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Os pitorescos argumentos dos censores da Ditadura mudaram e foram substituídos por diretrizes vagas e pelo incansável trabalho dos impiedosos algoritmos.
Os pitorescos argumentos dos censores da Ditadura mudaram e foram substituídos por diretrizes vagas e pelo incansável trabalho dos impiedosos algoritmos.| Foto: Pixabay

No início da década de 1980, o governo federal brasileiro mantinha 279 censores contratados por concurso público, locados em Brasília e nas principais capitais. Era um bom emprego, a ponto de a Faculdade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, criar um cursinho preparatório. Uma das seis provas seletivas realizadas pelo regime militar chegou a receber 5 mil inscrições, em 1977. Quem eram essas pessoas?

O cargo de censor fazia parte dos quadros da Polícia Federal. Para se candidatar, bastava ter um diploma de ensino superior, em qualquer curso. Solange Hernandez, chefe da Chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas entre 1981 e 1984, era historiadora formada pela Universidade de São Paulo. O censor Wilson Queiroz Garcia era jornalista – aliás, dezenas de profissionais de comunicação atuaram no departamento.

Essa exigência aos candidatos foi instaurada no início dos anos 1970. Antes, ao chegar ao poder, em 1964, os militares contrataram de esposas de militares a ex-jogadores de futebol para trabalhar na censura. Datam dessa época episódios de grande despreparo, como a proibição do romance O Vermelho e o Negro, de Stendhal, apenas porque havia um “vermelho” no título. Ou a ordem para que a polícia buscasse prender em São Paulo um dramaturgo subversivo chamado Sófocles, que viveu na Grécia, no século V a.C.

Com o passar do tempo, o governo investiu na formação de seus censores. Depois de aprovados em concurso, eles eram orientados a complementar sua formação. Aprendiam como editar filmes com professores da Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte. Recebiam aulas de atuação de profissionais, como a atriz Sylvia Orthof. Aprendiam direito com docentes da Universidade de Brasília.

Censura humana

Apesar de todas as tentativas de “aprimoramento”, a censura da ditadura era bastante limitada. Em parte porque o volume de material a analisar era enorme. Como informa Marcelo Ridenti, professor de Sociologia da Universidade de Campinas, em artigo sobre o tema, apenas em 1978, foram submetidos à censura 9.553 filmes (de curta e longa metragens), 2.648 peças de teatro, 47.475 letras de canções, 1.996 capítulos de telenovelas, 86 programas de TV, 859 capítulos de radionovelas, 167 programas radiofônicos, 90.671 peças de publicidade para rádio e TV e 440.925 fotografias e cartazes publicitários.

Desse montante, foram proibidos, na íntegra, 24 filmes (0,25% do total), 79 peças de teatro (2,9%), 462 letras de canções (0,9%), 40 materiais de publicidade (0,04%) e 1.231 fotografias e cartazes (0,2%). O volume é proporcionalmente pequeno, ainda que o impacto, para a vida e a obra de dezenas de artistas e produtores, tenha sido enorme. Nas redações de jornal, por exemplo, foi proibido noticiar a epidemia de meningite que afetou o país na primeira metade da década de 1970.

Em muitos casos, não havia um critério claro para os cortes, que eram motivados pela opinião pessoal dos censores. Foi para driblar essa questão que, em 1976, o dramaturgo Dias Gomes resolver reenviar capítulos censurados da novela Saramandaia de 20 em 20 dias – era o tempo que demorava para mudar o funcionário responsável por ler seu trabalho.

Muitos conteúdos eram parcialmente barrados pelos censores, mesmo que, em alguns casos, a contragosto. Foi o que aconteceu com uma cena de sexo no filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 1976.

“Eu sabia que, se deixasse na íntegra, meu chefe o cortaria inteiro”, declarou, em entrevista a este repórter concedida em 2006, o censor Coriolano de Loiola Fagundes, que atuou na função desde 1961 (antes mesmo do golpe militar, portanto) até que a carreira de censor fosse extinta, em 1988. Amigo do produtor Luiz Carlos Barreto, Fagundes sugeriu um corte pequeno, que deixasse o chefe satisfeito, sem comprometer o restante da cena.

Censura tecnológica

Em dezenas de países, a censura ainda é praticada de maneira oficial, como acontecia no Brasil até 1988. Do ponto de vista da produção de notícias, segundo relatório de 2019 do Committee to Protect Journalists, os países que mais perseguem a imprensa atualmente são, pela ordem, Eritreia, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Etiópia, Azerbaijão, Vietnã, Irã, China, Mianmar e Cuba.

O diretor de documentários norueguês Håvard Fossum visitou o Sudão do Sul, o Irã e a Índia e a China, onde conheceu o funcionamento dos sistemas de censura locais. Apresentadas no filme Meet the Censors [Conheça os censores], as entrevistas deixam claro que, na Índia, o departamento local de fiscalização da produção cultural segue um molde muito semelhante ao da ditadura brasileira – com os censores, inclusive, assumindo o papel de críticos e dispensando cenas ou filmes inteiros com base em opiniões pessoais.

No Sudão do Sul, contrariar o regime faz jornalistas e produtores culturais desaparecerem. No Irã, onde o trabalho de avaliação fica a cargo de religiosos, não existe uma lista oficial de proibições – cada escritor, músico, cineasta ou jornalista precisa praticar autocensura para evitar penas de prisão arbitrárias. Na China, o controle é ainda mais amplo.

Fossum entrevistou um jornalista que falou em nome do governo de Pequim, mas também manteve contato com outros profissionais de imprensa que se manifestaram sem expor seus nomes. Ele confirmou que o governo chinês utiliza a censura de forma disseminada. Todos os canais de notícias reproduzem as mesmas manchetes, o acesso a sites de outros países é proibido e os filmes, mesmo os do exterior, passam por cortes ou mudanças ainda na fase de roteiro, um hábito que está transformando a produção de Hollywood.

O diretor também visitou a Alemanha, no momento em que o governo local tentava colocar em pé uma iniciativa de aumentar a fiscalização sobre crimes cometidos nas redes sociais. Percebeu que o trabalho, ali, parece incapaz de lidar com o desafio. Isso porque é nas redes sociais que se pratica, de forma ampla, os mais expressivos atos de censura.

“Próprios critérios”

Em junho de 2020, perguntado sobre suas regras para barrar comentários, o Facebook informou à reportagem: “Durante o mês de abril, exibimos avisos em cerca de 50 milhões de conteúdos relacionadas ao Covid-19 no Facebook, com base em cerca de 7.500 artigos dos nossos parceiros independentes de verificação de fatos”.

Em janeiro de 2021, depois que a conta de Twitter do ex-presidente Donald Trump foi cancelada, a empresa enviou à reportagem o seguinte comunicado: “O Twitter tem regras que determinam os conteúdos e comportamentos permitidos na plataforma, e violações a essas regras estão sujeitas às medidas cabíveis”.

Quando o canal Terça Livre foi eliminado do YouTube, no início de fevereiro, a empresa se manifestou da seguinte forma: “Todos os conteúdos no YouTube precisam seguir nossas diretrizes de comunidade. Contamos com uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar conteúdo suspeito e agimos rapidamente sobre aqueles que estão em desacordo com nossas políticas”.

A empresa prossegue: “O YouTube também se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios. Caso uma conta tenha sido restringida na plataforma ou impossibilitada de usar algum dos nossos recursos, o criador não poderá usar outro canal para contornar essas penalidades. Essa regra se aplicará a todo o período em que a restrição estiver ativa. Consideramos a violação dela um descumprimento dos nossos Termos de Serviço, o que pode levar ao encerramento da conta.”

Eliminar ou marcar posts e vídeos, portanto, é uma decisão que segue, nas palavras do YouTube, seus “próprios critérios”. “Existe um direcionamento contra os conservadores”, afirmou o cientista político Richard Hanania, professor do Saltzman Institute of War and Peace Studies, da Universidade Columbia. “Muitos apoiadores de Trump foram chutados para fora de redes sociais. Por outro lado, quase não existem progressistas conhecidos que tenham sido removidos do Twitter”.

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