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Céu ofuscado, inteligência embotada
| Foto: Pixabay

Existe um preconceito, hoje, segundo o qual ateus são científicos e céticos, ao passo que os religiosos são obscurantistas e supersticiosos. É como se Galileu e Newton fossem ateus, e a ciência moderna tivesse se desenvolvido numa época em que ser ateu fosse normal. Esse preconceito é difundido no mundo por Richard Dawkins, mas tem raízes teístas. Remonta a Voltaire, divulgador de Newton na França. Voltaire acreditava em Deus, achava que a crença nele era indispensável à vida em sociedade, mas era um ferrenho anticlerical. Acreditava em Deus, detestava a Igreja.

Que Deus seria esse? O Deus dos estoicos: uma entidade racional responsável pela harmonia da natureza. O mundo é muito bem feito, de modo que existe um grande planejador por detrás disso.  Embora fossem pagãos, os estoicos tiveram muita influência sobre a cristandade. Daí vem a famosa quinta via de São Tomás para provar a existência divina. Eles subjazem também à cosmovisão de Galileu, segundo a qual Deus escreveu o mundo em linguagem matemática, a ser decifrada pelo filósofo. Fora da seara católica, Newton considerava que o olho não pode ter sido feito sem o conhecimento da ótica, de modo que a sua obra científica consistia em desvelar as leis de Deus para a natureza.

Os protestantes tentaram criar uma teologia natural de inspiração newtoniana, e o marco desse projeto são as Boyle Lectures, que serviram de inspiração para o design inteligente e o criacionismo. Como Voltaire foi um divulgador de Newton na França (isso porque os  franceses ainda pretendiam que o seu compatriota Descartes fosse o maior físico do mundo…), lá a ideia do Deus planejador da natureza acabou incorporada ao iluminismo e, depois, à panaceia positivista.

Este foi um salto interessante, dado que os positivistas eram ateus e achavam que a religião era uma superstição primária a ser abandonada à medida que o homem tivesse mais ciência. O marxismo é da mesma toada; a religião é o ópio do povo.

Depois do iluminismo, Deus saiu de cena, mas, de alguma forma, o papel do legislador da natureza se multiplicou. Se Newton descobriu as leis outorgadas por Deus que regem corpos, Comte quer desvendar as leis que simplesmente existem e regem as sociedades, e Marx pretende ter descoberto, com a ciência do materialismo dialético, as leis inexoráveis da História. Com esses ateus, não há Legislador, mas o que não falta é lei poderosa.

Digamos então que um traço que une São Tomás, Galileu, Newton, os positivistas, os marxistas e os positivistas é a cosmovisão planejada. O mundo é ordenado segundo leis fixas e inexoráveis; tem um aspecto planejado, ainda que se afirme não haver planejador.

Cosmovisão caótica

O estoicismo era a filosofia predileta dos romanos por volta do começo da Era Cristã; assim, não é de admirar que o estoicismo tenha moldado a cosmovisão dos primeiros cristãos. Uma filosofia concorrente era a do epicurismo. Segundo ela, tudo no mundo é átomo e movimento. Os átomos se movem de maneira caótica, e do caos surge a ordem — uma ordem perecível, sempre sujeita a se desfazer pelo movimento incessante dos átomos. Nossa existência é fruto de um arranjo provisório dos átomos, e nossa morte significa que as partes que nos compunham se desagregaram e voltaram à natureza.

Os epicuristas não eram ateus. (Dificilmente alguém era ateu antes do século XVII.) Eles acreditavam que os deuses viviam num estado imperturbável, desfrutando de prazeres, e não tinham poder para interferir em assuntos humanos. O Deus ordenador não existe. Existem deuses que convivem com a desordem. Foi Epicuro quem apontou o problema que iria atormentar teólogos por séculos: se Deus é bom e onipotente, de onde então vem o mal?

No campo da ciência, podemos apontar Charles Darwin como um grande nome que partilha dessa cosmovisão. Para ele, a vida não foi planejada; ela é fruto de uma natureza caótica, que devora a vida tal como Cronos a seus filhos. A vida que existe é uma ordem que sobreviveu à desordem, escapou de ser devorada. E nem essa ordem é eterna: a espécie que até aqui foi a mais adaptada pode ser extinta, caso aconteça algo tão imprevisível quanto a queda de um asteroide, ou uma grande mudança num ecossistema.

É possível que o ateísmo de Darwin lhe tenha facilitado a vida, já que descartou a imagem da Criação pronta e acabada. Mas a cosmovisão caótica não é avessa ao cristianismo. No Sermão da Sexagésima, Antonio Vieira usa Deus como um autor cujo estilo o pregador deve imitar. Qual é o exemplo de estilística divina? O céu estrelado. “O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu um xadrez de estrelas”.

A ordem das estrelas tem um aspecto aleatório (feita pela influência, pelo entusiasmo); não é nada reto e alinhado como azulejos (ordem feita pelo lavor, pelo trabalho artesanal). Olhando para as estrelas sem pensar na sua autoria, um Newton nunca diria, à primeira vista, que elas são ordenadas. Ele diz isso somente depois de desvendar o percurso das estrelas, e notar desenhos regulares que seu percurso pelo céu. Vieira, não. Com olhos de artista em vez de cientista, ele olha para a dispersão aleatória de estrelas brilhantes sobre a tela preta, e diz que isso é a ordem do semeador.

A ordem do semeador não é uma ordem planejada. As palavras dispersadas pelo pregador e as sementes dispersadas do semeador caem nos terrenos mais diversos, e nem todas frutificam. Não é planejado, nem é regular, mas Vieira chama isso de ordem. O mundo é caótico, e sua ordem é fruto de semeadura irregular.

A cosmovisão caótica de Darwin casou com sua boa compreensão da vida na terra. Já a cosmovisão planejada de Galileu e Newton lhes serviu para apreender o movimento dos corpos celestes: as coisas mais regulares da natureza, as mais parecidas com um relógio. A cosmovisão caótica de Vieira fez com que ele olhasse justamente para o céu com uma metáfora biológica, a da semeadura.

Traçados humanos

Vieira era um orador barroco, e o céu estrelado era apresentado como modelo de beleza. Se as estrelas fossem arrumadas do mesmo jeito que um xadrez, elas teriam um aspecto ainda mais ordenado, mas certamente menos bonito. E mais: se fosse menos bonito, o céu seria mais cognoscível, também. Afinal, para saber quantas estrelas estão no nosso campo de visão, bastaria uma multiplicação igual à que fazemos para saber o número de azulejos.

Tal como é, o céu serve para apresentar a qualquer sabichão a sua ignorância. São pares ou ímpares as estrelas no nosso campo de visão? Impossível responder a essa questão que, no entanto, é tão banal. O céu oferece um tanto de infinitude ao expectador. Isso é didático, quebra as pernas de quem acha que tudo é cognoscível aqui e agora.

No mesmo universo estético de Vieira, temos as igrejas barrocas. Elas conseguem ter o mesmo efeito didático que o céu, embora sejam tão pequenas em comparação a ele.

Uma igreja barroca tem pinturas de azulejo e de madeira, além de afrescos, tudo isso em 360º. O ouro brilha nas esculturas de madeira, em colunas que misturam todo tipo de estilo. Homens de madeira carregam colunas retorcidas, folhas de parreira se enroscam nas colunas, patas de animais surgem nas partes mais baixas das paredes. Subindo um pouco, a madeira ganha forma de anjinhos e de senhoras mostrando pança e seios. Mais para cima, uma mão escura de madeira sai da parede e segura um archote. E isso porque nem chegamos ao teto, cheio de pinturas e ouro e madeira.

No centro está uma história bíblica representada pela imaginação de um homem do século XVIII. Ali, num canto, junto à janela mais alta de uma parte mais baixa, o teto acaba. Mas a pintura de com perspectiva faz o teto continuar para cima, e lá há uma outra janela, imaginária, que mostra um anjo banhado pela luz da lua. E essa luz da lua é feita para ser vista de dia, porque sem a luz da janela verdadeira não podemos ver essa pintura de perspectiva.

É impossível entrar numa igreja barroca e apreender todos os seus detalhes — do mesmo jeito que é impossível olhar para um céu estrelado e saber o número de estrelas sobre os nossos olhos.

Mas está difícil encontrar céu estrelado hoje. A disseminação da eletricidade fez com que as cidades ofuscassem o céu, e as estrelas não fossem mais tão chamativas. Ninguém precisa ficar no escuro para atiçar a imaginação, porque isso é papel da estética. No entanto, estética moderna parece ter uma fobia de complexidade, um horror à imaginação. Os arquitetos projetam caixotes e os pintores vendem telas com tinta esparramada ou desenhos geométricos insossos.

Com um mundo cheio de retas e vazios, sem nenhum espaço para mistério ou imaginação, não é de admirar que os letrados achem que a ciência sabe de tudo, depois de ver meia dúzia de cientista e jornalista abrindo a boca.

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