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Imagem do primeiro carro autônomo desenvolvido pelo Google, ainda em 2009. Trata-se de um Toyota Prius, que foi testado em rodovias da California (EUA). | Divulgação/Google
Imagem do primeiro carro autônomo desenvolvido pelo Google, ainda em 2009. Trata-se de um Toyota Prius, que foi testado em rodovias da California (EUA).| Foto: Divulgação/Google

Era para ser apenas mais um dia de testes do Waymo, um veículo autônomo, na pequena cidade norte-americana de Chandler – que tem o tamanho comparável a Cascavel, no Oeste do Paraná. Pelo menos até um homem de barba, vestido só de bermuda e parado à beira da estrada, sacar uma arma da cintura e direcioná-la para o carro tecnológico financiado pela Alphabet, a mesma dona do Google. 

Tudo é registrado por uma das câmeras instaladas no veículo com as funções de direcioná-lo e de acompanhar os testes. O episódio também é visto ao vivo por um humano, de dentro do carro, cuja função é atuar em caso de alguma emergência, como a iminência de um atropelamento (essa é a prática neste tipo de testes). O homem não atira. Mas poderia tê-lo feito, dado o histórico de “agressões” aos carros que não precisam de motorista e que circulam pela cidade do Arizona. 

Esse caso, de agosto, é só mais um em uma lista. No último ano, a polícia local registrou uma série de eventos envolvendo ataques aos carros da Waymo. São 21 documentados, como pedras atiradas nos vidros, pneus rasgados à faca enquanto estão estacionados, gritos de “cai fora” e “fechadas” no trânsito pacato da cidade norte-americana. Mas uma boa quantidade de incidentes sequer foi anotada pelas autoridades legais, afirmam especialistas. O número deles está na casa das centenas, acredita-se. A empresa testa esses veículos por ali desde 2016. 

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O cenário não é diferente em outras partes do mundo onde essa tecnologia vem sendo estudada e introduzida aos poucos. Na californiana São Francisco, pelo menos dois dos seis acidentes envolvendo autônomos foram causados por humanos que chocaram seus carros deliberadamente nos veículos-teste de empresas como a Cruise AV, da General Motors, que também investe no futuro sem motoristas. A análise é do departamento de automóveis do estado. Um fato preocupante, já que, ao contrário de Chandler, São Francisco é uma cidade tida como “moderninha”, provando que a revolta contra as máquinas não é coisa de “caipira anti-desenvolvimento” do Sul dos EUA. 

“A revolta contra as máquinas é real e tem muito mais a ver com o que tudo isso representa, não com o veículo da Waymo em si”, disse por e-mail Phil Simon, que leciona disciplinas voltadas à tecnologia na Arizona State University, uma das mais respeitadas do país. Para ele, o ódio é pela perda de empregos e de relações humanas que inevitavelmente a tecnologia causará. O que cada habitante de Chandler sabe é que “o computador ocupará o espaço do motorista profissional”, em um movimento sem volta. “Tudo isto vem acontecendo de forma muito veloz. Por isso a preocupação é muito viva”, aponta o especialista. 

É a materialização de números amplamente divulgados em pesquisas. A consultoria McKinsey, por exemplo, apontou no ano passado que a tecnologia tomará entre 400 milhões e 800 milhões de empregos até 2030. Nos Estados Unidos, onde a tecnologia avança a passos muito mais largos, quase um em cada quatro empregos atuais serão impactados com práticas de automação – quando os computadores, robôs e inteligência artificial assumem uma tarefa antes delegada apenas a alguém de carne e osso. 

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O escritor norte-americano Douglas Rushkoff tentou desvendar o mistério em Throwing Rocks at the Google Bus: How Growth Became the Enemy of Prosperity [livro sem tradução para o português cujo nome, em tradução livre, é “Apedrejando o Ônibus do Google: Como o Crescimento se Tornou Inimigo da Prosperidade”], de 2016, que discute a recepção aos avanços tecnológicos. Rushkoff sustenta que a classe média dos países em que essas tecnologias mais avançam começou a se revoltar por ver as companhias gigantes ganhando rios de dinheiro com sua disrupção, enquanto o salário da população estagnou ou até mesmo recuou. As pedras são uma resposta – condenável – a essa realidade. 

“As grandes companhias precisam pensar nos trabalhadores e nas cidades em que estão operando. Essas economias precisam se desenvolver. Há maneiras de se criar plataformas e serviços para que as pessoas gerem riqueza de alguma forma. Se os usuários enriquecerem, não significa que você [grande empresa] perdeu dinheiro. É apenas mais verba girando no ecossistema de seu negócio”, define. 

É uma discussão válida, destaca a socióloga brasileira Ana Paula Silveira, doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

“A tecnologia avança muito mais rapidamente do que nossas políticas de recolocação no mercado de pessoas afetadas por ela. De uma certa forma, elas estão certas em levantar o tom de voz. Não dessa forma agressiva, que é inútil, obviamente. Mas é um assunto que não pode ficar à margem”, aponta. Para ela, é algo que já pode ser sentido em solo brasileiro, mesmo sem um carro autônomo em teste nas ruas. 

“Se você analisar a briga dos motoristas de táxi com os de Uber, é basicamente isso: uma classe profissional que se viu ameaçada por um avanço tecnológico. É uma violência que foi transferida da máquina, o aplicativo, para quem estava dentro do carro”, exemplifica. 

Revolta crescente

E a revolta pode estar em escalada, já que o ódio dos humanos não se restringe aos veículos. Outros robôs automatizados também estão na linha de tiro dos humanos justiceiros. Em 2016, um robô de segurança em um shopping da Califórnia foi vandalizado por moradores locais, que o chutaram e encheram de molho barbecue seus sensores. O aparelho foi retirado da vigilância. 

As reações se tornam um tanto curiosa quando se lembra de que ambos os equipamentos, carros e robôs, têm como objetivo principal garantir eficiência em determinada tarefa, o que passa obrigatoriamente pela segurança dos humanos.

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Para os tecnólogos, os carros autônomos reduzirão quase a zero o número de acidentes de trânsito. No Brasil, por exemplo, segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária, 90% dos acidentes são causados por falha humana. Ao se retirar esse fator da equação e delegar a condução a sensores e computadores poderosos, o ganho em vidas salvas e a redução de gastos em saúde pública tendem a compensar o alto investimento. O Ministério da Saúde indica que, em 2016, dado mais recente, os acidentes custaram R$ 253 milhões ao Sistema Único de Saúde (SUS). Dinheiro que pdoe ser usado em uma solução para os “desalojados pela tecnologia”, segundo Phil Simon. 

É um caminho sensato e, ao que tudo indica, sem volta. As reações contra a tecnologia até podem frear momentaneamente o avanços dela – muitas vezes mexendo em temas com discussão relevante. Mas não vão desligar seus motores. Em Chandler, em um dos eventos registrados pela polícia, uma mulher parou na frente de um veículo da Waymo para impedi-lo de prosseguir. Foi quase simbólico. Após algumas horas, ela foi retirada. E o autônomo seguiu seu curso.

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