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Criança pobre na Índia: ONGs atrapalham o desenvolvimentos dos países pobres | Pixabay
Criança pobre na Índia: ONGs atrapalham o desenvolvimentos dos países pobres| Foto: Pixabay

“A razão pela qual não haverá mudança é que as pessoas que tendem a perder com ela detêm todo o poder e as que tendem a ganhar não têm poder algum.” Uma variação do que foi escrito por Nicolau Maquiavel em “O Príncipe”, essa é a paráfrase que abre “Pobreza S.A.”, documentário sobre as dificuldades financeiras enfrentadas pelo Haiti e outros países pobres.

No entanto, um comentário feito pelo psiquiatra e escritor Theodore Dalrymple em um determinado momento da narrativa também poderia servir de introdução: “Compaixão não é apenas a manifestação veemente de um ponto de vista. O ser compassivo precisa pensar nos efeitos práticos de sua proposta.” Essenciais para entender alguns problemas da contemporaneidade, essas duas expressões constituem o núcleo dramático do filme.

É sabido que o chamado “terceiro mundo” é assolado pela pobreza e pela fome há muito tempo. Sabe-se também que, nas últimas décadas, desde o fim do neocolonialismo, o Ocidente estabeleceu uma complexa grade de auxílio econômico. Entretanto, pouco é dito acerca dos males desse paternalismo.

É fácil imaginar que todo tipo de ajuda ou boa ação gera um resultado positivo. Afinal de contas, que mal poderia surgir de uma mão estendida ou da caridade que alivia o fardo daquele que não carrega nada além do próprio corpo? Todavia, quando isso deixa de ser pontual e se transforma em algo corriqueiro, nascem problemas que, sob a aparência de um discurso humanista e compreensivo, permanecem escondidos. 

Uma parte considerável dessa situação obscura é esclarecida pelo filme do diretor Michael Matheson Miller. Contendo declarações pertinentes de pessoas que testemunham cotidianamente a realidade dessas regiões, “Pobreza S.A.” nos mostra como as intervenções dos Estados Unidos, da ONU, da União Europeia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e de ONG’s deixaram vários países em um constante estado de paralisia, onde a pobreza nunca é superada ― apesar de todos os discursos apontarem para uma intenção contrária ― e os únicos que enriquecem ou parecem ganhar algo em troca são aqueles que buscam “auxiliar”. 

O número de casos em que isso acontece chama atenção. Aliás, toda a narrativa é construída a partir deles. O primeiro talvez tenha sido o mais abordado na mídia. Durante um tempo, os Estados Unidos convenceram o Haiti a diminuir tarifas e enviaram toneladas de arroz subsidiado para o país. Como disse Bill Clinton, a intenção era ajudar a população dando-lhe alimentação básica e outras coisas para que, daí em diante, ela entrasse em um período de florescimento industrial.

Contudo, ao fazerem isso, como o próprio ex-presidente admitiu, apenas os fazendeiros norte-americanos que produziam essa commodity se beneficiaram financeiramente, uma vez que a enorme quantidade de arroz despejada acabou por baratear o produto e aniquilar o mercado até então autossuficiente do país. 

Invariavelmente, a ausência de oferta fez com que inúmeros produtores abandonassem as suas respectivas fazendas e fossem morar em regiões urbanas, o que ocasionou a criação de favelas e um aumento da pobreza.

Piorando a situação, após o pior terremoto da história do Haiti, uma quantidade absurda de ONGs (dez mil, mais ou menos) se estabeleceu nos locais atingidos. Inicialmente, a ajuda imediata foi importante, mas como isso se estendeu demasiadamente, os produtos enviados gratuitamente continuaram favorecendo apenas aqueles que os produziam e não os que os recebiam. 

No entanto, de todas as consequências informadas no documentário, a mais emblemática é a que envolve a perda de empregos por homens e mulheres que, sem dinheiro ou perspectiva profissional, precisam colocar os seus filhos em orfanatos mesmo carregando o enorme desejo de criá-los e vê-los diariamente. A situação é tão surreal que as crianças são visitadas regularmente pelos pais, até o momento derradeiro em que são adotadas por alguma família ou casal ocidental.

É claro que o panorama geral de indústria ou mercados nacionais destruídos pela ajuda indiscriminada de fora cria um cenário preocupante de desemprego e miséria, onde a criminalidade e a morte parecem ser os únicos destinos possíveis, mas tudo se torna desolador quando as próximas gerações passam a sofrer diretamente os efeitos desse problema. 

Os sete pilares da indústria da pobreza

Como não poderia deixar de ser, diante desse estado de coisas (ou fato social, de acordo com a definição de Émile Durkheim) surge a seguinte pergunta: por que países e instituições internacionais continuam auxiliando? Quase todos os entrevistados no documentário evitam julgar, optando por uma retórica mais otimista, vendo bondade e compaixão por trás de cada ação.

Porém, como fica claro ao longo da narrativa, os efeitos desse auxílio internacional são conhecidos pela maioria dos envolvidos. Portanto, torna-se evidente que há outras razões motivando essa espécie de indústria da pobreza.

Dos sete pilares sobre os quais isso se ergueu (caridade, celebridades, ONGs, agências de auxílio, empresários sociais, governos e corporações), não é preciso ir muito longe para especular sobre os reais objetivos de seis deles. Desde o sentimento de bem-estar ocasionado pela ajuda ― e que compreende o segundo ― até os ganhos financeiros óbvios dos três últimos, passando pela experiência aventureira daqueles que integram os dois do meio, todos são motivos plausíveis para que tudo se mantenha no mesmo estado. 

“Neocolonialismo”

Claramente, essa condição não é uma particularidade das nações retratadas no filme. Casos recentes no Brasil e até em países ricos (como a Áustrália, por exemplo), onde ONGs se aproveitaram da aparência benfeitora para cometer fraude, estão aí para provar que enfrentamos um problema global.

Além disso, usar discursos positivos para esconder más ações se tornou uma prática comum e muito presente nos dois últimos séculos.

Entretanto, o que acontece no Haiti e em outras locais é de uma maldade assustadora. Ao insistir na ajuda, os responsáveis por esse “neoneocolonialismo” (como é chamado por alguns entrevistados) negaram e negam aos que estão do outro lado do auxílio a única via de crescerem, prosperarem e melhorararem a sociedade em que vivem.

Como muitos afirmam em “Pobreza S.A.”, ainda há esperança (e o documentário faz questão de acabar em uma nota positiva), mas é difícil negar que, se o desenrolar histórico permanecer igual, nem isso restará, e, numa ironia cruel, esses países sucumbirão sob a mão pesada daqueles que se mostram tão fervorosos em ajudar.

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