
Ouça este conteúdo
Na sustentação oral em que tentou demover os ministros do STF de condenar Jair Bolsonaro, o advogado Paulo Cunha Bueno acionou um símbolo clássico de erro judiciário. Ele afirmou que a absolvição era imperiosa para evitar que o país tivesse uma versão brasileira e atualizada do Caso Dreyfus, marcado como uma cicatriz na história jurídica do Ocidente.
Em outro momento, o defensor advertiu contra um Direito Penal de exceção ao afirmar que o processo não pode resvalar para uma “legislação soviética”. A expressão costuma ser usada para criticar a ideia de que atos preparatórios equivalem à execução do crime.
A defesa também sustenta que houve cerceamento de acesso amplo às provas ao longo da investigação, argumento já ventilado por advogados de outros réus no mesmo inquérito. O ponto, na versão da defesa, reforça o risco de assimetrias processuais justamente em um caso de alta carga política.
Mas o que, de fato, foi o Caso Dreyfus?
Para entender a força e os limites da analogia, é preciso voltar a 1894. Naquele ano, o capitão Alfred Dreyfus, oficial de artilharia francês e judeu alsaciano, foi acusado de traição por supostamente repassar segredos militares à Alemanha.
O caso nasceu do chamado bordereau (palavra francesa que significa memorando), um bilhete apreendido na embaixada alemã, cuja autoria a inteligência militar associou a Dreyfus por meio de uma perícia caligráfica contestada. Em dezembro de 1894, um Conselho de Guerra condenou o réu.
Pouco depois, em 5 de janeiro de 1895, ele perdeu as insígnias militares em uma cerimônia pública no pátio da Escola Militar de Paris. Em seguida, foi enviado para o degredo na Ilha do Diabo, Guiana Francesa.

O processo padeceu de vícios que hoje são estudados em manuais de processo penal: além de as provas serem frágeis, a sentença se baseou em um dossiê secreto apresentado aos juízes militares sem ciência da defesa, uma clara violação ao contraditório. A atmosfera antissemita e o desejo corporativo do Estado-Maior por “fechar questão” turvaram a avaliação técnica da prova.
A prova forjada
Em 1896, o chefe da Seção de Informações, tenente-coronel Georges Picquart, encontrou indícios de que o verdadeiro autor do bordereau seria o major Ferdinand Walsin Esterhazy. Em vez de reabrir o caso, o Exército silenciou a descoberta e afastou Picquart para a Tunísia.
A corporação dobrou a aposta: em 1898, veio à tona que o comandante Hubert-Joseph Henry havia forjado documento para “confirmar” a culpa de Dreyfus. Confrontado, Henry suicidou-se. As revelações abalaram a versão oficial e impulsionaram a revisão.
O escritor Émile Zola, em 13 de janeiro de 1898, publicou na primeira página do jornal L’Aurore a carta aberta “J’Accuse…!”, afirmando que o governo e o Alto Comando haviam agido por antissemitismo e cometido fraudes, abuso de poder e erro judiciário. Zola foi condenado à prisão por difamação e se exilou em Londres, mas seu libelo teve o efeito pretendido: trouxe o debate para a arena pública, obrigando o sistema a encarar suas contradições.
O ciclo de revisões: Rennes, perdão e reabilitação plena
Sob pressão, a Corte de Cassação anulou a primeira condenação e determinou novo julgamento em Rennes em 1899. Ainda assim, o segundo conselho de guerra condenou Dreyfus de novo, agora a 10 anos, com “circunstâncias atenuantes”.
O presidente Émile Loubet concedeu perdão, mas Dreyfus persistiu em buscar a inocência formal. Somente em 1906, a Corte de Cassação anulou definitivamente a sentença e proclamou a reabilitação completa. Dreyfus foi, por fim, reintegrado ao Exército e com a patente de major.
A anatomia do caso exibe uma sequência didática de distorções. Em primeiro lugar, a atribuição precipitada de autoria por um indício caligráfico frágil. Depois, um segredo de justiça assimétrico com dossiê oculto da defesa. Ainda, a pressão corporativa para sustentar a própria narrativa. Em seguida, uma prova falsificada para “fechar” o enredo. Por fim, um segundo julgamento ainda condicionado pelo ambiente político. É por isso que o “modelo Dreyfus” virou metáfora global de como paixões políticas, viés institucional e defesa cerceada convertem suspeita em condenação.
O paralelo com o capitão brasileiro e a Justiça atual
O advogado Paulo Cunha Bueno puxou esse fio histórico para sustentar princípios que regem o ordenamento jurídico. Segundo ele, a credibilidade da decisão do Supremo só será preservada se houver “respeito ao devido processo legal, à ampla defesa, ao princípio do juiz natural e, sobretudo, provas contundentes”.
Ao traçar o paralelo, Cunha Bueno lembrou que tanto Dreyfus quanto Bolsonaro foram capitães de artilharia, acusados de “crime contra a pátria” e submetidos a constrangimentos em seu direito de defesa.
No caso francês, um documento apócrifo serviu como fundamento para uma condenação que, décadas depois, seria reconhecida como erro histórico. No caso brasileiro, sustenta o advogado, não pode haver espaço para que “narrativas ou suposições” substituam provas sólidas, como a chamada “minuta do golpe”, citada por Cunha Bueno como "rascunho de documento apócrifo".
O recado foi direto: a solidez das provas e a lisura do processo são o que separa um julgamento legítimo de um episódio que a posteridade poderá recordar como injustiça.
Discurso completo
Leia a fala final, na íntegra, do advogado de Bolsonaro Paulo Cunha Bueno:
"Nós estamos diante de um caso que, como todos os outros — porém, mais do que qualquer um — exigirá a credibilidade da decisão dessa Corte. E essa credibilidade terá de ser exteriorizada pelo respeito ao devido processo legal, à ampla defesa, ao princípio do juiz natural, à imparcialidade objetiva, e principalmente em uma decisão calcada em provas contundentes, em provas evidentes, e não simplesmente em narrativas ou suposições. De outra forma, se se prescindir desse mecanismo, teremos aqui um julgamento que será inacabado porque ele estará sempre submetido ao tribunal do povo, ao irrequieto tribunal do povo, que certamente não será, não poupará palavras em dizer: 'não, o que se está julgando aqui é um movimento político e não simplesmente uma liderança'.
Nós não podemos, em hipótese alguma, excelências, permitir que entendam que a esta corte ou a este juízo terá faltado atenção à gravidade desse caso e a falta de elementos que possam imputar ao presidente Jair Bolsonaro os delitos que lhe são direcionados na denúncia. Senhores ministros, não permitamos, em hipótese alguma, criarmos neste processo uma versão brasileira e atualizada do emblemático caso Dreyfus.
Curiosamente, também capitão de artilharia, curiosamente acusado de crime contra a pátria, curiosamente condenado com base num rascunho de documento apócrifo, curiosamente teve seu exercício de defesa constrangido em determinada altura, e, inegavelmente, um dos casos que representa uma cicatriz na história jurídica do Ocidente. Senhores ministros, a absolvição do presidente Bolsonaro é imperiosa para que não tenhamos a nossa versão do caso Dreyfus. Muito obrigado.”
Assista aqui na Gazeta do Povo, ao vivo, o julgamento de Bolsonaro e aliados pela Primeira Turma do STF.






