Ninguém consegue viver sem acreditar em alguma coisa. Quando escolhemos priorizar o trabalho à família, quando nos engajamos em um grupo que distribui máscaras e álcool gel entre moradores de rua, quando acordamos mais cedo para ir à igreja ou quando “cancelamos” alguém na internet, estamos manifestando nossas crenças no que é bom ou mau, importante ou irrelevante, justo ou injusto.
Para navegar entre estes pólos - nem sempre tão precisos - nos apoiamos em tradições, ideias, histórias e informações costuradas de forma a constituir o que entendemos por “visão de mundo”. É a este mesmo conjunto de crenças ao qual costumamos recorrer quando confrontados com perguntas que dizem respeito à natureza humana ou à própria existência. Impelidos a encontrar, partilhar e, por fim, atuar de acordo com as respostas que consideramos mais convincentes ou convenientes, formamos grupos capazes de decidir, enfim, qual é o “jeito certo” de viver.
Por tudo isso, “não existe nenhuma raça ou tribo de que haja registro que não tenha tido algum tipo de religião”, como registra “O Livro das Religiões” de Jostein Gaarder, Henry Notaker e Victor Hellern. Foram as religiões, afinal, as pioneiras a responder tais questões à sua maneira e, principalmente, dar às sociedades a bússola moral capaz de unir organizar a vida em comum. Não é de hoje, entretanto, que confiança nas instituições responsáveis por sistematizar e, por vezes, dar alguma hierarquia as estas crenças está em franco decréscimo - um longo processo que remonta às primeiras fagulhas do Renascimento, passando pela Revolução Francesa, pelo implacável século XX e pela Revolução Digital ainda em curso.
Uma pesquisa de 2018 do Pew Research Center aponta que, pelo menos 40% dos millenials (nascidos entre 1985 e 1995) não têm religião. No Brasil, ainda que o avanço dos evangélicos seja bastante representativo, a tendência é a mesma: de acordo com uma pesquisa da socióloga Silvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a desvinculação religiosa entre os jovens de 15 a 29 anos é maior do que a adesão ao pentecostalismo.
Curiosamente, o mesmo centro de pesquisas dos Estados Unidos que aponta o forte declínio da religiosidade “tradicional” entre os imigrantes e nativos digitais afirma que, no fim das contas, os donos do próximo século se dizem cada vez mais “espiritualizados” - mais de 70% dos americanos diz acreditar em “alguma coisa”. “No fim das contas, as pessoas não creem menos ou não creem em nada, elas só mudaram o objeto de crença. Pode-se dizer que a quantidade de ‘fé’ que existe no mundo é estática, ela apenas se reacomoda”, explica Gabriel Ferreira, doutor em Filosofia e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Evangelho da Justiça Social
É sobre estas novas formas de religiosidade que pautam a vida pós-moderna que americana Tara Isabella Burton, doutora em teologia pela Universidade de Oxford, escreve em seu novo livro “Strange Rites: New Religions to a Godless World”, ainda sem tradução no Brasil.
A obra se debruça sobre os diversos ingredientes que compõem a religiosidade moderna - incluindo o amplo acesso à internet, a recusa às autoridades e sistemas pré-estabelecidos, a emergência da cultura dos fã-clubes e a primazia da experiência individual - e descreve alguns dos principais sistemas de crença que, nas palavras da autora, tornam o mundo secularizado “não tão secular assim”: das “energias cósmicas” à bruxaria moderna.
A este caldeirão, Burton acrescenta o que chama de “Evangelho da Justiça Social”, traduzido no ativismo crescente em favor das chamadas “pautas identitárias”: contra o machismo, o racismo e a homofobia, para ficar nos exemplos mais populares. "Os que a chamam assim, tradicionalmente, o fazem de modo pejorativo", escreve a autora. "Mas não percebem o quão certos estão. A justiça social é uma religião e - como qualquer outra - seu potencial para fornecer significado e fanatismo está interligado", defende Burton, para quem a busca por sentido através do envolvimento na luta identitária está “reencantando um mundo sem Deus".
Cabe fazer a distinção, portanto, do que se entende por religião, termo oriundo do latim “religare” que trata da reconexão do homem com o divino. Por este prisma, falar em “religiões seculares” ou mesmo políticas, sem a experiência com o transcendente, seria impossível.
Foi o sociólogo Émile Durkheim, contudo, quem propôs a análise da religião como um "sistema unificado de crenças e práticas” capaz de unir uma comunidade através da moral - sem que haja, necessariamente, um ou mais deuses, energias ou uma “vida após a morte” envolvidos. Do ponto de vista comportamental e sociológico, portanto, a afirmação faz sentido.
"Na ausência de noções transcendentes da alma, de uma verdade universal conhecível ou de um fundamento objetivo do ser, a justiça social fornece uma estrutura coerente sobre por que e como nossas experiências pessoais são “autoritativas”. E conseguiu galvanizar uma comunidade moral - uma igreja - por meio de sua ideologia e de seus rituais de purificação e renovação. Se a justiça social é realmente a nova religião civil da América - ou, pelo menos, uma delas -, essa afirmação é justa”, defende Burton, que associa o engajamento em movimentos como o #MeToo, o Black Lives Matter e as pautas LGBT à uma ‘cosmovisão’ na qual o Mal é, precisamente, tudo o que oprime ou diferencia as pessoas com base na identidade.
Mal x Bem
A qualquer grupo religioso, de fato, é necessária uma distinção de valores. Na avaliação do físico e comentarista político americano James Lindsay, para o “justiceiro”, o Mal é “qualquer coisa que pode, possivelmente, produzir a opressão - mesmo que de forma abstrata”. “É tudo na forma em que pensamos, falamos, agimos organizamos nossas leis e instituições e que fazemos política que possa produzir resultados negativos por conta de suas identidades”, afirma o estudioso.
O Bem, por consequência, a destruição de todos estes sistemas - a sociedade cristã branca, capitalista e patriarcal - , com objetivo de promover a igualdade. “É como se a construção dessas ‘estruturas’ fosse o que para o Cristianismo foi o episódio da Queda”, compara Gabriel Ferreira. O que confere ao dito “novo Evangelho” sua própria construção mitológica.
“Reconhecer que determinada história funciona como um mito não significa dizer que ela é mentirosa”, explica o historiador Rodrigo Coppe Caldeira, doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). “Uma narrativa é mitológica porque fornece uma explicação para o mundo de forma organizada. Há heróis, inimigos e salvação. Há um fio condutor, uma construção de verdade e um objetivo final”, diz Caldeira. O potencial nocivo do mito se encontra, precisamente, na busca desmedida do “zelota” - aquele que “zela” - por proteger a história de qualquer contestação. “Por mais que haja verdade em uma interpretação do mundo, ela não dá conta de tudo”, reforça o historiador.
A própria Burton reconhece que a teologia da Justiça Social prevê tratamentos distintos para seus praticantes ao chamar os marginalizados ao amor próprio e os privilegiados à auto-negação - a purificação - ainda que nada disso esteja atrelado à ideia de alma. "Para a antropologia da justiça social, nossas várias identidades - nossa raça, gênero e orientação sexual - formam o que somos. Há poucas - se houver - experiências humanas universais ou aquilo que, em um contexto teológico, chamamos de alma - algo inato a todos os seres humanos que transcende suas identidades sociais específicas", escreve a teóloga.
Daí a justificativa para que, dos ditos opressores, seja exigida a “desconstrução”, cujo resultado é a conclusão de que não seriam absolutamente nada sem as estruturas que lhes legaram o status de homem, heterossexual, cisgênero, branco e assim por diante, ao passo que os historicamente oprimidos - mulheres, negros, gays - devem aprender a amar e valorizar suas identidades.
“Falando de sua própria doutrina, Karl Marx dizia que quem nasceu na burguesia e quisesse tomar parte na luta revolucionária deveria cometer suicídio de classe”, explica Márcio Tavares D’Amaral, professor emérito de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A renúncia ao que se entende por Mal é um rito análogo ao religioso: tal como se faz no batismo e na Crisma cristãos, você renuncia a Satanás”, completa.
Reino de Deus sem Deus
No limite, esta nova forma de redenção esbarra em limites físicos, biológicos e outras particularidades humanas. “Há algum nível de predestinação nesta proposta ‘salvífica’: um homem branco, heterossexual, cisgênero, de classe média etc, nunca deixará de sê-lo por completo. Não à toa quem é identificado como opressor nunca pode parar de pedir desculpas”, avalia Ferreira.
Temperada pelo fanatismo, a crença de que determinados grupos usufruem de maior respeito em determinadas situações e momentos históricos se transforma em tirania. “Pode-se afirmar que mulheres, negros e LGBTs sofreram ao longo da história sem reduzir toda condição humana a estes fatores. Lembremo-nos que o biologismo levou à escravidão e à perseguição aos judeus, ao passo que o sociologismo ignora diferenças genéticas, psicológicas, contextos locais, etc”, acrescenta o historiador Rodrigo Coppe.
Para quem encara a busca por justiça de forma análoga à prática religiosa, a conversão íntima, na maioria dos casos, não basta: a nova fé há que ser manifestada em público - seja na forma de hashtags, posts combinados no Instagram ou avatares de Facebook repletos do símbolo do feminino, o arco-íris LGBT, a bandeira da Antifa ou o punho negro de Black Lives Matter. Eis o aspecto simbólico e ritualístico do evangelho da justiça.
“Um rito religioso, além de remeter à narrativa mitológica e suscitar a reafirmação da crença, evoca uma transformação da realidade: se faço um trabalho em um terreiro ou vou ao culto, acredito que isso, de alguma forma, terá efeito sobre a vida real. É a mesma função psicológica de convocar seus ‘irmãos’ para cancelar alguém na internet ou participar de um protesto”, diz Ferreira.
Para D’Amaral, a transferência destes hábitos religiosos para a arena da internet é efeito da fé secularizada: “desde o fim do Renascimento, houve um ‘acordo’ para que a religião não invadisse o espaço público e vice-versa. Em outras palavras, você não precisa ter a religião do rei: basta que o faça dentro de casa. Contudo, chegada do universo religioso no espaço público fez com que certas formações culturais ideológicas adotassem os elementos religiosos não-transcendentes”, explica. A ausência do elemento transcendente acaba por aproximar a religião dos justiceiros da identidade de seus predecessores marxistas, inclusive, na busca por um “paraíso terrestre”.
“O marxismo não é religioso, mas tem uma religiosidade implícita - uma crença não científica de que um dia a perfeição vai se instalar entre os homens. É como se fosse a chegada do Reino de Deus, só que sem Deus”, lembra D’Amaral.
Trata-se, portanto, de uma substituição de utopias: "O novo mundo que inevitavelmente surgirá das cinzas da sociedade patriarcal, racista, homofóbica, repressiva e cristã será infinitamente melhor, mais justo e mais cheio de amor do que tudo o que já existiu", define Burton. Resta, contudo, definir de que instituições, leis e políticas será feito este novo mundo, onde tudo o que importa, ao invés da vida humana enquanto fim em si mesmo, é uma lista bem enumerada de condições que flutua ao sabor dos tempos, da moda e, claro, de quem estiver no poder.
Fundamentalismo
A análise justa dos que buscam a justiça, entretanto, ajuda a diferenciar o fiel do fundamentalista. “É preciso diferenciar, por exemplo, quem se engaja em uma causa social e lhe atribui um valor transcendente, tornando-se um fanático, e quem, ao contrário, busca a justiça como resultado de sua fé”, avalia a teóloga Maria Clara Bingemer, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
“Os que abraçaram a Teologia da Libertação por razões políticas, por exemplo, ficaram desolados diante da Queda do Muro de Berlim, enquanto os cristãos que serviam nas comunidades de base por um compromisso religioso com os pobres não se abalaram”, lembra a especialista. Ela defende que, aparados os excessos, o “evangelho da Justiça” pode, de fato, ‘encantar’. “Engajar-se em uma causa dá uma espinha dorsal à vida e à própria existência. É uma forma de sair da superficialidade das relações - um dos grandes benefícios da prática religiosa”, explica.
Autodeclarado de esquerda, o pesquisador James Lindsay também reconhece o potencial positivo do engajamento social. “Há religiões que olham para baixo e há as que olham para cima”, define. “Sempre que a fé fica obcecada com o que está embaixo - com o quão más as pessoas são e quão graves são os problemas - descamba em caça às bruxas. O princípio se aplica ao cristianismo, ao islamismo, ao budismo ou a qualquer sistema de crenças que as pessoas decidam adotar”, avalia.
Para a elaboração de políticas públicas, propostas educativas e culturais que efetivamente ataquem a causa do problema, o “truque”, para ele, é não perder o objetivo de vista. “Digo que não gosto dos ‘justiceiros’ porque sou a favor da justiça. É verdade que nós não ouvimos direito pessoas que pertencem a certas categorias de identidade e isso lhes causou muito sofrimento de formas que não eram necessárias, mas recorrer à narrativa mitológica é um atalho que acaba por impossibilitar a resolução do problema. É como culpar o diabo por tudo o que há de errado, desconsiderando o próprio princípio do livre arbítrio”.
Muito, muito antes de o Twitter se transformar na arena pública na qual justiceiros de todas as causas desfilam suas virtudes, afinal, o príncipe atormentado emergido da pena do Bardo avisava: “Se tratarmos as pessoas como merecem, nenhuma escapa ao chicote”.
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