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Senador Fernando Collor, presidente Jair Bolsonaro e a primeira dama Michele Bolsonaro durante cerimônia de Posse do senhor Gilson Machado, Ministro de Estado do Turismo
Senador Fernando Collor, presidente Jair Bolsonaro e a primeira dama Michele Bolsonaro durante cerimônia de Posse do senhor Gilson Machado, Ministro de Estado do Turismo| Foto: Agência Brasil

Já são feitas comparações demais entre Bolsonaro e Lula, baseadas no fato de ambos terem um fã-clube a idolatrá-los. Quero focar numa grande diferença entre o trajeto político de ambos: o perfil eleitoral de Bolsonaro mudou muito; o de Lula permaneceu o mesmo. Nos anos 1970, Lula era líder operário feito sob medida para atender aos fetiches intelectualoides dos que queriam derrubar uma ditadura comum para implementar uma ditadura totalitária. Em 2020, cinquenta anos mais tarde, os intelectualoides de esquerda ainda o valorizam. Em 2003, Lula era o líder operário cujo primeiro diploma era o de presidente. Em 2018, Lula era o líder operário preso pela burguesia. A persona de Lula não mudou.

Bolsonaro, a seu turno, era um sindicalista militar que atuava no Congresso em defesa da categoria e dava apoio moral aos militares da Repressão. Trata-se dos militares que se envolveram diretamente no combate ao terrorismo, sujaram as mãos de sangue e, na Redemocratização, viraram os patinhos feios do Exército. Esse apoio moral se traduziu em apoio prático quando uma ex-terrorista chegou à presidência e instaurou a Comissão da Verdade.

A maioria dos brasileiros não sabe quem é Licio Maciel. MOLIPO, POLOP, COLINA, MR18 são siglas que só têm significado para o mais diminuto setor da sociedade: nem o militante petista deve conhecê-las, embora seus patrões sejam egressos daí. Bolsonaro sabe quem é Licio Maciel, reconhece as siglas e, em 2005, fazia uma sessão solene para homenagear o codinome Dr. Asdrúbal na operação de contrainteligência que desmontou a Guerrilha do Araguaia. MOLIPO, POLOP, COLINA, MR18 e Licio Maciel são palavras que mobilizam um diminuto grupo da sociedade com mais de 70 anos. E, dentro desse grupo, a maioria está a favor das siglas e contra o homem. Logo, podemos dizer que Bolsonaro não era outra coisa senão periférico; que o seu nicho era uma cabeça de agulha capaz de arrastá-lo para o Congresso seguidas vezes. Que ele tenha chegado aonde chegou, é surpreendente.

Se em 1989 um emissário do futuro chegasse a uma convenção petista, apontasse para Lula e dissesse que ali estava o futuro presidente do Brasil, ninguém ficaria surpreso. Se em 2005 um emissário do futuro chegasse àquela reunião e dissesse que ali estava o futuro presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, todos ficariam incrédulos. Quatorze anos antes do início do seu mandato, Lula era um predestinado. Quatorze anos antes do início do seu mandato, Bolsonaro era o eleito de uma meia dúzia de párias.

O que aconteceu?

Se fôssemos os emissários do futuro em 2005 e os presentes à sessão solene ainda acreditassem em nós, aqueles ferrenhos anticomunistas provavelmente lançariam as hipóteses mais ideológicas para explicar tamanho êxito. Será que no futuro os brasileiros concluiriam que a ditadura de 1964 foi boa? Será que os comunistas teriam aprontado tanto, que os brasileiros aprenderiam a dar valor aos anticomunistas?

Em sua primeira e única campanha presidencial, Bolsonaro nunca escondeu de ninguém a sua origem política. Pelo contrário: no tradicional programa Roda Viva, ostentou para as câmeras seu exemplar do livro de Brilhante Ustra, o nome mais famoso (talvez o único nome famoso) da Repressão.

No entanto, é falso dizer que os brasileiros tenham hoje um novo juízo sobre 1964, pelo simples fato de que não nos ocupamos de 1964. Ocupam as nossas cabeças o desemprego, a Lava Jato, a pandemia. 1964 continua sendo objeto de acadêmicos e artistas lebloninos – a novidade é que estes estão em baixa, identificados com o petismo, tentando em vão mudar para o genérico PSOL. Na verdade, nem na época da ditadura as pessoas estavam assim preocupadas com a própria ditadura. 1964 aconteceu sob aplausos da imprensa; no milagre econômico, Médici era aplaudido pela multidão em estádio. Os estádios vaiariam Dilma e Temer durante a recessão e a popularidade de Lula esteve lá em cima durante o famoso boom que inflacionou o preço das commodities e que faria a economia brasileira prosperar.

Em geral, se a economia vai bem, o governante é bem avaliado. Se vai mal, é mal avaliado. No mais das vezes, depende de sorte: Lula teve, Temer não teve. Mas não poucas vezes o governante – como os estatistas Geisel e Dilma – é responsável pela crise econômica de um país.

Se focarmos só nisso, podemos explicar por que o PT não se reelegeu: basta olhar para o governo Dilma. Mas não se explica por que Bolsonaro se elegeu. Tantos outros atores ficaram pelo caminho! Recusaram-se o PSDB e os experientes candidatos a terceira via, Ciro e Marina. Seria o novo pelo novo? Teve o partido Novo, com votação superior à de Marina. Mas ambos juntos não chegam a 4%. Bolsonaro chegou ao segundo turno com 46% dos votos.

De fato, teve a facada para ajudá-lo a angariar a simpatia do povo. Mas por que o maníaco escolhera justo ele como inimigo número um? Ora, porque ele já se tornara um símbolo antes disso.

Peço ao leitor que tente se lembrar do clima da época do impeachment, quando todas as TVs dos bares e restaurantes ficavam sintonizadas no noticiário e as pessoas interrompiam a conversa para ver a Câmara. Nessa época, Bolsonaro fazia dobradinha com Jean Wyllys. No impeachment, o voto de cada um deu o tom de 2018: Bolsonaro começou votando “pela família, e pela inocência das crianças em sala de aula”; só depois falou enfaticamente em Ustra. Jean Wyllys votou “em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura [isto é, a turma do Leblon], dos sem teto, dos sem-terra”, xingou todo mundo de canalha, disse que a votação era uma farsa sexista e ainda cuspiu em Bolsonaro.

Eu assisti a uma reprise disso no refeitório de um hotel barato em Feira de Santana, um grande núcleo urbano do sertão baiano. O que chamou mais a atenção dos meus ouvidos de acadêmica foi o voto em nome de Ustra. O resto do refeitório ficou indignado com Jean Wyllys e gostou de Bolsonaro na hora.

Eu não creio que eles soubessem quem era Ustra. Mas defesa da família e das crianças em sala era algo bem tangível para eles. Bolsonaro se tornara um nome conhecido, rei do WhatsApp, depois de se manifestar contra o “Kit Contra a Homofobia” do MEC, por ele apelidado de Kit Gay. No fim das contas, o livro indicado por ele como sendo do kit não era do kit, mas a esquerda aproveitou o fato de haver uma falsidade para dizer que o Kit Gay era uma completa invenção saída da cabeça de Bolsonaro, quando não era. E o projeto ficou na gaveta para sempre.

Ao cabo, o nicho mais intelectualizado da sociedade ficou achando que não há nenhum problema de ideologização nas escolas. Achavam que o povo dava bola para Bolsonaro porque é burro ou por causa do “fundamentalismo evangélico”. Os evangélicos viraram o bode expiatório. Iniciou-se uma operação avestruz nesse importante grupo social enquanto Bolsonaro crescia.

A esquerda no poder fez chegar à população pobre, via burocracia, as suas ideias mais invasivas e disparatadas, conhecidas por nós sob o rótulo “politicamente correto”. E o que aconteceu entre 2005 e 2018 foi isto: Bolsonaro foi o único a se colocar aberta e intransigentemente contra esse movimento burocrático. Por isso ganhou a eleição.

Traições à classe média

Na classe média intelectualizada, Bolsonaro levou muito voto dos antipetistas, que são um verdadeiro saco de gatos.  Aí estavam incluídos os que gostavam mais da Lava Jato do que da pauta antiesquerdista. Estes foram duramente traídos por Bolsonaro, que – dentre outras coisas – prometeu um Moro no STF e entregou um Kassio Nunes. Durante o ponto alto da pandemia, Bolsonaro revelou-se também mais interessado na sucessão presidencial do que no problema social e sanitário: demitiu um ministro que se destacava e mandou todo mundo tomar cloroquina porque sim.  De todo modo, sua popularidade deve ir bem por causa do auxílio emergencial.

Acrescento ainda outro problema que pode ser considerado uma traição: a entrega da SECOM para aspones olavetes, dedicados a bancar robôs do Twitter e sites chapa-branca. Agiam como discípulos de Franklin Martins. Felizmente não contaram com o apoio dos professores universitários e não conseguiram manipular a opinião pública.

Por fim, há a ausência de privatizações. Guedes prometeu um monte, mas até agora, nenhuma.

Mas tudo isso continuará sendo irrelevante, no frigir dos ovos, enquanto Bolsonaro monopolizar a pauta popular da defesa da família.

Pauta popular

Mal acreditei quando soube, este ano, que há um programa televisivo de rede nacional transmitido de Manaus. O gênero é daqueles policialescos, que pobre assiste sem vergonha e classe média assiste com vergonha. O apresentador Sikêra Júnior, natural de Pernambuco, comemora a morte de bandidos com o bordão “CPF cancelado”, exibe fotos de ladrões perguntando se “queima ou não queima” (entenda-se: a rosca), faz campanha contra “a lacração”. Esta é retratada como um bando de “maconheiro” e “cabra safado” que não gosta de trabalhar, quer destruir a propriedade de quem tem porque é invejoso e pretende perverter “nossas crianças”. Às vésperas do segundo turno em Belém, ele pegou um avião para distribuir abraços num evento contra o candidato do PSOL, partido da lacração. (Ele toma processos do PSOL. E da Xuxa!) O concorrente, um inteiro desconhecido, quase ganha.

Uma alusão dele ao “unicórnio” nas escolas eu só entendi ao ler o já aludido livro de Abigail Shrier: existe um unicórnio do gênero que é mostrado a crianças na pré-escola dos Estados Unidos. Tentando me inteirar de Sikêra, descobri que ele não cursou mais que a sétima série e não gosta de ler livros. Alguém com esse perfil estava mais inteirado do que eu, em matéria de ideologia em escola.

A pauta “antilacração” é popular. É a pauta que moveu Bolsonaro. Os letrados trocam causa e efeito ao acharem que as pessoas odeiam a esquerda porque são bolsonaristas. É o contrário: as pessoas odeiam a esquerda porque têm sues motivos, e graças a isso votam em Bolsonaro.

O que chama a atenção nessa história toda é o estado de negação dos letrados. Antes, o bode expiatório eram os evangélicos. Hoje, o bode são aqueles que eles rotulam como bolsonaristas, mas que são apenas antiesquerda ou antilacração.

É de lastimar que Bolsonaro siga praticamente sozinho nesse filão eleitoral. Por ora, anoto apenas o MBL e o Novo, que ainda não parecem se articular para conquistar o Executivo nacional.

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