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São tantas as lacunas que o processo todo de contratação do professor universitário se transformou em pura política departamental.
São tantas as lacunas que o processo todo de contratação do professor universitário se transformou em pura política departamental.| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

Todo mundo sabe que funcionário público faz concurso, e daí infere que professores de universidade pública façam concursos. O que pouca gente fora da academia sabe é que concurso de universidade pública não tem nada a ver com aquelas provas decorebas que os concurseiros fazem, marcando cruzinha. Não, não: o concurso de universidade pública é feito pelos futuros colegas de departamento. Os professores concursados elaboram os pontos e trabalham até como fiscal de prova no concurso. E o concurso em geral consiste numa prova aberta manuscrita eliminatória, seguida pela “prova didática” (uma aula para a banca composta por concursados) e análise de currículo. Evidentemente, não há nada de isento aí.

Concurso para docente é política em nível departamental. No nível mais alto, da universidade, também não há nesga de isenção. Um reitor deveria ser um administrador interessado na melhoria da universidade gerida por ele. De certa forma, portanto, os professores são seus subordinados, e se desse na telha de algum deles ensinar que a terra é plana, sua demissão seria do melhor interesse da universidade. Mas o reitor de uma estatal brasileira está a anos luz disso.

Em primeiro lugar, um concursado é praticamente indemissível. Se um professor resolver que a terra é plana e ensinar isso aos seus alunos, a universidade vai ter que engoli-lo – sobretudo se for um terraplanismo socialmente aceito, como o marxismo. Em segundo lugar, o reitor é ele próprio um acadêmico – muitas vezes sem nenhuma experiência em gestão – eleito pelos seus próprios colegas. Imagine uma empresa em que os colegas de trabalho elejam um chefe, sendo que esse chefe tem a certeza de depois voltar a ser colega. Agora imagine que todos os empregados estão contratados até a morte e que o dinheiro sempre vem. Pronto: é mais ou menos isso a universidade estatal brasileira. Não à toa, porta-se perante a sociedade como uma sindicalista. Só dá as caras para pedir um aumento.

Falando em questões pecuniárias, vamos à vida do acadêmico. Uma vez que se tenha escolhido a carreira acadêmica, o mercado de trabalho vai ficando cada vez mais restrito. Que emprego julga imprescindível um doutorado em sociologia ou biologia? Professor universitário. Onde estão esses empregos? Concentrados no setor público. Isso não seria lá grande problema, se a oferta de doutores não tivesse sido inflada (na era petista) e se a pesquisa não tivesse sido cartelizada (desde a última ditadura).

Trajetória de pesquisador

Hoje, a típica biografia acadêmica de um pesquisador brasileiro é a seguinte: ele entra na universidade pública e é informado dos programas de bolsas voltados à iniciação “científica”. (Aspas, porque seria melhor dizer “acadêmica”. Afinal, gente de filosofia e letras faz iniciação científica, embora filosofia e letras não sejam ciências, excetuada a linguística). A iniciação científica chama-se Pibic. O aluno desenvolve uma pesquisa sob supervisão de um professor. O professor recebe as bolsas para distribuí-las aos alunos. Não havendo bolsas, mas havendo alunos que querem pesquisar assim mesmo, o professor recebe-o como voluntário. Nas universidades dos Estados Unidos, os alunos pesquisam desde a graduação. É salutar a ideia de que um aluno deva pesquisar desde a graduação. O problema é que a pesquisa consiste, no mais das vezes, em repetir o que o orientador diz.

Terminada a graduação, o aluno vai para o mestrado, um curso acadêmico desprovido de utilidade extra muros. (E os professores-sindicalistas sempre gritarão contra a “mercantilização” e o “neoliberalismo” quando alguém sugerir que talvez, quem sabe, seja uma boa ideia não formar desempregados). O mestrado dura dois anos, e é feito num programa de pós-graduação vinculado a alguma instituição de ensino superior. O programa de pós costuma ser composto pelos mesmíssimos professores da graduação. Unidos em programa de pós, os professores recebem das agências de fomento estatais, em geral sediadas em Brasília, bolsas para dar aos mestrandos e doutorandos segundo os critérios que lhes aprouver. Em geral, os programas não dão bolsas a quem trabalha, e ter recebido bolsa conta na pontuação do concurso. O mestrando, então, tem incentivo para permanecer desempregado, recebendo uma bolsa de 1.500 reais mensais. (Esse é o valor da CAPES).

O mestrado é um limbo. Para passar num concurso, é necessário ter um doutorado. Então lá vai o mestrando ter que fazer doutorado, que na prática é igual a um mestrado, só que com o dobro de tempo. Ele não poderia fazer o doutorado direto, porque a maioria das instituições exige mestrado para fazer o doutorado. Mestrado não serve para mais nada além de fazer doutorado, e o doutorado serve para passar em concurso. O programa em geral também não deixa o doutorando trabalhar, e a bolsa é de 2.200 reais mensais. É razoável para a população geral brasileira, mas é muito pouco para as classes que normalmente chegam à pós-graduação. Nas famílias, será uma espécie sui generis de concurseiro (já que almeja as pradarias douradas do concurso público após errar pelo deserto) ou um pobretão. Quando for comparado ao primo, o pós-graduando ficará furioso e, se for trouxa, dará razão ao professor-sindicalista que diz que o governo precisa dar 1.376.209.234,67% do PIB para a educação. O desconcerto do mundo é a bolsa não ser maior que o salário do primo.

Concluído o doutorado, o doutor está desempregado. As universidades particulares baratas não vão contratá-lo, porque não querem pagar salário de doutor. Resta esperar o concurso, que pode ou não ser aberto. Nos maiores centros, há um limbo para acomodá-los, que é o pós-doutorado. A bolsa Capes é de 4.100 reais, mas existe também a condição de voluntário. Outro tampão de desemprego é o professor substituto, um contrato em que o professor recebe menos da metade do que um concursado e dá o dobro de matérias. Nesses dois tampões, há prazo. Mesmo que ele seja o melhor pesquisador do mundo, ou o melhor professor substituto do mundo, o doutor não pode ficar nessa condição indefinidamente. Por outro lado, existem bolsas de produtividade para os concursados que podem ser renovadas até o Apocalipse ou a morte do professor (o que vier primeiro).

Ao cabo, os professores do departamento – aqueles que vão fazer o concurso – têm uma penca de pupilos desempregados. Por isso, todo concurso é precedido por uma briga de departamento, já que cada qual quer arranjar emprego para seus pupilos. Existem normas para prevenir isso, mas existem também expedientes análogos ao nepotismo cruzado.

E assim são os concursos para professores universitários no Brasil. O último interesse é pôr um pesquisador com ideias novas, muitas vezes contrárias às dos departamentos.

O cartel da pesquisa

A política de contratação é essa, de salve-se quem puder. Agora, vamos à pesquisa.

Como já mencionado, há as agências de fomento centralizadas em Brasília. Quanto mais produtivo for um programa, mais bolsas ele ganha. Como se mede a produtividade? Pela quantidade de alunos formados e de publicações em revistas acadêmicas de qualidade. Quem julga se a revista acadêmica tem qualidade? A estatal de fomento. Quem compõe a estatal? Os próprios acadêmicos brasileiros. Ao cabo, eles se contratam, se avaliam e se fomentam. É cartel.

A pesquisa brasileira nasceu no finzinho daquela democracia golpeada em 1964. Anísio Teixeira tinha a intenção de criar um grande sistema nacional de fomento à pós-graduação inspirado na universidade dos Estados Unidos, e logrou algum êxito. (A substituição de cátedras por departamentos, por exemplo, era uma meta dele). Os militares deram sequência a esse projeto e a estrutura da pós-graduação já estava consolidada no Brasil na década de 1970. Já nessa época, os cartéis intelectuais se formaram e, em algumas áreas, estrangularam completamente qualquer inovação. Veja-se que a Pedagogia está até hoje presa em Paulo Freire e a Psicologia trata Skinner como novidade. Na época em que a pós se solidificou, as novidades eram essas. E um acadêmico de ideias arejadas não vai nunca passar num concurso, nem ter seus textos publicados nas revistas dos cartéis.

O mínimo que o Brasil poderia fazer para melhorar a universidade é tirar das mãos dos cartéis as agências de avaliação e fomento. Aí, sim, quem sabe, seria possível desfinanciar trabalhos repetitivos parados no tempo e os panfletos políticos mal disfarçados de ciência. Além de maus trabalhos, isso serve para dar aos cartéis de poder político. Com uma brecha no orçamento, o país poderia começar a financiar pesquisa nova e arejada. Afinal, faz sentido o CNPq pagar R$1.500 todo mês a Marilena Chaui a pretexto de bolsa de produtividade 1A para ela fazer trocentos artigos sobre Espinosa em periódicos brasileiros? Não faz.

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