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Alexander Solzhenitsyn conversa com Vladimir Putin em 2007.
Alexander Solzhenitsyn conversa com Vladimir Putin em 2007.| Foto: Wikipedia

Alexander Solzhenitsyn era muitas coisas. Um destemido defensor da liberdade numa era de totalitarismo. Um destemido crítico do hedonista Ocidente contemporâneo. Um grande historiador. Um grande romancista. Um ganhador do Prêmio Nobel. Um profeta.

Quanto à sua capacidade de antever as coisas, Solzhenitsyn profetizou, no auge do poder da União Soviética, que ele viveria para ver a derrocada do regime e voltaria para sua terra-natal, a Rússia. Como acontece a todos os profetas, ele não foi levado a sério. Todos os “especialistas” diziam que o império soviético tinha vindo para ficar e faria parte do cenário geopolítico mundial para sempre. Como a história demonstrou, o profeta tinha razão; os especialistas não.

Claro que Solzhenitsyn é digno de ser levado a sério. Isso fica claro sobretudo na antevisão dele quanto à atual crise na Ucrânia*.

Ainda em 1968, durante o processo de escrita do romance que mais tarde seria publicado com o título “Arquipélago Gulag”, ele escreveu que temia um conflito entre a Rússia e a Ucrânia no futuro: “Dói-me escrever isso, já que Rússia e Ucrânia estão misturadas no meu sangue, em meu coração e em meus pensamentos. Mas minha experiência com os amigos ucranianos nos campos de trabalhos forçados me mostrou que eles guardam muito ressentimento. Nossa geração ainda terá de pagar pelos erros de nossos pais”.

Antevendo a ascensão do nacionalismo e suas ambições territoriais, Solzhenitsyn lamentava que fosse muito mais fácil “bater o pé e gritar ‘isso daqui é meu!’” do que buscar a conciliação e a coexistência.

Por mais surpreendente que seja, a ideia marxista de que o nacionalismo está perdendo força não é verdadeira. Ao contrário, numa era de pesquisas nucleares e cibernéticas, por algum motivo o nacionalismo ganha força. E, querendo ou não, está chegando a hora de honrarmos as notas promissórias da autodeterminação e independência; que façamos isso por nós mesmos em vez de esperarmos a decapitação. Temos de provar que provar que somos uma grande nação não por conta da vastidão de nosso território ou a quantidade de pessoas sob nossos cuidados, e sim por conta da grandeza de nossos valores.

A Rússia deveria se contentar em “cultivar a terra que nos restar depois que esses lugares que não querem ficar conosco se separarem”. No caso da Ucrânia, Solzhenitsyn previu que “a situação será muito dolorosa”. Era necessário, contudo, que os russos “entendessem o nível de tensão” dos ucranianos.

Usando de seu conhecimento histórico, ele lamentava o fato de ter sido impossível, ao longo dos séculos, resolver as diferenças entre russos e ucranianos e dizia que era necessário que os russos “tivessem bom senso”. “Devemos deixar a decisão nas mãos deles: federalistas ou separatistas, quem quer que vença. Não ceder a isso seria uma loucura e crueldade. Quanto mais lenientes, pacientes e coerentes formos agora, mais esperança haverá de restaurar a união no futuro”.

A maior dificuldade estava na mistura étnica da Ucrânia. Nas diferentes regiões do país há proporções diferentes dos que se consideram ucranianos e os que se consideram russos. Há também os que não se consideram nem uma coisa nem outra. “Talvez precise haver um referendo em cada uma das regiões para que se dê o tratamento adequado aos que quiserem deixar o país”. Para tanto, a Ucrânia precisaria demonstrar, em relação às regiões predominantemente russas o mesmo comedimento e bom senso que os russos precisam demonstrar em relação à Ucrânia como um todo. Isso é fundamental por conta do caráter arbitrário das regiões pertencentes à Ucrânia. “Nem toda a Ucrânia com as suas atuais fronteiras soviéticas é de fato Ucrânia. Algumas regiões (...) claramente tendem mais à Rússia. Quanto à Crimeia, a decisão de Khrushchev de entregá-la à Ucrânia foi totalmente arbitrária”. A forma como os etnicamente ucranianos tratam os etnicamente russos dentro dessas fronteiras em sua maior parte arbitrárias “funcionaria como um teste: clamando por justiça, quão justos os ucranianos serão para com os russos dos Cárpatos?”

Muitos anos mais tarde, em abril de 1981, Solzhenitsyn escreveu uma carta para a Conferência de Toronto, que tratava das relações entre a Rússia e a Ucrânia. Na carta, ele escreveu que “o problema russo-ucraniano é um dos principais do nosso tempo e é fundamental para nossos povos”. O problema, contudo, era exacerbado pela “paixão avassaladora e a temperatura escorchante dela resultante”: “Já disse repetidas vezes, e estou reiterando aqui e agora, que ninguém pode ser contido pela força; os adversários jamais devem recorrer à coerção contra o outro lado ou seu próprio povo ou uma minoria, já que toda minoria contém em si uma minoria própria”.

Seguindo os princípios da subsidiariedade que sempre estimularam seu raciocínio político, Solzhenitsyn insistia no direito das comunidades determinarem seu próprio destino, sem a força coercitiva de um governo central estranho, seja ele o de Moscou ou Kiev. “Em todos os casos a opinião da comunidade deve ser identificada e implementada. Portanto, todos os problemas só podem ser resolvidos pela população local (...)”. Enquanto isso, a “intolerância inflexível” que estimula os extremistas de ambos os lados da divisão étnica seria “fatal para as duas nações e benéfica apenas para seus inimigos”.

Em 1990, na obra-prima “Rebuilding Russia” [Reconstruindo a Rússia], Solzhenitsyn profetizava o perigo inerente à composição ética da Ucrânia:

“Separar a Ucrânia hoje significa dividir milhões de famílias e pessoas: pense no quão miscigenada é a população; há regiões inteiras de população predominantemente russa; muitas pessoas lá consideram difícil escolher a própria nacionalidade; muitas pessoas são de origem miscigenada; pense em quantos casamentos miscigenados há lá (por sinal, até aqui ninguém pensava nesses casamentos como miscigenados)”.

Apesar de Solzhenitsyn temer as consequências de uma Ucrânia independente, ele respeitava o direito do povo ucraniano de se separar: direito que foi exercido depois que a União Soviética entrou em colapso. Reiterando seus princípios de subsidiariedade, ele insistia mais uma vez que “apenas a população local (...) pode decidir o destino de sua comunidade ou região, enquanto cada uma das minorias étnicas dessa localidade deve ser tratada sem violência”.

Hoje, quase seis anos depois de sua morte*, a posição de Solzhenitsyn é a única solução sensata e segura para a crise ucraniana. As regiões a leste da Ucrânia e que desejam se separar da porção ocidental do país deveriam poder fazer isso. De fato, a Ucrânia já compreende duas nações. Faz sentido, portanto, que essa realidade de facto alcance o prestígio de uma realidade de jure. Qualquer outra solução não só é injusta como levará a uma injustiça maior ainda na forma de uma guerra, de terrorismo e de ódio. Nisso, assim como em vários outros assuntos, a voz do profeta deveria ser ouvida.

*O texto trata da crise entre a Rússia e Ucrânia em 2014, mas se aplica à guerra atual entre os dois países.

Joseph Pearce é colaborador do “Imaginative Conservative”, diretor editorial do Augustine Institute, editor da St. Austin Review e autor de vários livros.

©2022 Imaginative Conservative. Publicado com permissão. Original em inglês
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