligente, tinha boas ideias, e era o favorito, e de repente ele desapareceu do cenário político sem que as pessoas realmente refletissem a respeito", afirma. 

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A decisão do Herald de publicar a história sobre Hart quebrou uma regra não escrita da imprensa, pelo menos a da era moderna (os presidentes Alexander Hamilton e Thomas Jefferson foram vítimas do falatório da época). Questões de "caráter" sempre foram notícia, mas apenas se fossem públicas e afetassem diretamente o julgamento de um político. Em geral, repórteres respeitáveis não escreviam sobre indiscrições privadas, como as de Franklin Roosevelt, John Kennedy e Lyndon Johnson. 

Eles certamente não "se esconderam nos arbustos" para obter detalhes sobre o caso, como Hart e os principais personagens de "O Favorito" descrevem a equipe do Herald. É bom lembrar que os cinco jornalistas envolvidos na vigilância vigiaram a casa a partir dos carros estacionados, não por detrás de arbustos. É bom deixar registrado, inclusive, que um dos repórteres, Jim McGee, contesta uma sequência apresentada no filme e no livro: o Herald começou a seguir Hart, diz McGee, vários dias depois da citação "Podem me seguir..." de Hart. Eles não descobriram a citação enquanto escreviam sua história, como o filme sugere. 

De qualquer forma, depois de Hart, as vidas privadas passaram a fazer parte do jogo, forçando os candidatos a ficarem cada vez mais debaixo da saia de consultores de imagens, notam Bai e seu co-roteirista Jay Carson, ele mesmo um ex-membro do Partido Democrata. Eles argumentam que o jornalismo tinha menos interesse por isso, e o eleitorado também. "Quando um candidato passou a ter 16 funcionários à sua volta, quando os jornalistas passaram a ser mantidos a 15 metros de distância o tempo todo?" pergunta Carson, que trabalhou na campanha presidencial de Hillary Clinton em 2008. "Muito disso é para evitar a cena do beco." 

É discutível, no entanto, se a imprensa realmente dava toda essa colher de chá aos políticos em relação à privacidade, em primeiro lugar. Os eleitores não queriam saber se Kennedy teve um caso com Judith Exner, ligada a chefões da Máfia? Eles não queriam saber sobre as indiscrições de Bill Clinton ou o suposto relacionamento de Donald Trump com uma estrela pornô antes de votar neles? 

É interessante notar, no entanto, que Clinton e Trump sobreviveram a escândalos muito piores, mas Hart foi arruinado. A razão pode ter sido a falha de Hart em reconhecer que as regras haviam mudado e que ele parecia hipócrita ao insistir no contrário. 

Reitman diz que "O Favorito" se esforça para não dizer qual deve ser a linha entre o comportamento privado e o público. Em vez disso, ele afirma, o filme tenta mostrar como isso se aplica a Hart e capturar o momento em que Hart é engolido pelo escândalo. 

Talvez ingenuamente, ou talvez arrogantemente, Hart pensou que poderia superar a tempestade de mídia iniciada pelo Herald. Enquanto sua equipe se esforçava para inventar desculpas plausíveis, como se os repórteres não tivessem visto Rice (interpretada por Sara Paxton) sair pela porta dos fundos, ele discursou atacando a imprensa. 

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Mais tarde no filme, durante uma entrevista coletiva em New Hampshire, Hart continua lutando, citando pesquisas que indicam que 64 por cento do público acha que a imprensa tem sido por demais bisbilhoteira. Neste momento ele é interpelado por um repórter do Washington Post (interpretado por Nyasha Hatendi), que faz a pergunta até então considerada indevida: "Você já cometeu adultério?" 

Como o livro de Bai documenta (e o filme sugere de leve), Hart foi pego de surpresa por uma convergência de fatores: a ascensão do movimento feminista, à esquerda, e a Maioria Moral, à direita, ambos intolerantes ao adultério; o advento da transmissão via satélite e a demanda voraz por notícias 24 horas por dia; e o cinismo pós-Watergate dos repórteres à caça de escândalos. 

Tão importante quanto foi a contínua aproximação das notícias com entretenimento. Muitos dos repórteres que passaram a seguir Hart de maneira incessante, no rastro da história do Herald, não eram repórteres políticos tradicionais. Eles eram os antecedentes de uma espécie ainda mais grosseira que logo floresceria na internet. No filme, entre os caminhões-satélite que praticamente prendem a esposa de Hart, Lee (Vera Farmiga) e a filha Andrea (Kaitlyn Dever) dentro da casa da família no Colorado, um deles é de um novo programa sensacionalista de TV, "A Current Affair". 

Mais uma coisa, talvez uma nota de rodapé: Em retrospectiva, a verdadeira natureza da relação de Hart com Rice nunca foi totalmente clara. Eles realmente tiveram um caso? 

Bai, tanto em seu livro quanto em uma entrevista, não fornece uma resposta para essa pergunta. Ao fazer a pesquisa para seu livro, ele diz que não conseguiu fazer a pergunta que estava no coração da história de Hart. 

Nem Reitman o faz em "O Favorito", embora o filme sugira uma resposta. Em uma de suas cenas mais fortes e emocionantes, Lee Hart, magoada e humilhada, confronta seu marido. A cena termina antes de Hart admitir qualquer coisa conclusiva. 

Na vida real, Hart e Rice nunca deram o braço a torcer. "Há apenas duas pessoas que sabem a verdade e nunca se pronunciaram a respeito", diz Reitman. 

O fato é que muitas pessoas, e com certeza muitos dos meios de comunicação, tinham praticamente certeza do caso entre os dois na época. E Hart certamente deu motivos suficientes para que criar uma suspeita. 

Em 1987, isso foi o suficiente para provocar um frenesi. E dali para frente, nunca mais foi necessário mais do que isso: uma suspeita.

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