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Assim como na peça de Shakespeare, na CPI da Covid mais importante do que o que é dito é quem diz e quem faz a distinção entre o que é e o que parece.
Assim como na peça de Shakespeare, na CPI da Covid mais importante do que o que é dito é quem diz e quem faz a distinção entre o que é e o que parece.| Foto: Bigstock

Todos conhecemos, pelo menos de ouvir falar, algo da história da peça "Hamlet", aquela do ser ou não ser, eis a questão. E talvez por isso seja mais fácil imaginá-la (a imaginação, embora não pareça, é uma bela forma de conhecimento) nesse palco quotidiano em que se tem transformado a CPI da Covid-19.

O famoso príncipe da Dinamarca tinha diante de si várias narrativas, diferentes versões sobre um único e mesmo fato. O pai estava morto e a questão era: o que foi que aconteceu? No leque das probabilidades, havia opiniões e narrativas de todos os tipos e para todos os gostos: doença pura e simples, suicídio, assassinato culposo, assassinato doloso, etc. Havia até a possibilidade de que tudo fosse uma louca fantasia do próprio Hamlet (que, neste caso, ganhava ares de doente mental) e que tudo não passasse de noites mal dormidas, mesmo até porque dizia que via o fantasma do pai.

Mas, para todos aqueles simples cidadãos do Reino da Dinamarca, aqueles que também não conseguiam dormir muito, não porque tivessem pesadelos, e sim porque tinham que acordar cedo para começar a trabalhar, isto é, para aqueles homens do povo a pergunta era bem mais simples: o tio e a mãe eram os verdadeiros assassinos ou não?

E o melhor de tudo é o seguinte: mesmo que leiamos mil e uma vezes a peça, acredito que nunca teremos certeza se as coisas foram mesmo assim. Aliás, não tem "assim". Não dá mesmo para saber o que foi que aconteceu. E a coisa fica ainda pior quando percebemos que tudo começou a dar voltas na cabeça de Hamlet a partir de algo que lhe foi dito pelo fantasma do pai.

O lar como prisão

Há um momento na peça em que se descortina um diálogo muito revelador. Dois soldados, antigos companheiros do príncipe, saem à procura dele, mandados pelo seu tio, Cláudio, a fim levá-lo até a Inglaterra e matá-lo. É claro que isso está oculto. Ninguém sabe disso, a não ser o tio e os dois soldados. O que eles querem, o que é que será, é fazer com que Hamlet entre no navio para matá-lo.

O príncipe se surpreende com a chegada dos dois e lhes pergunta o que é que estão fazendo ali porque, para ele, a Dinamarca é uma prisão, e das piores. Os “amigos” respondem que vieram acompanhá-lo até a Inglaterra, mas querem deixar claro que, para eles, a Dinamarca não é de forma alguma uma prisão, pelo contrário. É linda demais.

Essa inserção (para mim, para nós) revela a acuidade de Shakespeare. Afinal, é ou não é? Voltamos sempre, nas obras dele, à verdadeira questão: ser ou não ser. E, de alguma forma, essa recorrência, esse voltar uma e outra vez a discutir sobre o que é, e não sobre o que parece, o que se conta, o que se diz, o que se posta e tuíta é o que nos deixa intranquilos. Por quê? Porque nós, que também somos como aqueles cidadãos do Reino da Dinamarca que acordam cedo todos os dias para ganhar o pão e um pouco de direito ao descanso pelo menos no fim de semana, queremos resposta para algo bem simples: foi ou não foi? E se foi, de quem é a culpa?

O que é dito e por quem

Essa parece ser a preocupação dos senadores. Dá a impressão de que, no fim disso tudo, teremos a verdadeira resposta. Será? Veja o leitor: para Hamlet, a Dinamarca é uma prisão, e das piores. Para Guildenstern e Rosencrantz - que nomes, hein?! - não é. Para Renan Calheiros é. Para Bolsonaro não é. E para o leitor, como ficamos? É ou não é?

A resposta, tal como percebeu o dramaturgo inglês, não está no discurso, nem nas narrativas e muito, mas muito menos, nas testemunhas, muitas das quais falam e falam e parecem mais espectros, tal como o pai de Hamlet.

Desculpem voltar sobre o assunto, mas é que é importante: a questão não está no que se diz, mas em quem diz. Foi isso que Shakespeare descobriu naquele longínquo começo de século XVII. E a descoberta dele hoje talvez possa nos dar uma réstia de luz, mesmo que pequenininha.

Quem é, afinal, esse Fulano de tal? E aquele outro Sicrano? Quem é que está falando isso? É o espectro do meu pai, diria o príncipe da Dinamarca. E agora isso aí é o Horácio. Que é o único decente neste teatro todo. E esse é o depoimento da doce Ofélia. E esse aí é o do pai dela, que, sabe como é que é, não dá para confiar. E esses dois, então, esse de nomes impossíveis de pronunciar? Esses que vieram para me matar vão dizer o quê? Pode uma coisa dessas?

Se Hamlet estivesse na CPI, começaria sem dúvida fazendo uma pergunta bem simples: mas, meu caro, quem é você? O relato, o discurso e o próprio testemunho só tem sentido a partir de quem somos. E a maior parte daqueles cidadãos que somos sabemos, como Hamlet, quem é quem nesse palco chamado CPI.

Para os companheiros de Hamlet, que foram buscá-lo para matá-lo, ninguém atentou contra a vida do Rei. Para Hamlet, sim. Os perpetradores foram sua mãe, Gertrudes, e seu tio, Cláudio. E para Cláudio e Gertrudes? Será que eles achavam que tinham cometido um assassinato? E a Ofélia? O que pensava a Ofélia de tudo isso? Ela era a mais doce entre todas as flores... E mais: o fato de Cláudio e Gertrudes acharem que não tinham feito nada de errado mudava alguma coisa? Era isso mesmo? Eram inocentes só porque achavam que não fizeram nada de errado?

Li a peça já muitas e muitas vezes e estou convencido de que Shakespeare não quis nos dar nenhuma resposta. Ele quis, deliberadamente, deixar que cada um de nós, seus leitores ao longo dos tempos, respondesse conforme o que cada um de nós somos. Vemos, pensamos e agimos a partir do que somos. Vemos, pensamos e agimos a partir de quem somos.

Por isso, meu caro leitor, como diz Susanna Tamaro, fique a sós. Não escute mais ninguém. E se pergunte: quem eu sou? E, então (e agora é Trinity quem fala com Neo) a resposta o encontrará. É ela, a resposta, quem o encontra. Basta saber quem nós somos.

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