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Liberdade acadêmica e censura
Brasil está entre 22 países que viram queda na liberdade acadêmica significativa entre 2012 e 2022. Nicarágua, Cuba e Venezuela são os piores das Américas.| Foto: Eli Vieira com Midjourney

A edição mais recente do Índice de Liberdade Acadêmica (ILA), elaborado por pesquisadores da Universidade de Erlangen-Nuremberg na Alemanha e outras três instituições, aponta uma estagnação da liberdade acadêmica 152 dos 179 países analisados, além de declínio em 22 deles, inclusive o Brasil. Somente em cinco pequenos países houve melhoria. Lançado neste mês, o relatório compara os dados mais recentes, de 2022, com os de uma década antes. “A liberdade acadêmica está recuando para mais da metade da população do mundo”, comenta o documento.  Na média global, a liberdade acadêmica regrediu para os patamares de quatro décadas atrás, segundo o estudo, e corre o risco de atingir o nível mundial médio de 1960, caso o declínio não seja freado.

A análise observa indicadores de liberdade de pesquisar e ensinar, de intercâmbio acadêmico e disseminação, de expressão acadêmica e cultural, além de autonomia institucional e integridade do campus. Para cravar que houve crescimento ou queda, os pesquisadores levam em conta mudanças estatisticamente significativas. Ou seja, diferenças de poucos pontos percentuais entre 2012 e 2022, que não ultrapassam a “margem de erro”, são consideradas estagnação.

O arquipélago das Seicheles, na África, teve o maior salto positivo, subindo para a marca dos 20% mais livres academicamente. Também subiram no índice Montenegro, Gâmbia, Cazaquistão e Uzbequistão — o que não significa que a nota foi alta. O Uzbequistão, por exemplo, que é uma ditadura com 34 milhões de habitantes, está entre os 30% menos livres.

Nos que tiveram queda significativa, além do Brasil, estão Uruguai, Reino Unido, Estados Unidos, México, El Salvador, Ucrânia, Índia, Hungria, Rússia, Hong Kong, Nicarágua e China. As piores notas das Américas são de Cuba e Nicarágua, países que vivem sob ditaduras socialistas. Ambos estão entre os 10% mais censórios e autoritários, e a Venezuela está entre os 20% piores.

O relatório, que detecta uma marcada diferença entre democracias e autocracias, explica que a Índia, por exemplo, saiu de um nível “relativamente alto” de liberdade acadêmica em 2012 e teve uma queda “associada a uma aceleração rápida” em tendências autocráticas especialmente após a eleição do governo nacionalista hindu de Narendra Modi em 2014 e após “o colapso da democracia eleitoral em 2016, resultando em uma autocracia eleitoral”.

A China mostra uma variação de um regime já fechado que piorou — o período analisado coincide com o mandato de Xi Jinping. Todas as universidades chinesas se curvam à ideologia do Partido Comunista, que tem representantes em cada campus. A ditadura comunista também puxou para baixo Hong Kong, com níveis sem precedentes de interferência desde a devolução do Reino Unido.

Já nos Estados Unidos, onde a política local é mais importante que a federal, “estados individuais interferem cada vez mais em assuntos acadêmicos”, explica o documento. O relatório cita nove estados sob governo do Partido Republicano que passaram leis que banem o ensino da “teoria crítica da raça” em instituições de ensino superior. A “teoria” prega que negros devem ter tratamento especial para corrigir injustiças históricas, e que o tratamento igual seria em si racista.

O documento também destaca o México, no qual a liberdade acadêmica estaria em risco por causa do “uso do governo da política fiscal e decisões de nomeação para aprofundar o controle das universidades”, especialmente a partir de 2017. Um dos principais responsáveis seria o presidente de esquerda Andrés Manuel López Obrador, cujo governo “minou a autonomia universitária” através de “medidas duras de austeridade”, além da priorização de “problemas nacionais” na pesquisa. A nomeação de reitores unilateralmente por López Obrador tem atraído protestos de estudantes. O mundo acadêmico mexicano também é afetado pela guerra de cartéis do tráfico de drogas.

O índice é calculado com base em dados de diferentes fontes, como pesquisas com especialistas, relatório, e estatísticas da Unesco. Os dados são agregados em cinco indicadores relacionados à liberdade acadêmica: liberdade de pesquisar e ensinar, liberdade de intercâmbio acadêmico e disseminação, autonomia institucional, integridade do campus e liberdade de expressão acadêmica e cultural. Cada indicador é expresso numa nota de 0 a 1 (que pode ser convertida em porcentagem), e o índice completo é a média dos cinco.

Como se sai o Brasil

O Brasil está entre os 40% mais autoritários na última classificação do ILA. O relatório não entra em detalhes sobre o país, mas afirma que seu banco de dados tem “altos padrões acadêmicos e usa o melhor modelo disponível para agregar avaliações de especialistas”.

Estatisticamente, com a margem de erro, o Brasil não difere em liberdade acadêmica, segundo o índice, de países como Cingapura, Kuwait, República Democrática do Congo, Iraque, El Salvador e Angola. A nota brasileira no índice é muito variável, de 32,4% em 2015, sob o governo Dilma Rousseff, a 56,2% em 2019, já sob Jair Bolsonaro.

Como os dados não são puramente objetivos, a variação não está livre de refletir o viés dos especialistas que são parte da fonte do índice. Entre os colaboradores do estudo estão “peritos do Global Public Policy Institute (GPPi)”, por exemplo. Um texto de setembro de 2020, publicado pelo GPPi, com autoria do professor de direito da USP Conrado Hübner, diz que os direitos constitucionais de liberdade de expressão, liberdade de pensamento e liberdade de ensino e aprendizado, além da autonomia universitária, estariam “sob ataque” no Brasil. Hübner também faz pesquisa para o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT).

A nova ferramenta de inteligência artificial Bing, da Microsoft, por exemplo, recorre ao GPPi e ao LAUT como fontes para afirmar que o país sofre com “interferência política e censura do governo federal e algumas autoridades estaduais”, “assédio e intimidação de acadêmicos e estudantes por grupos de direita e trolls na Internet, que muitas vezes os acusam de serem ‘comunistas’ ou ‘ideólogos’”, além de corte de verbas que “minam a autonomia institucional”. A percepção de liberdade acadêmica, portanto, é sensível a fatores como o montante de impostos destinados a acadêmicos e a existência de críticas online.

A própria ideia que acadêmicos fazem da própria liberdade acadêmica, que inclui a livre expressão, varia de cultura para cultura. Em janeiro, Hübner disse no Twitter ao jornalista Glenn Greenwald que a noção de liberdade de expressão deste está errada porque vem da Constituição americana, um “monumento obsoleto”. Hübner também destacou que a Constituição brasileira é 200 anos mais jovem que a americana, dando a entender que isso seria uma virtude. Greenwald respondeu que não se trata de uma noção americana, mas iluminista.

Como se saem os últimos 60 anos

O Índice de Liberdade Acadêmica também oferece uma comparação de longo prazo, desde 1960. Nesse período, especialmente na década de 1990, o mundo saiu de um índice de menos de 50% de liberdade para uma nota acima desse valor. Porém, quando as notas são ponderadas pelo tamanho da população dos países, a subida até por volta de 2010 é seguida por um declínio que ameaça chegar ao mesmo patamar de 1960.

Europa e América do Norte desfrutam de altos níveis do índice, acima de 75%, por todo o período histórico, e o Oriente Médio e o Norte da África permanecem em torno de 25%. “Para o cidadão médio global, a liberdade acadêmica está de volta a um nível registrado quatro décadas atrás”, conclui o relatório.

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