Cissa Guimarães, “a garota que quebra o coco, mas não arrebenta a sapucaia” (nas palavras de Miguel Falabella, seu antigo colega no ‘Vídeo Show’), está de volta à tevê. No próximo dia 26, a atriz e apresentadora assume o comando do ‘Sem Censura’, histórico programa diário de debates da TV Brasil, emissora do Governo Federal.
Fora do ar desde 2021, quando teve seu contrato com a Globo rompido depois de quatro décadas, Cissa receberá da EBC (a Empresa Brasil de Comunicação, gestora do canal) R$ 840 mil por ano, o equivalente a um salário mensal de R$ 70 mil.
Houve quem se indignou com o valor, principalmente por se tratar de um órgão público. Outros lembraram que ela recebia o dobro na televisão da família Marinho para participar de apenas uma atração semanal (o ‘É de Casa’).
O buraco, no entanto, é bem mais embaixo. Afinal, Cissa Guimarães integra o grupo – cada vez maior – de artistas, jornalistas e influenciadores que apoiaram Lula nos últimos anos e depois foram beneficiados pela Secretaria de Comunicação Social com cargos ou cachês de publicidade institucional. A começar pela própria diretora de Programação e Conteúdo da EBC, Antonia Pellegrino.
Roteirista de filmes como ‘Tim Maia’ e ‘Bruna Surfistinha’, ela é filiada ao PT, neta do psicanalista (e comunista) Hélio Pellegrino (1924-1988) e casada com Marcelo Freixo, atual presidente da Embratur. Também cumpre o que parece ser um requisito básico para se dar bem nessa área do governo: mantém uma boa relação com a primeira-dama Janja Silva.
Com um salário mensal de R$ 27,3 mil, Antonia tem se cercado de outras figuras que “fizeram o L” e agora estão colhendo os frutos de sua militância. Como o jornalista e ex-editor do site Intercept Brasil, Leandro Demori. Conhecido pela série de reportagens ‘Vaza Jato’ (sobre a proximidade do ex-juiz Sergio Moro com os procuradores da Operação Jato), ele ganhou um talk-show próprio e uma remuneração anual de cerca de R$ 430 mil na tevê do governo.
Em novembro do ano passado, já contratado pela EBC, Demori usou suas redes sociais para reforçar um ataque coordenado da esquerda ao trabalho de outra jornalista, Andreza Matais, do Estado de S. Paulo – autora de matérias que comprovaram a participação de Luciane Barbosa Farias, a “Dama do Tráfico”, em eventos promovidos pelos ministérios dos Direitos Humanos e da Justiça e Segurança Pública.
O apresentador do ‘Dando a Real com Demori’ (nome de seu programa na TV Brasil) ainda foi a principal fonte de um texto, publicado na revista "vermelha” Forum, intitulado “Como o Estadão se tornou porta-voz da extrema direita atual?”. Segundo a publicação, ele revelou uma “trama complexa que envolve bilionários em busca da construção de um grande meio de comunicação para combater o PT e a esquerda como um todo”.
Mas os exemplos de lulistas agraciados com cargos na EBC não param por aí. Depois de ensaiar uma candidatura a deputado federal pelo PSB fluminense, e apoiar publicamente Lula em 2022, o ex-global Marcos Uchôa virou assessor da presidência da empresa estatal – e hoje acompanha o petista em suas viagens pelo mundo, além de ancorar as lives ‘Conversa com o Presidente’. Remuneração mensal: R$ 17,8 mil.
A documentarista Maria Augusta Ramos, gerente-executiva de Conteúdo da tevê, é notória por dirigir filmes como ‘O Processo’ (um panfleto contra o impeachment de Dilma Roussef) e ‘Amigo Secreto’ (também sobre o vazamento das mensagens entre Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato). Seu salário, por mês, é de R$ 21,4 mil.
Há boquinhas disponíveis até para “influenciadores digitais” engraçadinhos. O publicitário Jeferson Monteiro, criador do perfil chapa-branca Dilma Bolada, recebia R$ 17,8 mil para ser “produtor educativo” na Gerência Executiva de Produção, Aquisições e Parcerias de Conteúdos Educativo da EBC. “Recebia”, no tempo passado, porque Monteiro acabou sendo exonerado no final de 2023.
O motivo? Ele resolveu passar uma temporada viajando pela Europa antes mesmo de ter direito às primeiras férias na empresa pública.
Mas deu tudo certo para o publicitário, que logo em seguida retomou sua função na equipe de comunicação do prefeito carioca Eduardo Paes (PSD) – anfitrião de um jantar oferecido para Lula, na quarta-feira (6), na residência oficial do chefe do executivo municipal. Seu “soldo” no Rio é ainda maior: R$ 32,8 mil.
Incluído na faixa dos R$ 17,8 mil, outro influencer muito popular, Murilo Pereira Ribeiro, o Muka, foi nomeado em janeiro para o cargo de gerente de pauta da EBC. Na prática, será um dos debatedores fixos do ‘Sem Censura’ (cuja apresentadora mais lembrada, ironicamente, é uma jornalista agora associada à direita, Leda Nagle, que comandou o programa entre 1996 e 2016).
Muka é agenciado pela Mynd8, empresa responsável por perfis pró-Lula e pela carreira de influenciadores acusados de compartilhar conteúdos falsos que teriam desencadeado a morte, por suicídio, de uma jovem de 22 anos (o famoso “Caso Choquei”). Também é – surpresa! – amicíssimo de Janja.
Artistas-lulistas receberam R$ 30 mil para estrelar campanha do Ministério da Saúde
Bem relacionada no meio cultural, a primeira-dama conseguiu que vários artistas participassem, sem receber cachê, de dois eventos simbólicos da nova era do marido no poder: a regravação do clipe para o jingle ‘Sem Medo de Ser Feliz’ (aquele do refrão ‘Lula lá’), durante a campanha, e o Festival do Futuro, realizado em Brasília no dia da posse, em janeiro do ano passado.
Mais de 20 atores e cantores aparecem no vídeo, entre eles alguns que já haviam gravado a versão original de 1989 (Chico Buarque, Marieta Severo, Lucélia Santos, Cristina Pereira). Entre os “novatos”, estão pelo menos duas celebridades mais tarde recompensadas financeiramente: Cissa Guimarães e Camila Pitanga. Esta última, por meio da participação em uma campanha do Ministério da Saúde criticada pelo alto custo dos cachês oferecidos a 17 convidados – R$ 30 mil “por cabeça”.
Criadas para conscientizar a população sobre a importância das vacinas, as peças publicitárias foram estreladas por nomes como Emicida, Caio Blat, Camila Morgado, Leandra Leal, Paulo Betti, Natália Lage, Sheron Menezes e Ivan Baron (o ativista portador de necessidades especiais que subiu a rampa com Lula na posse). Todos, sem exceção, declararam seu apoio em algum momento ao presidente – basta uma passada por suas redes sociais para confirmar.
Outra campanha da pasta da Saúde, com foco na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, pagou R$ 120 mil para quatro influencers publicarem mensagens temáticas no Instagram. A maior fatia do bolo, R$ 50 mil, ficou com Rafael Chalub, conhecido na internet como Esse Menino.
Em 2021, Chalub viralizou com um vídeo em que ironizava o ex-presidente Jair Bolsonaro por causa da denúncia – feita pelo senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) durante a CPI da Covid – sobre os mais de 50 e-mails enviados pela farmacêutica Pfizer (e não respondidos pelo governo) para solicitar um posicionamento quanto à compra de vacinas.
“O desgoverno Bozo ignorou 57 e-mails da Pfizer ano passado. Eles queriam fazer o Brasil de vitrine para imunização, até ofereceram vacinas pela metade do preço quando não viam sinais de resposta. Era pra gente tá vacinado, muitas pessoas morreram e estão morrendo por capricho desse bosta. #forabolsonaro”, dizia a legenda do post.
Questionado sobre o custo dos cachês, o Ministério da Saúde afirmou, por meio de uma nota, que o valor pago às celebridades estava abaixo do preço de mercado e era menor que o recebido por participantes das campanhas de publicidade da gestão anterior.
Pastor progressista que cantou de graça na posse estrelou campanha de final de ano
Os gastos com a produção do Festival do Futuro até hoje não foram informados por Janja. Só se sabe que os recursos foram doados por partidos aliados, empresários, centrais sindicais e entidades da sociedade civil. Segundo o colunista Lauro Jardim, do jornal O Globo, o evento custou R$ 8 milhões – mesmo com as atrações musicais tocando sem ganhar cachê.
Na ocasião, muita gente, inclusive do lado “canhoteiro”, detonou os organizadores por terem escalado somente cantores da chamada “esquerda festiva”, enquanto nomes realmente populares ficaram de fora.
O sertanejo, gênero musical hegemônico do Brasil (e cujos principais astros têm posicionamentos conservadores), não foi representado no evento – protagonizado por cantores como Pablo Vittar, Gaby Amarantos, Chico César, Maria Rita e a ministra Margareth Menezes (outra que “fez o L” na campanha e ganhou – muito – com isso).
No meio dessa fauna, chamou a atenção a presença do pastor e cantor gospel Kleber Lucas. Contestado dentro do próprio meio evangélico por suas posturas progressistas, ele também se apresentou de graça no festival. Mas embolsou alguma grana mais tarde.
O religioso foi uma das estrelas da campanha “O Brasil é um só povo”, lançada em dezembro de 2023 pela Secretaria de Comunicação (e cujo valor gasto será divulgado apenas quando terminar, ainda neste ano).
Elogiada por Lula, o que rendeu pontos ao ministro Paulo Pimenta, a iniciativa buscava promover a união nacional e combater a intolerância motivada pela polarização política (uma mensagem, convenhamos, totalmente oposta à postura diária do próprio presidente).
Kleber Lucas aparece na primeira peça da série de comerciais, cantando com Sandra de Sá, Jorge Vercillo, a funkeira Lelê e o músico de axé Manno Góes. E adivinha para quem eles pediram votos na eleição passada?
Mesmo Vercillo, que já chegou a fazer críticas ao PT em entrevistas antigas, acabou optando pelo voto útil “vermelho” no segundo turno. “Prefiro Ciro, mas entre Lula e Bolsonaro, voto em Lula”, declarou para o jornal O Dia.
Diante da previsão de despesas do governo com publicidade oficial para este ano – R$ 647 milhões, contra R$ 359 milhões em 2023 –, é de se esperar que ainda mais aliados sejam reconhecidos pelos serviços prestados ao presidente. Parafraseando aquele famoso bordão da direita: “quem ‘fez o L’, lucra” (menos o povo, claro).
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