“A posteridade poderá saber que não deixamos,
pelo silêncio negligente, que as coisas se passassem como um sonho”.
Richard Hooker, Of The Laws of Ecclesiastical Policy.
Aparentemente, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro no dia 28 de outubro, as rivalidades nacionais chegaram a uma espécie de equilíbrio. Contudo, isto é apenas a ponta do iceberg. Na verdade, o pleito presidencial mostrou que há pelo menos dois assuntos que não foram abordados de maneira adequada durante este período – e que precisam voltar à baila, caso a população brasileira não queira ser mais enganada, como ocorreu nos anos passados.
O primeiro assunto é o da mentalidade utópica que se faz presente na visão de mundo tupiniquim e que contamina cada uma das nossas atitudes diante da vida; e o segundo é o fato de que, surpreendentemente, este tipo de mentalidade também tem a ver com o modo como nos relacionamos com o resto do mundo, por meio daquele fenômeno geopolítico que os especialistas adoram chamar de “globalização”.
Sobre o tópico da mentalidade utópica, não há outra forma de abordá-lo, exceto “começar pelo começo”, como diria Cole Porter – ou seja: por meio de uma análise detalhada do famoso livro batizado de Utopia, cujo verdadeiro título, numa tradução aproximada do latim é “Sobre a Melhor Constituição de uma República e a Nova Ilha de Utopia”. Escrito entre os anos 1515 e 1516, foi publicado, por coincidência, no histórico ano de 1517, o mesmo da Revolução Protestante provocada pelo monge agostiniano Martinho Lutero.
O seu autor era um católico devoto chamado Thomas More (1478-1535) que, já naquela época, era reconhecido entre seus pares como um renomado intelectual humanista, depois seria imortalizado como um santo da Igreja Católica e também como o “patrono dos estadistas e dos jornalistas”, por causa do seu trágico martírio quando se opôs ao rompimento feito pelo rei Henrique VIII com os dogmas de Roma.
Vamos partir do significado do título mais notório entre as pessoas comuns: O que significa a palavra “utopia”? Trata-se de um neologismo com o advérbio grego ou (“não”) e o substantivo topos (“lugar”). Parece ser também um trocadilho com a palavra latina eutopia que, por sua vez, é igualmente um outro neologismo – e que significa lugar “feliz” ou “afortunado”. No plano inicial de More, a ilha de Utopia deveria se chamar Nusquama (mais um trocadilho, desta vez para “nenhures”) – em outras palavras, o significado final do termo é “Lugar Nenhum”.
Conforme já expliquei em meu livro Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (2012), foi este pequenino volume, produzido no ápice daquele período humanista que faz a ponte entre a Idade Média e o Renascimento, ao qual deu início a um gênero literário que, posteriormente, seria chamado de “relato utópico”, cujos maiores exemplos são A Cidade do Sol (1602), de Tommaso Campanella, e A Nova Atlantis (1626), de Francis Bacon. Porém, ele também dialoga com outras duas grandes obras que formaram o pensamento político ocidental: A República (380 AC), de Platão, e A Cidade de Deus (398 DC), de Santo Agostinho.
Assim como Utopia, elas discorrem sobre qual seria a melhor forma de viver e de criar uma sociedade política. No exemplo dado pelo filósofo grego, isto significa encontrar a melhor constituição [politeia] que harmonize a medida invisível da alma com a cidade-estado por extenso; já no que foi concebido por Agostinho, trata-se de ver a história da espécie humana como uma luta contínua entre a “cidade de Deus”, onde o homem se volta para o Divino por meio do Amor Dei, e a “cidade dos homens”, onde o ser humano permite-se dominar por suas próprias paixões, em especial a da “vontade de poder” [libido dominandi], e assim se volta para o fascínio diabólico deste mundo por causa do Amor Sui (“o amor por si mesmo”).
Por isso, não seria um exagero afirmar que, apesar da obra de More ser reconhecidamente a primeira de um gênero literário, ela é também o último exemplar de um outro gênero – o diálogo platônico. Neste ponto, da mesma forma que as obras de Platão, a de More é uma conversação entre várias pessoas no qual uma tenta persuadir a outra de que a sua realidade é a única que vale a pena de ser vida (no caso do personagem principal dos diálogos, o ateniense Sócrates, é a verdade transcendente de uma existência moral). Portanto, impõe-se a seguinte pergunta a respeito do “livrinho” de More (como o próprio gostava de apelidá-lo entre seus amigos): Qual será a realidade a ser apresentada nele?
A ilha de Utopia
O cenário histórico do diálogo apresentado em Utopia se passa em meados de 1515, quando More cumpria uma função diplomática para o reino de Henrique VIII na Antuérpia e então hospedou-se na casa do seu amigo Peter Giles (outro membro da casta dos intelectuais humanistas). Lá, ele encontra um navegador português chamado Raphael Hitlodeu, descrito como “um ancião, um estrangeiro de rosto queimado pelo sol, longas barbas e uma capa displicentemente lançada sobre um dos ombros”. Não se trata de um marinheiro como outro qualquer. Na verdade, ele tem algo semelhante a um Ulisses pela sua ousadia e astúcia. Seu mote de vida é: “Pouco importa onde se esteja, pois é um só o caminho para o Céu”. Hitlodeu se retrata como um exilado em qualquer terra, ao contrário de More que, num auto-retrato, olha para seus afazeres como “coisas que precisam ser feitas, a menos que um homem se contente em ser um estranho na própria casa”.
Já o cenário ficcional desta conversa é um “jardim” – e o claro simbolismo utilizado por este tipo de lugar indica um sentimento de nostalgia pelo “paraíso perdido” que contaminava igualmente o imaginário europeu, graças ao descobrimento da América feito por dois navegadores italianos, o genovense Cristóvão Colombo e o florentino Américo Vespuccio (de quem Hitlodeu alega ter sido tripulante em suas embarcações). O jardim representa assim “o retorno ao estado edênico (remetente ao Éden)” o qual é também a “obtenção de um estado central”, de onde encontra-se não só o centro do mundo como também o centro da alma, “a partir do qual se pode fazer a ascensão espiritual ao logo do eixo terra-céu”, segundo os ensinamentos de Mircea Eliade em seu clássico O Sagrado e o Profano.
Neste jardim, More, Giles e Hitlodeu conversam sobre a atual situação da Inglaterra, dominada pela corrupção do reino e do clero, e também sobre a punição excessiva aos ladrões que, por causa de meros roubos, são enforcados sem misericórdia. Giles apenas escuta a discussão entre More e Hitlodeu, cada vez mais tensa. Hitlodeu se opõe à punição porque, para ele, todo reino é corrompido por natureza e os governantes não têm nenhum direito de usar qualquer espécie de força; porém, More acredita que a situação ainda pode ser consertada, por meio do aconselhamento, sem a destruição das hierarquias naturais.
Hitlodeu se vê como um homem livre, incapaz de obedecer qualquer rei já que, segundo ele, a origem de todo o mal em qualquer tipo de reino consiste justamente na manutenção da propriedade privada. More objeta que, sem ela, nenhum reino permanecerá – e, prontamente, Hitlodeu diz que isto é uma mentira porque ele já viu um reino existir sem nenhuma amostra deste tipo de propriedade. Qual é?, pergunta More; Hitlodeu responde-lhe à queima-roupa: a ilha de Utopia.
No relato de Hitlodeu, Utopia é uma península localizada nas imediações do Novo Mundo descoberto por Vespuccio e Colombo. Trata-se de um cosmion, um pequeno mundo autossuficiente e o seu centro geográfico é a capital chamada “Amaurot” (outro neologismo que pulula nas páginas escritas por More, desta vez significando “Cidade das Trevas”). O formato da ilha é próximo de uma “lua crescente” (aqui, a lua é o símbolo do conhecimento teórico, conceitual, racionalizado, noturno, e o crescente evoca a imagem do paraíso na tradição muçulmana, considerada “herética” pelo católico More). Antes de ser tomada pelo rei Utopus, que chegou lá via o oceano, a ilha chamava-se de “Abraxas” – uma citação cifrada ao topo do paraíso criado pelo grego pagão Basílides (século II DC).
A bússola política de Utopia se baseia em uma única regra: “comandar, determinar e saber usar o poder com a intenção de forçar a todos uma tarefa comum que concretize ideias que interessam somente a uma única pessoa – ou a uma única instituição”. Neste caso específico, o governo oriundo da instituição determinada pelo rei Utopus.
Com isso, a estrutura social deste reino é composta na seguinte ordem: agricultores, governantes, homens do exército e sábios. Tudo segue um padrão rigoroso e geométrico, e a população é dividida em grupos de trinta famílias, nas quais cada uma elege um funcionário público denominado “sifogrante” (brincadeira que soma sophos [sábio] e sypheos [chiqueiro], resultando assim em “sábio do chiqueiro”) que, por sua vez, elege um príncipe correspondente a administrar cada território específico. As situações mais complexas são submetidas ao Conselho Social (cujos participantes são príncipes, sifograntes e “traníboros” – aqui, síntese de tranos [“claro”] com boros [“devorador”]); este último administrará todos os negócios públicos, junto com o prefeito de cada cidade.
Aqui, o importante é a manutenção do Bem Comum, e o dinheiro não é mais, ao contrário do que acontecia tanto na Inglaterra como no resto da Europa, “a grande medida de todas as coisas”. Hitlodeu narra a existência da ilha de Utopia como se fosse uma “grande família” que, apesar de acreditar na imortalidade da alma, vive somente para perdurar numa razão utilitária e perfectibilista, a qual tenta expulsarem o orgulho e o mal da natureza humana, mesmo em casos extremos, como, por exemplo, a morte de anciãos (um prenúncio da eugenia moderna) e no modo de lidar com o assunto da guerra justa (um protótipo do que depois seria conhecido como “guerra contra o terrorismo”).
Conforme o relato de Hitlodeu a More avança, fica evidente que, ao tentar eliminarem o orgulho e o mal da natureza humana, pretende fazer com a morte – o que se torna algo impossível, obviamente, uma vez que todos algum dia terão de encarar, mais cedo ou mais tarde, a “indesejada das gentes”. Assim, o que More acrescenta, na sua conversação cifrada com Platão e Santo Agostinho, é que a ilha de Utopia passa a ser um mundo que recusa deliberadamente a realidade concreta.
É justamente esta recusa que impulsiona Raphael Hitlodeu a criar a tensão implacável que permeia o seu diálogo com More (representado no “livrinho” por meio da persona dramática de Tomás Moro, para diferenciar do seu autor). A ilha de Utopia não é apenas uma mentira surgida de um joguinho bobo e esteticista; é uma mentira existencial que, disfarçada na máscara de ser um lugar feliz, torna-se uma distopia prestes a se revelar como uma entropia a qual, anos depois, caracterizaria a maioria das instituições políticas da modernidade.
Afinal, não à toa que “Raphael” pode significar “aquele que cura Deus”, assim como devemos observar que “Hitlodeu” quer dizer, em grego, “aquele que conta bobagens”. Para persuadir Moro de que a sua realidade é a única que vale a pena, ele cria uma Segunda Realidade que tenta reparar a precariedade e a mortalidade inerente à Primeira Realidade onde todos nós vivemos.
Contudo, é esta mesma atitude de Hitlodeu que originará uma psicose da imaginação a qual terá repercussões efetivas na história das ideias políticas dos próximos quinhentos anos. Na época em que Utopia foi escrito, os descobrimentos marítimos ocupavam o imaginário popular: se antes o homem era um peregrino, um homo viator que caminhava rumo à eternidade, agora, com o exemplo de marinheiros inspirados pelo personagem de Hitlodeu, este se torna o novo grande inquisidor por meio das conquistas no espaço, em busca do lugar perfeito, mesmo que este último jamais seja encontrado, mesmo que ele se localize em “lugar nenhum”.
Este sentimento de procura perpétua não se limita mais aos muros da cidade, às fronteiras do Estado-Nação; estende-se agora ao mundo inteiro. O medo de um Thomas More ser considerado, a partir de agora, “um estranho em sua própria casa” não tem mais validade; o que importa é saber de cor o lema de Hitlodeu: “Pouco importa onde se esteja, pois é um só o caminho para o Céu”. Esta trilha para um novo homem, neste caso, tem o formato de um círculo perfeito, de um globo – e ele não quer apenas uma parte. Quer o todo, em sua completude e – mais – na sua totalidade.
Deslocamento da transcendência
Para entendermos melhor o nosso atual fascínio por esta dominação de todo o globo terrestre, como nos ensinou Raphael Hitlodeu em seu diálogo com Tomás Moro, registrado na Utopia de More, talvez tenhamos de recuperar um famoso livro da literatura contemporânea – outro “livrinho”, o pequeno romance As Cidades Invisíveis, publicado em 1971, do escritor Ítalo Calvino, nascido em Cuba em 1923, mas naturalizado na Itália, onde morreu em 1985.
Calvino era também conhecido por outros livros de grande sucesso de público e vendas, como Se um viajante em uma noite de inverno (1979) e O visconde partido ao meio (1952), além de ter sido membro do grupo literário internacional e também experimental, o OULIPO (acrônimo de Ouvroir de littérature potentielle; uma tradução aproximada seria: “Ateliê da literatura potencial”), do qual também faziam parte os escritores franceses Georges Pérec e Raymond Queneau.
Para essa pequena comunidade da escrita, cada livro escrito por seus membros deveria ter um caráter lúdico e experimental, ao brincar com as permutações matemáticas e as regras de lógica, numa tentativa de unir aquilo que o romancista (e também pesquisador científico) C.P. Snow chamou de “as duas culturas”: a das humanidades e a das ciências exatas.
Em As Cidades Invisíveis, a narrativa gira em torno do relato do grande navegador veneziano Marco Polo (1254-1324), que teria sido dado de presente ao fundador da dinastia Yuan, na China, o imperador Kubla Khan (1215-1294). Polo teria ditado um livro sobre suas expedições na Ásia Central e na China, chamado “Os livros das maravilhas do mundo” (em francês) ou “O Milhão” (“Il Milione”, em italiano) ao conterrâneo Rustichello de Pisa (já o título em língua inglesa era uma referência jocosa ao fato de que todos na Europa acreditavam que Polo contava “um milhão de mentiras”).
Até hoje, há um debate intenso entre estudiosos sobre a veracidade dos relatos de Polo, em especial sobre o seu encontro com o império de Kubla Khan. Em todo caso, ele influenciou decisivamente grandes navegadores da época humanista, como Cristóvão Colombo e Américo Vespuccio. Além de supostamente ter sido uma das inspirações de Thomas More para a construção do personagem Raphael Hitlodeu em Utopia, ele certamente contribuiu para aquele fenômeno do empreendedorismo marítimo que o alemão Peter Sloterdijk chamou, no livro Palácio de Cristal – Para uma teoria filosófica da globalização (2008), de ekstasis náutica, o êxtase náutico que seria uma técnica informal de ascese, à qual “os descobridores, semelhantes aos xamãs de uma religião não escrita, obtiveram informações de um Além significativo”.
Este “novo Além” náutico, segundo o filósofo alemão, “era concebido como um Além empírico que passou a estar aberto aos que mobilizavam todas as suas forças para se arriscarem no exterior. Ninguém pode ir para o mar pela metade, como ninguém pode a metade consagrar-se a Deus. Quem pisa a ponte do navio, tem de ser rompido com a dependência para com os conceitos terrestres da morte e da vida”.
Trata-se de um “deslocamento da transcendência” para uma perspectiva física e horizontal que também “possibilitou a utopia como escola de pensamento, como molde de escrita e como molde dos plasmas de desejo e das religiões imanentizadas”; ainda de acordo com Sloterdijk, “o gênero literário da utopia [...] organiza uma cultura ideal que visa a explicação progressiva e, mais tarde, uma política adequada, na qual se podem construir mundos alternativos fora de todo o contexto – segundo o gosto daqueles que a Terra não satisfaz, mas continuando a apoiar-se no fato original da época moderna, o descobrimento real do Novo Mundo na diversidade inesgotável das suas formas de emergência insulares e continentais (nomeadamente nas inumeráveis ilhas do Pacífico onde, pensa-se, se poderia recomeçar mais uma vez o experimentum mundi [o experimento do mundo] a partir do zero)”.
Em relação a Kubla Khan, este é conhecido pelos ocidentais não só pelos relatos de Marco Polo, que o descreve como um imperador benigno e tolerante, como também pelo famoso poema inacabado de Samuel Taylor Coleridge, de mesmo nome, e que descreve brilhantemente o que seria a psicologia do guerreiro expansionista, em especial quando fala dos “fragmentos” que “caíram como granizo”, em “um jato interrompido”, além dos “grãos que somem sem aviso/ e dentre as rochas em sua dança [de conquista]/ correu acima o rio sem temperança/ seguindo seu caminho sinuosamente/ e dentre a madeira o rio corria/ até as cavernas que o homem não mediria/ e afundou em tumulto num mar sem vida/ e nesse tumulto, Kubla ouviu da terra/ vozes ancestrais profetizando guerra!” (trad. Victor Lacombe). Ele era chamado de “O Grande Khan [Imperador] dos Mongóis” porque invadiu, por exemplo, os territórios que hoje são conhecidos como o Japão e o Vietnã, unindo assim a Ásia em um grande império dominado por um único poder.
No livro de Calvino, o encontro entre esses dois grandes homens – respectivos representantes do “êxtase náutico” e da “guerra expansionista” – ocorre em um jardim do palácio de Khan, batizado de “Xanadu”. Por uma incrível sincronicidade, é o mesmo cenário onde acontece o diálogo entre o estadista Tomás Moro e o navegador português Raphael Hitlodeu em Utopia, escrito por Thomas More, em que, como já vimos, ambos os personagens também buscam “o centro do mundo” e “o centro de sua própria alma”, segundo a cena montada por Calvino em seu romance.
Contudo, o imperador Kubla encontra-se em uma dúvida desesperadora sobre a permanência do seu próprio império, uma vez que, neste caso específico, ele é o próprio império ao perceber, no íntimo da sua consciência, aquele “desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas”.
Em resumo: se Kubla morrer, todo um mundo também morrerá. Por isso, de certa forma, Calvino homenageia Platão, este criador de um outro mundo, o da filosofia, ao usar da forma artística do diálogo, já que o seu romance é uma conversa entre Marco Polo e Kubla Khan que meditam sobre as descrições das cidades que, aparentemente, ou foram inventadas ou foram visitadas pelo veneziano, numa sutil referência ao fato de que todos esses mundos poderiam existir somente no império da imaginação – e jamais na realidade.
Não à toa que cada cidade tem o nome de uma mulher (como “Irene”, “Eudóxia”, “Zara”, “Erália”, “Clarisse”, etc.) porque Calvino quer indicar, ao leitor, o caráter fugidio, impermanente, instável e incerto deste mundo que se despede. Além disso, cada cidade tem uma relação específica com determinados sentimentos e funções humanos: o desejo, a memória, a linguagem e a morte.
Apesar de cada cidade parecer diferente, com a descrição requintada que tem vários toques de magia, no fim do relato tanto Khan como Polo descobrem que falam apenas de uma única cidade, de um único mundo, que pode ser tanto Veneza para o navegador, como o próprio império para o Khan. Trata-se de um fenômeno que torna o globo terrestre em algo indistinto, indiferenciado, principalmente para quem habita nele – e em um problema para o imperador que deseja ser, acima de tudo, o verdadeiro representante da humanidade.
Na última conversa que os dois têm no romance, o Grande Khan está nitidamente cansado de tantas conquistas e pergunta a Marco Polo qual seria a direção apontada pelos ventos do futuro. O navegador responde com alguma lorota, dizendo que cada viagem sua marca também a existência de uma cidade invisível, porém perfeita, com rumo somente ao desconhecido. Kubla suspira: “É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito”.
É então que Marco Polo responde que “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
Para Calvino, o mundo em que vivemos é um inferno onde poucos conseguem desbravar, pois esses mesmos remanescentes conseguem ser “exploradores de símbolos”, especialmente em um palco no qual as cidades se conectam em um centro secreto que ninguém consegue localizar. Dessa maneira, o êxtase náutico descrito por Sloterdijik transforma-se atualmente na descida do Hades articulado por Platão nos finais do Górgias e de A República, mas, desta vez, levado a uma escalada dos extremos que, inspirada pela arrogância epistêmica da mídia e do establishment, atenuada por termos plácidos e serenos como, por exemplo, “globalização”.
Império Mundial
“Globalização” ou “globalismo” são, na verdade, eufemismos idênticos para um fenômeno gigantesco chamado “Império Mundial” e podemos encontrar sua raiz existencial, por assim dizer, no relato que Raphael Hitlodeu fez a Tomás Moro sobre a ilha de Utopia – e que influenciou o comportamento do Ocidente nesta psicose da imaginação semelhante a um germe que espera apenas o devido momento para ver o seu fruto amadurecer em todo o seu esplendor (ou, sob outra ótica, em toda a sua decadência).
Assim, para entender exatamente o que significa esse fenômeno complexo e interdependente, temos sempre de começar pelas coisas mais simples – como, por exemplo, o significado da figura do “globo”. Obviamente, trata-se de um símbolo geométrico que se refere a um termo ainda mais simples: mundo.
Existem vários sentidos para o que significa um mundo: (1) podem ser os diferentes níveis daquilo que conhecemos como “existência humana” (em que há este mundo e um outro mundo além do nosso); (2) o lugar onde vivemos o palco de determinadas civilizações (aquilo que chamamos de “O Ocidente”, “O Mundo Livre”, “O Mundo Comunista” e “O Terceiro Mundo”); (3) as criações literárias, como “o mundo de Shakespeare e de Balzac”; e, por fim, (4) aquilo que qualquer dicionário definiria como o planeta Terra, o universo, a raça humana, a humanidade, e um vasto et cetera.
Mas, no meio dessas definições, há um sentido mais oculto: segundo Eric Voegelin, no ensaio “World Empire and the Unity of Mankind”, em grego, “mundo” significa kosmos, uma espécie de ordem que regula tanto os diversos níveis exteriores como os interiores, tudo de acordo com uma proporção invisível que encontramos também na alma humana.
Mais tarde, kosmos significaria o sinônimo do grego oikoumene, o “ecúmeno”, a “superfície habitada da terra”. Os dois sentidos se sobrepõem, desde que possuam uma relação entre o que acontece fora do homem e dentro do homem. Ou seja, o kosmos, para existir de fato, precisa representar alguma espécie de verdade existencial. O que seria ela?
Esta verdade é a abertura da alma individual a um Deus transcendente que, por sua vez, dá ao homem os meios para suportar a mortalidade da condição humana, seja por meio do mito, da filosofia ou da religião. Para que um mundo transforme-se em um império, ele deve respeitar minimamente esta verdade. Pois um “mundo” é mais do que uma ordem visível e um “império mundial” é mais do que domínio sobre um território e um povo. Estabelecer um império é um ensaio na criação do mundo, atingindo todos os níveis de hierarquia do ser.
Logo, a linguagem deste mesmo império deve ser análoga a de um cosmion, o pequeno mundo que, apesar dos seus limites espaciais, pretende representar nada mais, nada menos que toda a humanidade.
Assim, a definição de “Império Mundial” é a de uma organização de poder, formada pelo pathos (paixão) de uma humanidade representativa e que, consequentemente, representaria também o gênero humano. Tal organização domina uma parte considerável do globo – e isto passa a ser considerado um fato, uma coisa dada e que não precisa mais ser conquistada.
Esta postura é conhecida como a do “instrumentalismo científico”, uma das atitudes típicas daquilo que, na falta de nome melhor, podemos chamar de mentalidade globalista – e que é uma consequência direta do que reconhecemos ser a mentalidade utópica. Trata-se da crença aparentemente racional em uma ciência que explica que toda a natureza vem do fato do homem, logo após o século XVI (justamente o período em que foi publicado Utopia), ter percebido que o mundo não estava mais “pleno dos deuses”, naquele fenômeno que Max Weber classificaria de “o desencantamento do mundo”.
Tal tipo de atitude pode ser resumido nos princípios do iluminista Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), quando este proferiu os seus famosos Discourses, na Sorbonne, em 1750. Para Turgot, o ecúmeno é o ápice na evolução da humanidade; ele assume que esta última possui uma unidade civilizacional, uma sociedade orientada por três princípios: o primeiro seria o de que cada homem tem uma individualidade histórica e é a partir daí que sugeria a atual noção do que seria a humanidade; o segundo é o das gerações terem uma continuidade de causa e efeito, numa conexão temporal linear; e a terceira é a que existe uma acumulação de substância, um “tesouro em comum”, também transmitida de uma geração para a outra.
Esta acumulação teria um caráter crescente – um “fio de progresso” que une a história da humanidade e que teria um critério definido por mais três características: a suavização dos costumes (mores); o esclarecimento do espírito; e o intenso comércio entre nações isoladas a ponto de chegarem a uma interação global. E, mesmo com seus prováveis obstáculos, o resultado de todos esses fatores é a perfeição evidente da humanidade.
Todos esses argumentos são fracos porque, em primeiro lugar, a humanidade nunca foi uma unidade, nem nunca será – sua riqueza está justamente no pluralismo existencial; porque, em segundo, houve somente sociedades concretas, geograficamente dispersas, com pouca e conflituosa comunicação entre elas, sendo que seus membros mal sabiam da existência de uns e de outros, incapazes de ter uma “memória acumulada”.
O que existe de constante na nossa condição não é uma unidade exterior e sim uma natureza humana interior, na qual o homem é visto como a imagem e a semelhança de Deus.
A perfeição, se existe, está além deste mundo.
O erro de Turgot – que será reproduzido por seus pares nos séculos seguintes, inclusive o nosso – é a insistência de uma “masse totale” (massa total) que marcha rumo a uma perfeição que só pode ocorrer dentro do globo terrestre. Pela primeira vez na história das ideias, de acordo com Voegelin, o termo “total” é usado para representar a humanidade; assim, não seria exagero concluir que, se a mentalidade utópica originou a mentalidade globalista, esta última é, sem dúvida, uma variação da mentalidade totalitária.
A palavra totalitária implica aqui numa representação da humanidade que deseja alterar a estrutura da natureza humana e também o nosso comportamento na sociedade. Neste ponto, a mentalidade globalista aproxima-se daquilo que Voegelin chamava de “religião política” – e não à toa que ela tomou o seu impulso civilizatório da revelação transcendente que foi o Cristianismo. Eis o outro lado da moeda a respeito do “Império Mundial” intramundano: O que acontece quando temos um ecúmeno factual que preservou também a verdade da existência?
Podemos ter algumas pistas desta enrascada ao lermos este trecho em Mateus 24:14: “E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo [ecumene/ oikoumene] como testemunho a todas as nações, e então virá o fim”. Ou se lermos também Hebreus 2:5, do apóstolo Paulo: “Porque não foi aos anjos que sujeitou o mundo futuro [ecumene], de que falamos”.
Assim como em Turgot, o ecúmeno cristão será a finalidade [telos] de um processo da conversão espiritual de toda a humanidade. Contudo, a diferença entre o ecúmeno de Turgot e o ecúmeno cristão se dá em dois pontos: em um primeiro caso, a conversão cristã é sempre interior, dentro do homem, a partir de uma relação pessoal com o Deus transcendente; e, depois, o telos ocorre para fora deste mundo, fora do espaço e do tempo, mas também dentro de um discurso escatológico (a respeito das primeiras e últimas coisas do kosmos), no qual a prova da expansão do Reino de Deus neste mundo acontecerá enfim com a Parousia, a transfiguração definitiva de tudo o que existe, por meio da segunda vinda de Jesus Cristo.
Entretanto, como sabemos, ainda estamos à espera da Parousia, que não parece chegar tão cedo – e a História, mesmo com sua estrutura em aberto e anti-apocalíptica, passou a ter uma expectativa precisamente milenarista no período que conhecemos como a “modernidade”.
A fé transfigurada provoca assim um desvio na ordem do mundo, ao criar uma “metafísica da unidade” que formatará as mentalidades totalitárias em ideologias aparentemente díspares, como “comunismo”, “liberalismo”, “socialismo”, “conservadorismo”, “nazismo”, “fascismo” e a variante mais recente deste último: a social-democracia obscurantista.
No fundo comum de todas essas ideologias, há a “massa total” que só pode ser liderada por uma casta de iluminados (os intelectuais e os políticos que hoje são classificados como os que sofrem da “síndrome do terno vazio”, segundo Nassim Taleb) e que julgam saber como seria o funcionamento deste mundo, ao quererem transmitir os seus ensinamentos ao resto da humanidade como se fossem o ápice do Bem Comum.
Preocupados somente com a geração histórica do presente, esquecem-se do passado e do futuro, reduzindo o domínio do ecúmeno a algo que jamais será um mundo, para transformar depois aquilo que conhecemos como a “humanidade” deles em habitantes de um campo de concentração apocalíptico – ou, pior, em um perpétuo estado de exceção, de acordo com os conceitos do filósofo italiano Giorgio Agamben.
Eis aqui o dilema sinistro da nossa época: muito longe de ser um mundo, o ecúmeno está, na verdade, sempre à procura de outro mundo que substitua o nosso. Se ele se transformará em um mundo de fato, ou se os outros mundos que existem atingirão a destruição, ao ponto de que apenas algumas sociedades, separadas por áreas de completa vastidão, permanecerão – só o tempo dirá.
Quando o homem atingiu a noção exata do que seria o ecúmeno cristão, a solução foi separar e equilibrar os poderes temporais e os poderes espirituais, sempre dentro da ordem de uma sociedade – algo que não conseguiu ser superado até hoje.
Atualmente, a “metafísica da unidade” inspira os Estados nacionais a se unirem em grandes blocos (como a União Europeia, a Eurásia [a união entre a China e a Rússia] e o Islã Radical) para solucionarem artificialmente problemas inerentes à natureza e à condição humanas – por exemplo: a morte, o sofrimento, a precariedade das coisas e, last but not least, o orgulho e o mal da natureza humana.
Neste aspecto, o que o establishment que comanda seus respectivos blocos não consegue entender é que, apesar de uma certa organização ser necessária à existência do homem, nenhuma organização de poder consegue organizar a humanidade concreta – e até mesmo uma organização ecúmena global não representa qualquer universalidade.
Quem pretende pôr em prática tal “metafísica da unidade” não quer reconhecer que também cria uma sociedade dual, dividida em si mesmo, na qual uma elite deseja impor experimentos utópicos a um povo que tenta preservar um pouco do senso comum de quem ainda não recusou deliberadamente o real.
O establishment globalista mal sabe que, como diria Abraham Lincoln, “a house divided against itself cannot stand” (“uma casa dividida contra si mesma não pode permanecer em pé”) – ou não quer ver que estamos prestes a testemunhar, em nossa própria carne, o seguinte aviso do escritor russo Alexander Herzen: “A morte das formas contemporâneas de ordem social deve antes alegrar do que perturbar o espírito. Todavia, o que é assustador é que o mundo que se vai deixa atrás de si não um herdeiro, mas uma viúva grávida. Entre a morte de um e o nascimento do outro, muita água vai rolar, uma longa noite de caos e desolação passará”.
Sem dúvida, quando esta casa enfim desabar – ou então quando esta criança nascer –, mais cedo ou mais tarde, ocorrerá aquilo que Raphael Hitlodeu alertou a Tomás Moro neste trecho de Utopia: aí sim “pouco importa onde estaremos, pois agora sem dúvida haverá só um caminho para o Céu” – o da ruína que se esqueceu das benesses do risco e da incerteza.
Agenda secreta da modernidade
Neste aspecto, Cosmópolis, romance de Don DeLillo, publicado em 2003 (e posteriormente filmado por David Cronenberg em 2012), oferece pistas sobre o que esperamos no futuro. Apesar da trama do livro se passar no dia 10 de março de 2000, justamente na data em que a bolha financeira da internet estourou, trata-se de uma história surgida sob a sombra do 11 de setembro de 2001 e também sob a sombra de um novo tipo de “globalização”: o terrorismo mundial – mais especificamente, a jihad global.
Poucos reconhecem isso, mas DeLillo é um autor que, de certa forma, tem um componente profético em sua obra ao antecipar, por exemplo, o ataque contra o World Trade Center no gigantesco Submundo (1997) e analisar minuciosamente as consequências para quem vive afoito por teorias da conspiração, como podemos observar em Libra (1988), uma biografia ficcional de Lee Harvey Oswald (o suposto assassino do presidente americano John Kennedy), e em Mao II (1992), mostrando que sempre está atento naquilo que pode ser chamado de “o terror da incerteza”.
Cosmópolis não é exceção. Trata-se de um pequeno romance, quase uma parábola, a respeito de um dia na vida do megaempresário chamado Eric Packer (o sobrenome é uma referência direta a sua personalidade competitiva – uma vez que to pack significa “agarrar”), decidido a cortar o seu cabelo de qualquer jeito, mas, num lance surrealista do destino, acaba deparando-se com a própria morte.
A trama enxuta do livro se passa entre a limusine, que seria a extensão concentrada do seu império financeiro, e algumas ruas de Nova Iorque, onde ele encontra e dialoga com algumas pessoas importantes da sua biografia: a mulher, os seguranças que o protegem, os assessores que o aconselham, a amante. O tom dessas conversas é nitidamente inspirado em Samuel Beckett, ficando próximo do absurdo, pois, em muitas falas, há sempre aquele eco com o qual DeLillo parece prestes a nos revelar alguma verdade profunda e exata sobre a nossa situação no mundo.
Isto fica nítido na própria epígrafe que abre o romance: “o rato tornou-se a unidade monetária” – assim mesmo, em minúsculas, um verso retirado do poema “Crônica de uma cidade sitiada”, do polonês Zbigniew Herbert (1924-1988), influenciado, por sua vez, por “À Espera dos Bárbaros”, do grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933).
Ambos os poemas meditam sobre a expectativa de uma destruição que finalmente resolva a desgraça do mundo onde estamos e, ao mesmo tempo, de um tédio que acompanha tal espera, o qual, como veremos, nunca chega ao seu fim definido. Para Herbert e Kaváfis, a condição humana é um cerco infinito, no qual “há muito os inimigos atacam-nos à vez/ nada os une a não ser a vontade de nos destruírem” e a própria cidade não tem mais lojas funcionando porque, afinal, o rato é a nova moeda corrente entre os seus habitantes – e, mesmo assim, a monotonia domina a todos, sempre na alegria de que a sorte da invasão bárbara resolva tudo o que os próprios cidadãos do local não tiveram coragem para solucionar.
Esta é a mesma situação em que se encontra Eric Packer: ele espera por uma morte que resolva o seu vazio existencial, uma morte que, paradoxalmente, nunca acontece devido ao controle absoluto que ele detém graças à sua fortuna. Mesmo assim, nem o dinheiro lhe é importante porque, afinal de contas, o próprio Packer também vê qualquer moeda que existe no mercado atual igual a um roedor (como ele bem diz a um assessor: “O dólar norte-americano passa a ser conversível em ratos”) – o que mostra que, desde o início dos anos 2000, um simples investidor nunca teve quaisquer ilusões a respeito dos frágeis fundamentos desta “globalização ingênua”.
O título do romance – Cosmópolis – remete também ao velho sonho do imperador da Macedônia, Alexandre Magno, e, posteriormente, dos filósofos estoicos, de unificar o gênero humano em uma única comunidade, reunida exclusivamente pelo uso da “razão humana” [logos], onde os sábios resolveriam os problemas que afligem tanto a natureza como a condição humana.
No livro de DeLillo, Eric Packer é o empresário que parodia o conquistador; a sua própria brevidade existencial nos remete à brevidade de Alexandre Magno, morto aos 33 anos (por outra espantosa sincronicidade, a mesma idade de Jesus Cristo quando foi crucificado). A comunidade [homonoia] desejada por Alexandre e que seria realizada na Grécia e na Pérsia passa a ser retratada, de forma invertida, pelos encontros fragmentados que Eric tem na sua limusine.
A tentativa dos estoicos de harmonizar o mundo da Natureza [kosmos] com o mundo da Sociedade [polis, a Cidade-Estado, de acordo com os filósofos gregos] é narrada aos pedaços, como se o nosso mundo agora fosse uma “cidade sitiada” onde todos rezam pela “chegada dos bárbaros” e onde “as pessoas pararam de pensar na eternidade”.
Contudo, o conceito de cosmópolis também tem um outro sentido. De acordo com o filósofo inglês Stephen Toumlin (1922-2009), trata-se da “agenda secreta da modernidade” [the hidden agenda of modernity].
Aqui, o homem, atormentado por guerras políticas, incerto sobre o seu lugar no universo após as descobertas astronômicas de Copérnico, Galileu e Kepler, adentra em uma “Busca pela Certeza”, pela exatidão dos números e da própria existência, deixando de lado o mundo prático ao escolher a abstração e a obsessão pela unidade, tanto a filosófica como a política – remetendo-nos àquela “lua crescente” que era o formato da ilha de Utopia no “livrinho” de Thomas More. Se antes Alexandre Magno usava a força militar e o poder do seu carisma para conquistar o território habitado do mundo [ecumene], a filosofia e a ciência política fariam o mesmo sem usar nenhum exército, apenas o uso da persuasão aparentemente racional.
Para Toumilin, a Nova Cosmópolis criada pelos pensadores da modernidade – como René Descartes, Leibniz e Isaac Newton –, contraposta ao que foi imaginado pelos pensadores humanistas (Erasmo de Rotterdam, More, Montaigne, Shakespeare e John Donne), tem as seguintes características: há uma evasão da palavra oral para a palavra escrita, ao retirar o poder da argumentação e preferir o poder da prova, da evidência técnica; ocorre a mudança do particular para o universal, na qual não nos deparamos mais com os casos particulares e concretos, e agora encontramos apenas os princípios gerais e abstratos.
Com isso, temos a consequência de que a observação humana passa a se orientar pelo eixo do local que vai para o geral, dando adeus à diversidade e à pluralidade da realidade concreta, e recebendo com muita alegria os axiomas abstratos, geométricos e matemáticos – enfim, os modelos formalistas que dariam um poder extraordinário aos economistas, aos estatísticos que forçariam a sociedade em encaixar suas instabilidades na falsa estabilidade do intelecto.
E, por fim, a mudança definitiva do temporal para o atemporal, na qual temos o surgimento de coisas eminentemente conceituais, mentais, e, por isso mesmo, permanentes e imutáveis, e a despedida definitiva daquilo que caracteriza a nossa fragilidade existencial, em particular o que reconhecemos como a reflexão sobre as coisas transitórias e impermanentes – por exemplo, o orgulho e o mal da natureza, a concretude do sofrimento, da violência e da morte.
Esta “Busca pela Certeza” é igualmente refletida (e, em alguns momentos, contraposta) no outro sentido dado à cosmópolis, desta vez dado pelo filósofo canadense Bernard Lonergan (1904-1984). Em sua obra-prima Insight – um estudo sobre a inteligência humana (1958), após refletir sobre os acertos e os erros de se apoiar no conhecimento baseado naquilo que chamamos de “senso comum”, Lonergan imagina o que seria uma comunidade de homens sábios que manteria a integridade da cultura humana numa longa duração.
Tal comunidade seria a sua “Cosmópolis” – e que Lonergan tenta definir pelo que ela não é. Logo, para ele, não seria uma força policial, uma vez que sua atuação é sempre sob consenso dos homens que a compõe, e as ideias deles têm de vir em primeiro lugar, nunca por meio da autoridade das pessoas, para que a força tenha apenas um aspecto instrumental, atuando tão só quando for necessário.
A tarefa da coerção é impedir que “a praticalidade seja algo míope” – e não deve surgir de um Governo Mundial ou de uma Organização das Nações Unidas, pois o que ficará claro será que a cosmópolis está acima de todas as políticas e de todos os países. Dessa maneira, a outra tarefa desta comunidade é tornar efetivas e operantes essas mesmas ideias que podem não ser aceitas pela distorção geral inerente ao senso comum, rompendo assim o “círculo vicioso da ilusão” e indo contra a “busca maníaca pela Certeza”, o que seria, de certa forma, um contraponto à Cosmópolis moderna descrita por Stephen Toumlin.
A comunidade imaginada por Lonergan também não é “abelhuda”. Ela não deve se entusiasmar com nenhum “egoísmo de grupo” e deve impedir a “universalização do grupo dominante”, caso este abuse de uma “racionalização” das coisas práticas. A sua tarefa é impedir a formação de memórias que encobrem a verdade, o que geraria um “contrassenso obsessivo para as gerações futuras”.
Portanto, a cosmópolis tem o dever de “purificar” a sociedade tanto das “racionalizações” como dos “mitos”. Ela seria uma síntese superior de todos os pensamentos, um compromisso moral que deve deixar claro para si mesma que, apesar da “cosmópolis não ser Babel, mesmo assim ela também não pode romper com Babel” – uma observação que mostra como Lonergan tinha plena consciência de que a sua proposta era, no fundo, bastante utópica.
O grande problema que envolve todas essas variações do “Império Mundial” é quando não se tem justamente a consciência disso, ao se propor como investimento garantido para uma sociedade humana do futuro – e assim chegamos ao germe ilusório da mentalidade globalista.
Eis aqui a crítica feita pelo jurista italiano Danilo Zolo a respeito de uma Nova Cosmópolis planejada por teóricos do direito como Hans Kelsen, Jürgen Habermas e Richard Rorty, todos, por sua vez, influenciados pela ideia da “paz perpétua” promovida por Immanuel Kant. Estes intelectuais iluminados chamam-na de civitas maxima, mas Zolo deixa claro que ela não passa, na verdade, de uma “Santa Aliança”, a união dos Estados Soberanos, sedimentados desde o Tratado de Vestfália (1648) e que pretendem existir sem qualquer interferência de uma autoridade exterior e transcendente (no caso, a Igreja Católica).
Os defensores dessa Nova Cosmópolis jurídica alegam que ela seria necessária pelos seguintes motivos: (1) Unificaria as nações em um único sistema jurídico, concretizando assim a verdadeira igualdade abstrata prevista na Declaração dos Direitos Humanos; (2) Diminuiria o abismo entre ricos e pobres, com o crescimento da riqueza mundial, graças ao aumento das trocas comerciais; (3) Evitaria a possibilidade de uma nova guerra mundial, com organismos supragovernamentais, como a ONU e a OTAN, que fariam a mediação entre os países em conflito.
Todavia, de acordo com Zolo, tudo isto não passa de uma quimera. Afinal de contas, cada nação tem uma cultura específica e, portanto, um sistema legal que possui peculiaridades que refletiriam as características desta mesma cultura – e tentar encaixá-las em um modelo abstrato, formalista, seria destruir o seu pluralismo. Além disso, ao querer intervir na troca econômica – usando-a como argumento puramente retórico –, o abismo entre pobres e ricos jamais diminuiria, e sim aumentaria, permitindo o crescimento exponencial do fenômeno da “revolta das elites” – um termo de Christopher Lasch e que descreve como os empresários, os jornalistas, os artistas e os políticos burocratas fazem de tudo para ganhar de ambos os lados de qualquer negócio, independentemente dos interesses concretos da população envolvida ou atingida na empreitada (o exemplo clássico desta atitude seria, na vida real, o megainvestidor George Soros; já na ficção, o Eric Packer de Don DeLillo também se encaixa perfeitamente nesta categoria).
Esta intervenção desastrada faria a violência aumentar ainda mais, como nos mostra a jihad global, pois agora não se trata mais de uma luta entre os Estados Nacionais, e sim, como apontou Samuel Huntington, entre civilizações que possuem fundações extremamente complexas em suas respectivas atitudes religiosas.
Em todo caso, o que Zolo propõe como solução de todos esses problemas é igualmente ilusório, uma vez que ele é também influenciado pela “imaginação liberal” que inspira essas novas cosmópolis, que, no fundo, não passam de substituições da Jerusalém Celeste procurada há tanto tempo pelos puritanos denunciados por Richard Hooker no século XVII, em seu clássico Of The Laws of Ecclesiastical Polity.
Segundo o jurista italiano, ela seria uma espécie de “pacifismo débil”, descentralizado, pouco intervencionista, mas que depende igualmente da autorização e da existência das instituições supragovernamentais – o que seria a mesma coisa que trocar seis por meia-dúzia, mas que também mostra como Zolo está contaminado pela “Busca pela Certeza” a qual caracteriza aqueles que desejam fazer parte da Nova Cosmópolis.
O fato é que todas essas tentativas de criar a Nova Cosmópolis são os restos de uma época da antiguidade, de um passado muito distante que ainda vivemos, mesmo que seja por meio de vislumbres e indícios evanescentes – aquilo que Eric Voegelin chamava de “A Era Ecumênica”.
Para entendê-la melhor, temos de usar a terminologia estabelecida pelo filósofo de Colônia, dividindo assim os impérios que fazem parte desta Era como cosmológicos, especialmente os do Egito e o da Babilônia, as quais têm o intento de não representar toda a humanidade, apenas o cosmion onde vivem; os ecumênicos, como os de Alexandre e de Roma, e que se assumem na sua intenção de representantes da humanidade; os ortodoxos (vejam o Império Bizantino, o Sacro Império Romano, o Islã e a China), onde a fé dominante da região equivale precisamente à representação da humanidade; e os modernos, surgidos com os êxtases náuticos da expansão marítima e planetária do século XVI, passando pelos EUA e pela União Soviética do século XX, chegando até a Eurásia, a jihad global e a União Europeia dos nossos dias, nos quais diferentes concepções de mundo tentam se transformar em sistemas representativos de toda a humanidade.
Sejam lá quais forem as formas definitivas que encontramos entre os destroços desta época, o fato é que, segundo Voegelin, “o império ecumênico é uma das soluções, na esfera de poder, de obter uma ordem perfeita para a humanidade”. É muito importante repararmos nessas duas expressões: “esfera de poder” e “ordem perfeita”. Elas indicam o caráter totalitário das intenções que existem por trás de cada uma dessas classificações imperais, mesmo feitas com as melhores intenções.
Para fazermos referência ao famoso episódio com Alexandre Magno, o nó górdio para quem tenta elaborar uma análise minimamente imparcial sobre este fenômeno é a descoberta de que qualquer império seguirá a tendência já estabelecida pelo ecumene imposto pelo imperador da Macedônia: em primeiro lugar, o conquistador (ou a organização que imita o seu comportamento) reconhece que, no seu ecúmeno, coexistem diversas sociedades concretas; depois, ele decide que esse ecúmeno deve ser um só mundo.
Entretanto, descobre também que a tarefa tem suas dificuldades de ser realizada por causa da permanência dos mundos rivais que existem fora do império; enquanto isso, mantém-se o domínio do território enquanto está no apogeu do controle, para, depois, uma vez que o imperador morreu, ficar evidente que não há projeto unitário capaz de assegurar essa unidade.
Assim, o mundo surgido desse resultado apresenta um vácuo de poder e o conflito entre os sucessores que sobraram e torna-se enfim o destino pós-imperial.
Portanto, o “ecúmeno” (oikoumene, a superfície habitada do planeta) transforma-se no campo social culminante da História – e a nossa “Busca pela Certeza” de uma Nova Cosmópolis é apenas um dos fragmentos mais significativos dessa era. Ainda assim, todos esses destroços têm uma característica em comum: eles existem na “esfera do poder” e buscam uma “ordem perfeita” para querer representar a humanidade. E quando estamos vivendo apenas em função desta esfera, vivemos também na ótica do conquistador que, alucinado no seu desejo de poder para representar todos nós, representa ninguém menos ora o próprio Deus, ora a ira deste último, como podemos ver nesta descrição que Voegelin reproduz sobre Tamerlão [Timur], outro “grande khan” ou o “senhor do destino”:
“Nos cercos de fortalezas, ordenava que tendas brancas fossem armadas no primeiro dia, no segundo, vermelhas, e no terceiro, pretas. Com a cor branca queria indicar que pouparia os sitiados; com a preta, que incendiaria o lugar; com a vermelha, que todos os habitantes seriam passados à espada. E quando um italiano, cujas habilidades chamaram a atenção de Timur e determinaram sua ascensão da condição de humilde mercador para a de superintendente das finanças de Timur, comentou que este deveria acrescentar clemência a seu imenso poder e fortuna, o khan respondeu, com a face sombria e os olhos flamejantes, que ele era a ira de Deus e a destruição mortífera da época corrupta. Irou-se quando outra pessoa lhe pediu para ter pena de Bayezid, que fora outrora tão grande rei; respondeu brusca e asperamente que não estava punindo um rei que fora outrora tão famoso por suas vitórias, mas um tirano cruel e vicioso que matara o irmão mais velho, Suleimã, e lhe roubara o reino. E quando o imperador de Constantinopla ofereceu ao khan sua própria pessoa, seu poder imperial e sua cidade como para alguém a quem Deus reservara o controle imperial sobre todo o Oriente, por cuja beneficência todos os homens reconheciam que a Grécia fora libertada do tirano cruel Bayezid, o khan respondeu que ele não queria escravizar a mais bela cidade, maior e mais rica do que qualquer outra, e de há pouco liberada das mãos turcas. E acrescentou que não fora para a guerra por causa do orgulho execrável nem pela cobiça insaciável, a fim de conquistar território ou expandir seu império. Seu real motivo foi sua vontade de vir ajudar o imperador e os nobres gregos, e deixar a Grécia livre, como ele entendia que ela deveria permanecer. Além disso, ordenou que o tirano fosse apanhado e preso por receber por seus atos maus, e infligir nele os mesmos tormentos com que te ameaçou [...]. E há mais: enquanto Timur devastou e ateou fogo em tudo entre o sul e o oeste, ele não permitiu que os templos sagrados fossem tocados, querendo deixá-los incólumes. E por reverência ao profeta deles, não invadiu a Arábia, movido por certo temor reverencial a Deus e respeito pela religião. Mas o Fado, que sempre se inclinava a seu favor sem nunca se opor a ele, parece que negou a ele, cujos triunfos admiráveis transcendem a estatura costumeira de conquistadores, um historiador distinto por erudição e eloquência igual a sua virtude heroica e capaz de celebrá-lo de uma maneira digna”.
A visão de que o conquistador, seja um Alexandre ou um Tamerlão, personifica a ira divina (ou o flagelo dos deuses) pode ser transplantada para a figura da “revolta das elites” retratada no personagem Don DeLillo em Cosmópolis e passa a ser igualmente vista como uma paródia macabra desse mesmo tipo de comportamento. Em um dos diálogos do romance, a assessora de Eric Packer deixa isso muito claro ao falar o seguinte para o seu patrão, enquanto um protesto violento acontece fora da limusine do empresário: “Eles estão trabalhando com você, essa gente. Estão dançando conforme a sua música [...]. E se o matarem é só porque você permite isso, com um estoicismo delicado, para reafirmar a ideia sob a qual todos nós vivemos”. “Que ideia?”, pergunta Packer. E a resposta só pode ser uma: “A destruição”.
O fascínio pelo poder – e, mais, o fascínio pela destruição como a única maneira de alcançá-lo, de chegar ao seu destino e conquistar a certeza sobre o funcionamento do mundo – estabelece-se como a Nova Ordem Mundial que substituiu a Ordem de Deus, cujos conquistadores queriam representar e, ao mesmo tempo, serem representados pelos impérios ecumênicos.
Eles desconhecem que, na verdade, a Nova Cosmópolis é uma cidade permanentemente sitiada a qual, mais cedo ou mais tarde, nos fará perceber que o rato será o único valor que nos resta. Por outro lado, os novos conquistadores dos nossos dias não precisam mais esperar pelos bárbaros, como acontecia no poema de Kaváfis.
Nós somos os bárbaros.
No fim, não há diferença alguma entre os conquistadores imperiais da Era Ecumênica e os pequenos ladrões que, juntos, praticam a magna latrocinia denunciada por Santo Agostinho neste trecho antológico de A Cidade de Deus (Livro IV, capítulo IV) – e que é perfeitamente aplicável tanto para os burocratas de terno e gravata que comandam os corredores de Washington e Bruxelas, como as elites que espoliaram o Estado brasileiro e tiveram seus atos horrorosos revelados graças às investigações da Operação Lava Jato:
“Retirada a justiça, o que resta? Senão que os reinos são roubos gigantescos? Pois o que os reinos são senão pequenos roubos? O bando em si é composto de homens; é comandado pela autoridade de um príncipe; é unido entre si pelo pacto da confederação; o butim é combinado conforme a leia acordada entre eles. Se, pela aceitação destes homens abandonados, este mal aumenta de tal forma que contamina os lugares, toma a possa das cidades e subjuga as pessoas, assume-se mais claro ainda o nome do reino porque a realidade está revelada não pela remoção da cobiça e sim pelo aumento da impunidade. De fato, houve uma resposta exata dada por um pirata quando este foi capturado por Alexandre, o Grande. Pois quando o imperador lhe perguntou o que ele queria dizer com essa posse hostil do mar, ele respondeu com orgulho e ousadia: ‘E o que você quer dizer com explorar o mundo todo? Só porque faço isso com um pequeno navio, sou chamado de ladrão, enquanto só porque você faz com uma frota gigantesca é chamado de imperador”.
Psicose da imaginação
Esta expectativa por uma era na qual a justiça será finalmente cumprida na sociedade política é o que Giorgio Agamben chama de “o tempo que resta”, o tempo profetizado pelo apóstolo Paulo em suas epístolas, cujo conteúdo messiânico é frequentemente confundido com o escatológico. Aqui, o filósofo italiano explica que a profecia é aquela que se “volta para o futuro, mas o apocalipse, que contempla o fim do tempo, é a mais insidiosa má compreensão do anúncio messiânico”, pois “o apocalíptico se situa no último dia, no dia da cólera: ele vê o cumprimento do fim e descreve o que vê.
O tempo que o apóstolo vive não é, ao contrário, o éschaton, não é o fim do tempo. Se se quisesse condensar numa fórmula a diferença entre messiânico e apocalipse, entre o apóstolo e o visionário, [acredita-se] que se poderia dizer [...] que o messiânico não é fim do tempo, mas o tempo do fim. O que interessa ao apóstolo não é o último dia, não é o instante em que o tempo acaba, mas o tempo que se contrai e começa a acabar – ou, caso queiram, o tempo que resta entre o tempo e o seu fim”.
Esta percepção dolorida do intermédio que há no fim de um tempo passa a ilusão de que a mentalidade utópica é também um fenômeno ucrônico – ou seja, de acordo com as reflexões do filósofo brasileiro Benedito Nunes (1929-2011) no primoroso volume de ensaios O Dorso do Tigre (1969), “os tempos revoltos da história não chegam às portas da Amaurotas de More nem atravessam os setes círculos que rodeiam a Cidade do Sol de Campanella”.
Para ele, “a sociedade utópica é sempre uma sociedade triunfante”, onde “o tempo não mais se move na escala subjetiva da preocupação, em que o presente inquieto é sorvido pela imagem de possíveis modos de ser, ainda não cumpridos, que se alinham no futuro distante.
Nas utopias, que são também ucronias, tudo se resolve num presente estático, linear, que vai de um ponto a outro de um mesmo espaço social fechado. O tempo, que se detém, reverte à categoria do espaço. E essa detenção do espaço faz-se acompanhar por uma localização pontilhista, que isola a sociedade perfeita, separando-a de todas outras. É que a sociedade utópica nasce de uma ruptura; ela é o produto de súbita e espontânea conversão”.
Contudo, Nunes está equivocado ao afirmar que tal “espontânea conversão” é algo benéfico e assumir, talvez por influência da geração de 1968 então acometida por este mesmo tipo de mentalidade, que “o processo graças ao qual a sociedade utópica se instaura é, pois, um processo sem violências. Ela não nasce da luta. Os conflitos que a precedem, pertencem a um passado que ela rejeita, e do qual só conserva reduzida memória.
O espaço social fechado bem como a parada do tempo histórico, que a imaginação utópica projeta, têm por fundo, como determinação mais ampla, como verdadeira categoria, a totalidade, que abrange a comunhão dos bens, as relações recíprocas entre os indivíduos e a organização racional da conduta humana na cidade justa.
O que difere de uma para outra utopia é o princípio segundo o qual a totalidade se opera.
Na República de Platão, o todo social reproduz, nas suas três camadas constituintes – governantes, guardiães e trabalhadores – hierarquicamente ordenadas, o todo da alma humana, que tem no ápice a razão, no meio os sentimentos e embaixo os instintos. A harmonia social, que depende da justiça coletiva, reflete a harmonia interna entre as partes da alma de cada indivíduo.
Na Utopia, de More, o primeiro ato da razão natural do humanismo, que inspira e sustenta a organização social, é a abolição da propriedade privadas, assento prático e teórico do sistema inteiro. A esse sistema falta, porém, o equilíbrio mecânico que caracteriza o de Campanella, no qual a cidade se apresenta como um resumo do mundo. Ela é um microcosmo, que a natureza rege e que um triunvirato – Sabedoria, Amor e Potência – governa. A civitas humana assemelha-se aí a um experimento metafísico: a harmonia social reproduz a harmonia universal, assinaladas pelo curso dos astros e pelos signos zodiacais.
É impressionante que um espírito tão fino como o de Benedito Nunes não consiga perceber, pelo seu próprio raciocínio apresentado acima, que a utopia só consegue ser efetiva nessas sociedades como uma “psicose da imaginação” se não for posta em prática pelo único meio que ela conhece: o da violência.
Não é por acaso que outro grande filósofo italiano (e infinitamente superior a Agamben, apesar de ambos dialogarem entre si o tempo todo), Massimo Cacciari, no ensaio “Fenomenologia da Utopia Moderna”, percebe que o político possesso por este tipo específico de mentalidade não tem outra alternativa exceto “na eliminação de todos os obstáculos que possam impedir a afirmação triunfal do espírito da Academia [tecnocrática]; a forma institucional do país, se quiser servir o povo, deve interiorizar completamente tal espírito, até coincidir com ele. O político demonstrará ter compreendido o próprio significado e a própria missão quando, para resumir, souber se superar como dimensão autônoma para se transformar em nada além do fator do dispositivo técnico-científico-econômico. Se o problema da utopia moderna tinha parecido, desde o início, a concordância entre trabalho, profissão e ética da responsabilidade [promulgada por Max Weber], por uma parte, e formas de poder político, por outra, agora o problema se ‘fecha’ com a afirmação de que, para o Espírito do mundo [segundo Hegel], única auctoritas legítima, a única que é ‘justo’ obedecer (da parte de cada indivíduo, para o próprio interesse, pela paz, a segurança, o bem-estar), é o grande sujeito coletivo que, multiplicando as energias do cérebro social, trabalhando ininterruptamente, sem celebrar nenhum domingo, cria a riqueza espiritual e material de todos.
O profeta fundador político, o inovador, institui como pilar do Estado a Academia [tecnocrática], atribui ao crescimento dela todo recurso disponível e inspira toda forma de vida no modelo da sua organização. Então o político que se alimenta da luta pelo poder, intra moenia e entre os Estados, desvanecerá, finalmente, no seio dessa sociedade civil sempre em festa exatamente por estar sempre toda ao trabalho”.
Em resumo: a mentalidade utópica é auto-destrutiva desde o seu princípio – e não há como escapar deste ciclo de violência e dissolução, pouco importando a habilidade ou o talento do Novo Messias que resolva adotá-la.
Em A Poeira da Glória, mostro que a insistência do nosso “círculo de sábios” de privilegiar esta mentalidade na cultura nacional, começando pela “poética da dissimulação” de Machado de Assis, passando pelas “visões do deserto” que Euclides da Cunha narrou em Os Sertões (1902) e chegando ao ápice dos “ventos da destruição” do Movimento Modernista de 1922, ultrapassa qualquer espécie de ideologia política, seja de esquerda ou de direita. Aqui, o encontro de uma identidade nacional por meio de uma linguagem literária que confunde a clareza da prosa e as insinuações da poesia – como o que foi feito por Guimarães Rosa e sua “língua impossível”, por exemplo –, tornou-as indistintas para qualquer cidadão que tivesse o mínimo de bom senso estético.
Tal “identidade” sempre seria imposta de cima para baixo, através do mecanismo de poder do Estado, e a linguagem que a justificaria aboliria qualquer comunicação pessoal entre o público que quer se encontrar “no labirinto do sertão da sua vida” e o estadista que resolve espelhar a sua psicose da imaginação em um “pálido labirinto de aprendizagem”.
As utopias da linguagem, da política, do tempo e do espaço desembocam inevitavelmente na violência que contamina agora todo o globo terrestre. É dever de quem faz parte daquela “república invisível”, raramente vista pelos nossos olhos tão fatigados, dar o aviso, proferido por Richard Hooker na Inglaterra puritana do século XVII, aos remanescentes que ainda têm ouvidos para ouvir: “A posteridade poderá saber que não deixamos, pelo silêncio negligente, que as coisas se passassem como um sonho”. Só o tempo, se houver algum, nos dirá se o “estado de exceção” em que vivemos já não se tornou um gigantesco pesadelo.
Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.
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