Ouça este conteúdo
A morte do Papa Francisco, na segunda-feira (21), vai se tornar um marco de um período de profunda adaptação na Igreja Católica.
Os últimos três papas — o carismático João Paulo II, o contido Bento XVI e o informal Francisco — tinham estilos distintos. Eles também tiveram diante de si desafios diferentes. Mas as encíclicas, cartas e discursos papais revelam que a visão de mundo deles tinha muito mais em comum do que possa parecer: a defesa dos mais pobres, a crítica ao socialismo (mas também ao capitalismo) e a valorização da família estiveram no centro da atuação dos pontífices. Cada um ao seu estilo.
João Paulo II: vitória sobre o comunismo
O papa polonês, empossado em 1978, dedicou a primeira parte do seu pontificado a enfrentar a tirania comunista, sobretudo no leste europeu. Caído o Muro de Berlim, ele se dedicou a viajar o mundo e a falar a uma audiência global — o que se tornou possível pela primeira vez graças ao avanço da comunicação via satélite e da internet.
João Paulo II modernizou a linguagem sem modernizar o conteúdo. Ele priorizou o contato com os jovens (foi dele a iniciativa das Jornadas Mundiais da Juventude). Ao mesmo tempo, João Paulo II foi um escritor prolífico: ele publicou 14 encíclicas durante os seus 26 anos à frente da Igreja (ante três de Bento XVI e quatro de Francisco).
E, ao mesmo tempo em que atuou diretamente contra o comunismo, João Paulo II rejeitou o capitalismo incontido como uma solução. Em suas encíclicas, ele reforçou a defesa da Doutrina Social da Igreja, desenvolvida pelo papa Leão XIII no final do século 19.
Na encíclica Laborem Exercens, de 1981 João Paulo II escreveu a respeito da visão da Igreja para a sociedade:
O princípio a que se alude, conforme foi então recordado e como continua a ser ensinado pela Igreja, diverge radicalmente do programa do coletivismo, proclamado pelo marxismo e realizado em vários países do mundo, nos decênios que se seguiram à publicação da Encíclica de Leão XIII. E, ao mesmo tempo, ele difere também do programa do capitalismo, tal como foi posto em prática pelo liberalismo e pelos sistemas políticos que se inspiram no mesmo liberalismo.
João Paulo II
João Paulo II defendeu ainda a importância dos sindicatos, desde que eles não atuem como braços de partidos políticos: “Ao agirem em prol dos justos direitos dos seus membros, os sindicatos lançam mão também do método da greve, ou seja, da suspensão do trabalho, como de uma espécie de ultimato dirigido aos órgãos competentes e, sobretudo, aos dadores de trabalho. É um modo de proceder que a doutrina social católica reconhece como legítimo, observadas as devidas condições e nos justos limites”, afirmou, na mesma encíclica.
Preocupação com o tema da sexualidade
Em um período de transformação nos costumes, João Paulo II também reforçou a oposição da Igreja aos métodos contraceptivos e a tentativas de manipular o processo de concepção por meio da fertilização in vitro.
Em uma série de escritos, ele articulou o que hoje se conhece como Teologia do Corpo, em resposta às mudanças no campo da sexualidade. Na encíclica Evangelium Vitae, de 1995, ele apresentou uma crítica direta ao aborto: “Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros”.
Bento XVI- um inimigo do relativismo
O sucessor de João Paulo II não fez grandes mudanças de rota na teologia da Igreja. Na visão de Bento XVI, os maiores desafios eram o secularismo e o pós-modernismo, uma filosofia que questiona a própria ideia de que a verdade é algo objetivo. A solução dele foi redobrar a busca por uma teologia sólida, capaz de responder aos desafios filosóficos mais complexos. As três encíclicas assinadas por Bento XVI (Deus Caritas est, Spe Salvi, e Caritas in Veritate) seguem esse caminho.
A Spe Salvi, por exemplo, critica diretamente a visão de mundo marxista, segundo a qual a humanidade será redimida por uma revolução político-econômica:
Ele [Marx] esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de fato, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis.
Bento XVI
O pontificado de Bento XVI também lidou com um fluxo crescente de imigrantes e refugiados desembarcando na Europa. Diante de um tema complexo, ele adotou uma postura conciliatória: reconheceu os direitos humanos dos imigrantes, mas lembrou que é preciso respeitar os direitos dos cidadãos dos países que recebem essas pessoas. Na encíclica Caritas in veritate, ele escreveu:
“Esta política há de ser desenvolvida a partir de uma estreita colaboração entre os países donde partem os emigrantes e os países de chegada; há de ser acompanhada por adequadas normativas internacionais capazes de harmonizar os diversos sistemas legislativos, na perspectiva de salvaguardar as exigências e os direitos das pessoas e das famílias emigradas e, ao mesmo tempo, os das sociedades de chegada dos próprios emigrantes.”
Comentários sobre sexualidade
Assim como o antecessor, Bento XVI demonstrou preocupação com a ruptura do modelo tradicional de família e sexualidade. Um dos seus alvos era o que ele próprio tratou como “ideologia de gênero”:
“De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente, enquanto até agora era a sociedade quem a decidia. Salta aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente”.
Bento XVI não acreditava que a Igreja deveria suavizar sua mensagem para atrair novos fiéis. Ele insistiu na visão tradicional sobre o casamento, que se tornava cada vez menos popular no mundo ocidental.
“A Igreja, que tem a peito o verdadeiro desenvolvimento do homem, recomenda-lhe o respeito dos valores humanos também no uso da sexualidade: o mesmo não pode ser reduzido a um mero fato hedonista e lúdico, do mesmo modo que a educação sexual não se pode limitar à instrução técnica, tendo como única preocupação defender os interessados de eventuais contágios ou do ‘risco’ procriador”, ele escreveu, ainda na Caritas in veritate.
Francisco: um liberal?
Primeiro papa vindo da América e primeiro jesuíta a ocupar o posto, Francisco conciliou uma postura conservadora quanto à doutrina da Igreja com uma abordagem mais informal e — para alguns — liberal em alguns temas.
Durante seus doze anos de papado, ele publicou quatro encíclicas: Lumen fidei, Laudato si', Fratelli tutti, e Dilexit nos.
Laudato Si, publicada em 2015, trata da necessidade de proteção ao meio-ambiente — um tema que, embora tenha sido citado por outros papas, não havia sido tema central de uma encíclica. “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral”, escreveu Francisco, que falou dos “gemidos da irmã terra”.
Para além de enfatizar a importância da proteção ambiente, a encíclica discorre sobre medidas concretas, como o abandono dos combustíveis fósseis:
“A tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem demora, substituída”.
Oposição à pena de morte
Uma mudança concreta introduzida por Francisco diz respeito à legitimidade da pena de morte. Ele modificou o Catecismo para incluir um veto explícito à prática, que historicamente havia sido tolerada pela Igreja em casos extremos.
Na encíclica Fratelli Tutti, ele escreveu:
É impossível imaginar que hoje os Estados não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a vida de outras pessoas do agressor injusto.
Francisco
No texto, Francisco afirma que a pena de morte é “inadmissível”, como já havia feito em um pronunciamento em 2017. Na ocasião, ele afirmou que “Deve afirmar-se energicamente que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que, independentemente do modo como for realizada, humilha a dignidade pessoal. Em si mesma, é contrária ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir uma vida humana que é sempre sagrada aos olhos do Criador e cujo verdadeiro juiz e garante, em última análise, é apenas Deus.”
Ao longo do seu mandato, o Papa Francisco também fez declarações públicas que foram interpretadas como críticas a Donald Trump — sobretudo no primeiro mandato do republicano, entre 2017 e 2021. Francisco criticou quem constrói “muros”, e afirmou que barrar imigrantes não é condizente com a conduta cristã.
Mas talvez o tema mais controverso do pontificado de Francisco tenha sido a bênção a casais homossexuais.
Ao mesmo tempo em que manteve o ensinamento da igreja sobre o casamento entre homem e mulher, sem poupar críticas ao que chamou de “ideologia de gênero”, o papa demonstrou o que muitos interpretaram como uma abertura nesse tema.
E chegou à margem do liberalismo quando deu declarações interpretadas como favoráveis a casais do mesmo sexo: “Quem sou eu para julgar?”, indagou.
No documento Fiducia Suplicans, de 2020, permitiu que padres abençoem casais em situação irregular. O documento se refere tanto a casais cuja união não é reconhecida pela Igreja, e menciona especificamente os pares do mesmo sexo.
O documento não equipara essa bênção a um casamento, mas tampouco condena diretamente as relações homossexuais.
"No horizonte delineado aqui surge a possibilidade de bênçãos para casais em situações irregulares e para casais do mesmo sexo, cuja forma não deve ser fixada ritualmente pelas autoridades eclesiais para evitar confusão com a bênção própria do Sacramento do Matrimônio", diz o documento.
A reação foi intensa, e o Vaticano publicou um esclarecimento em que afirma: “Neste caso, o sacerdote pode recitar uma simples oração como esta: «Senhor, olha estes teus filhos, concede-lhes saúde, trabalho, paz e ajuda recíproca. Livra-os de tudo aquilo que contradiz o teu Evangelho e concede-lhes viver segundo a tua vontade. Amém». E conclui com o sinal da cruz sobre cada um deles.”
Ainda assim, o uso do termo “casal do mesmo sexo” suscitou críticas entre os grupos mais conservadores dentro da Igreja.
Rótulos ideológicos não cabem, diz professora
Doutora em Teologia e professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Ana Beatriz Dias Pinto afirma que, apesar das diferenças de estilo, os três últimos papas pouco modificaram a doutrina católica. “Há uma continuidade doutrinal na Igreja, especialmente no que tange à dignidade da vida humana, à importância da família e à defesa dos pobres”, ela diz.
Isso não quer dizer que Francisco não tenha feito mudanças importantes na estrutura da Igreja Católica: a professora lembra que ele reformou a estrutura da Cúria Romana, aumentou a transparência financeira, redobrou a atenção sobre o evangelismo e aumentou o espaço das mulheres nos cargos de liderança.
Ana Beatriz também afirma que o uso de rótulos como “esquerda”, “direita”, “liberal” ou “conservador” para um papa é inadequado. “Dar estes rótulos a um papa é errôneo, teologicamente falando. Essas palavras são insuficientes para explicar a missão de um Sumo Pontífice, porque acabam distorcendo a natureza da missão do Bispo de Roma, que é universal.”
VEJA TAMBÉM: