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No Brasil, a cadeia funciona como escola. Quase todas as grandes facções nasceram atrás das grades — e o Comando Vermelho não foge a essa regra.
Mas sua origem, na década de 70, guarda um elemento extra e determinante: a convivência entre presos políticos e criminosos de alta periculosidade.
Inicialmente conflituosa, a relação entre militantes de esquerda e bandidos “comuns” no presídio da Ilha Grande (RJ) acabou derivando numa parceria. E o resultado dessa aliança — voltada, num primeiro momento, para organizar regras de convivência — foi a transferência de um sofisticado know-how de guerrilha revolucionária para o mundo do crime.
Não que esse tipo de cooperação tenha começado naquela época. Já em 1917, durante o chamado “Ano Vermelho” (período de greves e agitação inspiradas pela Revolução Russa), o Brasil viveu uma experiência de convívio entre anarquistas, sindicalistas e delinquentes habituais.
O mesmo aconteceu no Estado Novo, quando a ditadura de Getúlio Vargas reuniu, sob as mesmas leis, presos de mundos diferentes. Em suas memórias, o líder comunista Gregório Bezerra, encarcerado após o levante marxista de 1935, conta que formou uma célula revolucionária dentro da Casa de Detenção do Recife — que incluía militantes, cangaceiros e até guardas.
Caldeirão do Diabo
O Comando Vermelho (CV), inicialmente denominado Falange Vermelha, nasceu no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, por volta de 1974.
Conhecido como “Caldeirão do Diabo”, o presídio já havia sido descrito pelo escritor Graciliano Ramos — que esteve detido ali durante a era Vargas — como um local de superlotação e violência. No livro Memórias do Cárcere (1953), Ramos descreve a unidade como um ambiente onde as paredes “choravam” (de tão úmidas) e havia uma sensação “avassaladora” de que “estávamos ali para morrer”.
A gênese do CV está ligada a uma estratégia do regime militar de desestabilizar e despolitizar a luta armada. O dispositivo legal foi a Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1969, cujo Artigo 27 nivelou assaltantes comuns e militantes de esquerda que roubavam bancos para financiar suas ações.
Todos foram enviados para a Galeria B, o “Fundão” — o setor mais temido da cadeia. Nesse espaço, presos políticos de classe média e alta escolaridade foram forçados a conviver com homens de origem pobre.
Entre esses últimos, havia pelo menos três considerados mais “articulados”: William da Silva Lima (o “Professor”), Rogério Lengruber (“Marechal”) e José Carlos dos Reis Encina (“Escadinha”).
Já na turma da “elite”, destacavam-se figuras como o jornalista Fernando Gabeira, o padre Alípio Cristiano de Freitas e o sindicalista Colombo Vieira de Souza Junior — condenados por crimes como sequestro e roubo a agências bancárias.
Aliás, a prática do assalto a bancos foi um fator crucial na aproximação entre os dois grupos na Ilha Grande.
Para os militantes de esquerda, esse tipo de roubo era visto como “expropriação”, “retomada” — um ato político destinado a angariar fundos para a revolução. O alvo era o “capital burguês”, com os bancos vistos como símbolos do imperialismo e da desigualdade.
Os ladrões de carreira acabaram incorporando essa justificativa retórica. A convivência com os presos políticos reforçou para eles uma percepção de que o verdadeiro inimigo era o Estado “opressor”, e roubar bancos representava uma forma de insurgência contra um sistema desigual e injusto.
O ensinamento que faltava
Mas há uma forte controvérsia quanto ao grau de envolvimento dos guerrilheiros marxistas na formação do Comando Vermelho.
O advogado José Carlos Tórtima, ex-preso político da Ilha Grande e depois Procurador-Geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, rejeita categoricamente a versão mais conhecida da história — a que atribui ao contato entre militantes e marginais um papel decisivo na criação da facção.
“Isso é um mito veiculado pela direita. Enquanto os revolucionários se baseavam no debate coletivo, o Comando Vermelho adotou uma hierarquia militar e autoritária”, afirma Tórtima, nomeado diretor do presídio nos anos 1980, durante o governo de Leonel Brizola.
Em seu livro Quatrocentos Contra Um: Uma História do Comando Vermelho (1991), William da Silva Lima, o “Professor”, minimiza a ideia de que o CV foi criado por militantes.
Ele reconhece ter lido, na cadeia, muitos livros recomendados por presos políticos (incluindo O Capital, de Karl Marx), porém enfatiza que a força do “Fundão” estava na “afetividade que desenvolvemos uns com os outros nos períodos mais duros das nossas vidas”. Lima ainda critica os colegas da esquerda por “lutarem para isolar-se da massa, um comportamento considerado elitista por nós”.
Autor de Comando Vermelho: A História Secreta do Crime Organizado (1993), considerado um dos livros mais completos sobre o tema, o jornalista Carlos Amorim refuta a intencionalidade dos militantes.
“Os revolucionários nunca pretenderam ensinar criminosos a fazer guerrilhas. Em mais de uma década de pesquisa, nunca encontrei o menor indício de que houvesse uma intenção — menos ainda uma estratégia — para envolver o crime na luta de classes”, diz.
Amorim, no entanto, reconhece o resultado concreto do encontro entre os dois grupos. “A experiência do confronto armado contra o regime militar e do método de construção dos grupos militantes — transferida pelo convívio nas cadeias — foi o ensinamento que faltava para o salto de qualidade rumo ao crime organizado.”
O que o CV aprendeu
A convivência forçada na Ilha Grande permitiu que os criminosos comuns absorvessem uma sofisticada “tecnologia de organização” — que incluiu desde elementos conceituais da filosofia marxista até táticas de guerra assimétrica utilizadas pelas organizações da esquerda armada. Veja a seguir alguns dos principais ensinamentos transmitidos.
A força da união
Os bandidos aprenderam que a solidariedade dos militantes — que dividiam tudo — era mais eficaz que o individualismo violento. A ideia de organização coletiva substituiu a lógica do “cada um por si” e transformou o crime desorganizado em estrutura hierarquizada.
Consciência política e leitura marxista
Textos como O Manifesto Comunista e O Capital circulavam na Ilha Grande, transformando criminosos em estudantes de retórica revolucionária. Eles aprenderam a justificar suas ações como “resposta às condições insuportáveis” — discurso que mascarava a violência com linguagem política.
Hierarquia militar e disciplina rígida
O CV copiou a estrutura celular das organizações de luta armada: células semi-independentes, comunicação em código, compartimentalização. Essa “burocracia de violência” garantia que a facção continuasse operando mesmo com lideranças presas.
Código de conduta
O lema "Paz, justiça e liberdade” — que na prática significava paz entre bandidos, lealdade interna e fugas — era pura retórica revolucionária aplicada ao crime. Regras internas rígidas substituíram o caos anterior, mas serviram apenas para fortalecer a organização criminosa.
Manuais do crime
Obras proibidas como os manuais de Marighela e de Che Guevara se tornaram guias de operações criminosas. Os bandidos estudavam táticas de guerrilha com a dedicação de alunos — para aplicá-las em assaltos e no tráfico de drogas.
O assalto como ato político
O CV adotou a técnica de assaltos meticulosamente planejados da esquerda armada, mas trocou a revolução pelo lucro. Hoje a facção é capaz de roubar um banco em quatro ou cinco minutos — eficiência herdada de quem pretendia derrubar ditaduras, mas agora usada para enriquecer traficantes.
Planejamento militar de assaltos
O Comando Vermelho transformou roubos em operações militares: reconhecimento detalhado de alvos, medição cronometrada até de sinais de trânsito, rotas de fuga com múltiplos veículos. Bandidos chegavam a morar perto de agências bancárias para coletar informações privilegiadas — um nível de planejamento que elevou assaltos comuns à eficiência de ações de guerra.
Propaganda armada
Sequestros para exigir libertação de líderes, comunicados à imprensa durante rebeliões, uso de slogans políticos — tudo copiado da guerrilha. A diferença é que a facção usa essas táticas não em prol de uma suposta “transformação social”, mas para intimidação e controle territorial.
Táticas de combate refinadas
O CV adotou ataques simultâneos a vários bancos para confundir a polícia, bombardeio de delegacias com alarmes falsos e até “postos médicos de campanha” para socorrer bandidos feridos — outra influência da guerrilha urbana.
Tribunal do crime
A facção criou “tribunais” para julgar infrações internas — com acusação, defesa e testemunhas —, emulando os “tribunais populares” revolucionários. Mas a aparência de justiça coletiva servia apenas para legitimar execuções sumárias e manter o terror disciplinado dentro da organização.
Correio clandestino
As "radiolas" — mensagens passadas por advogados e familiares entre presídios e favelas — foram aperfeiçoadas do sistema dos presos políticos. Um código secreto, o “alfabeto congo”, permitia que lideranças comandassem o tráfico de dentro das celas.
Sistema de “aparelhos”
O CV imitou dos guerrilheiros o conceito de “aparelhos” — casas compradas em pontos estratégicos para esconder fugitivos, guardar armas e estocar drogas. Essa rede de refúgios clandestinos, originalmente criada para proteger revolucionários, tornou-se uma infraestrutura essencial para traficar e blindar criminosos da polícia.
A "caixinha"
Os 10% de cada assalto destinados a um fundo coletivo não eram generosidade — e sim uma espécie de investimento em lealdade. O dinheiro financiava fugas, pagava advogados e sustentava “pensões de guerra” para viúvas.
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