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Anaxímenes de Mileto
Cícero diz que Anaxímenes é o primeiro escritor pagão a usar “pneuma” como predicado do divino.| Foto: BigStock

Alguns estudantes se assustam ao acumular a matéria do semestre. O que sentiriam se soubessem que na autoeducação nós não temos apenas seis meses, mas mais de 2.500 anos de estudo atrasado? É assim que deve pensar quem está empenhado em resgatar as origens da civilização ocidental, segundo o já mencionado empreendimento de conhecer a origem das próprias ideias e nunca enunciar nenhuma sentença sob o desconhecimento de sua origem, das etapas percorridas, dificuldades encontradas e estado atual da questão.

Muito embora a extensão do assunto não seja razão de estranhamento e desespero, senão de esforço e persistência. Como diz Platão: “As coisas belas são difíceis.” E para o belo conhecimento o ditado popular é encorajador: “O mestre aparece quando o discípulo está pronto.” Assim todos os que chegaram até aqui – a esta altura do texto e aos demais artigos desta série – devem encontrar na Gazeta do Povo um caminho aberto para os recém-iniciados que precisam de ajuda. Aqui já ensinamos as ideias dos primeiros filósofos, Tales e Anaximandro, sendo agora a vez de Anaxímenes de Mileto (586 a.C - 526 a.C), o seu discípulo e sucessor.

Como ambos os mestres, o pupilo busca a arché, a palavra grega para “princípio” ou “origem de todas as coisas”. Mas enquanto Tales encontra-a na água e Anaximandro no Infinito, Anaxímenes chama-a de ar. Nós já falamos do erro da resposta de Tales: como poderia a origem de todas as coisas der a água, que é a união entre frieza e umidade, se estas qualidades não podem conviver com aquelas do fogo, a saber, o calor e a secura? No entanto, quando pensamos na negação do princípio de Anaximandro, parece haver certo regresso. Afinal, o infinito não estaria mais próximo das ideias metafísicas? Pode até ser verdade. Mas de que serve um conceito metafísico sem referente no mundo? Como identificar na realidade algo que seja absolutamente infinito?

Até poderíamos pensar no Deus, como pregam os cristãos. De imediato, lembro das palavras de um cardeal da Igreja Católica Romana do século XV, Nicolau de Cusa: “Deus é uno de um modo tal que é em ato tudo aquilo que é possível. Por isso tal unidade não é susceptível de mais nem de menos, nem é multiplicável. A divindade é, assim, unidade infinita. Portanto, aquele que disse ‘ouve, Israel, o teu Deus é uno’ e ‘uno é o mestre’ e é ‘o vosso pai nos céus’ (Dt 6, 4; Mt 23, 8-9) não poderia ter dito nada mais verdadeiro. (…) Assim como o número, que é um ente da razão forjado pela nossa faculdade de distinguir através de comparações, pressupõe necessariamente a unidade como seu princípio, de tal maneira que sem ele seria impossível haver número, também a pluralidade das coisas que deriva desta unidade infinita está para ela de modo que sem ela não pode existir. Com efeito, como seriam sem o ser?” Mas ele acrescenta: “A unidade absoluta é entidade”, por isso há referência, Pessoa. Já o deus de que falam os filósofos gregos não são pessoais como a divindade bíblica ou homérica. Ele não é o Deus da vida, mas o “deus dos filósofos”.

Esta é uma expressão poética para significar, analiticamente, um deus criado pela mente em vez do Criador do intelecto. Trata-se de uma questão problemática tratada por um dos mais importantes filósofos místicos medievais, o Mestre Eckhart, que afirma: “O homem não se deve deixar contentar com um Deus pensado; pois quando o pensamento passa, assim também Deus passará. Deve, pelo contrário, ter um Deus substancial, que se situa muito acima dos pensamentos do homem e de todas as criaturas. Esse Deus não passará, a não ser que o homem se afaste d’Ele por sua vontade.”

No entanto, esta experiência está muito distante dos filósofos pré-socráticos, de sorte que o retorno ao elemento determinado não é demérito de Anaxímenes. Embora não tenha pensado a essência divina como infinita, fazendo jus ao pensamento dos santos e místicos, ele tem o mérito de unir nome e coisa, buscando em todo discurso um referente na realidade: o ar.

Agora é a nossa vez de compreendê-lo em movimento duplo: científico e simbólico:

Simbolicamente, o ar pode ser representado pela ave, que sobrevoa todos os cantos da terra, assim como a mente transporta a vários lugares. No entanto, a ave é capaz de materializar esse voo, enquanto a mente é incapaz de transformar a palavra em coisa. De modo que o ar simboliza perfeitamente o princípio da realidade, a união entre o físico e o mental, ao passo que, apesar de etérea, a mente carece de materialidade. Ainda, cientificamente, o ar é explicado em termos de condensação e rarefação. Anaxímenes diz que ele pode se converter nos outros elementos sem perder a sua essência, ao contrário do fogo, da água e da terra.

O mais interessante disso tudo é o termo que o filósofo usa: pneuma. Ele não fala simplesmente de oxigênio, mas da mesma palavra usada pelos cristãos para se referir ao Espírito Santo. “Pneuma” é o signo grego para o “ruach” hebraico, que é sinônimo de ar, mas também de sopro, vento, fôlego, espírito e princípio vital. Por isso Cícero diz que Anaxímenes é o primeiro escritor pagão a usar “pneuma” como predicado do divino. Eis o gérmen de uma disciplina teológica: pneumatologia.

*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia

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