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“Coringa” não é um filme político, e sim psicológico, mostrando os perigos da ação de grupo e o poder das narrativas coletivas.
| Foto: Divulgação

'Coringa', de Todd Phillips, recebeu críticas bastante polarizadas. Apesar de ter vencido o Festival de Veneza, muitos críticos chamaram o filme de “perigoso”, temendo que ele pudesse inspirar incels a identificarem o personagem como herói e a imitá-lo. Outros acusaram o filme de ser “propositadamente desagradável” e uma experiência “vazia e entorpecedora”. Mas outros encontraram uma conexão entre o retrato que Joaquin Phoenix faz do personagem e a validação do “ressentimento masculino branco” visto na direita.

Se eu fosse um psicólogo clínico, provavelmente me ateria à análise psicológica da interpretação digna de Oscar que Phoenix faz de Arthur Fleck/Coringa. Como psicólogo social, contudo, estou muito mais interessado na crítica que Coringa faz da sociedade em si ao colocar um espelho diante do fenômeno da desindividualização. O que vi foi um filme no qual o mal real digno de medo é uma sociedade frustrada e colapsada que se lança em atos aleatórios e quase sem sentido de violência, lhes dá um significado mais profundo e os usa como trampolim para a violência e a brutalidade em massa. 'Coringa' não é um filme político, e sim psicológico, sobre os perigos da ação em grupo e o poder das narrativas coletivas.

A sociedade e a violência em massa em Coringa

A Gotham City de 'Coringa' é uma sociedade fundamentalmente colapsada. Mas é interessante que nenhuma classe ou grupo possa ser considerado culpado. Arthur Fleck é um fracassado em todos os níveis da sociedade; ele é roubado e espancado por uma gangue, brutalizado por jovens banqueiros ricos, abandonado no moribundo sistema público de saúde mental e desprezado por sua própria família. Mas todas as classes sociais em 'Coringa ' buscam culpar alguém pelos infortúnios da sociedade. Os ricos denigrem os trabalhadores, que desumanizam os ricos. Um apresentador de TV (interpretado por Robert DeNiro) provoca impiedosamente de Arthur e todas as classes vislumbram ao mesmo tempo seus fracassos na TV.

Nesse cenário melancólico, em seu desespero por encontrar alguém em quem pôr a culpa, as massas de Gotham condenam o “um por cento” (apesar de a expressão não ser usada) e, quando um desesperado Arthur comete assassinato, a sociedade transforma este ato de violência sem sentido num ato de rebelião social. Apesar de não saber nada sobre o assassinato, nem os motivos, circunstâncias ou identidade do assassino, a população de Gotham confere ao ato um mesmo sentido, inserindo o acontecimento aleatório na narrativa já existente e, usando máscaras criadas para imitar a fantasia de palhaço de Fleck, consideram o Coringa um herói.

No ponto alto do filme, quando Arthur aparece como Coringa pela primeira vez e os manifestantes já estão prontos para a revolta, é outro assassinato sem sentido cometido por Arthur que dá início à confusão. Novamente, a brutalidade de Arthur não tem um objetivo ou sentido muito profundo. No filme, Arthur pretende se matar ao vivo na televisão. Mas, numa decisão impulsiva, Arthur começa a discursar, culpando a elite pelo estado de Gotham, reclamando o crédito pelo assassinato e decidindo se lançar em mais alguns atos de violência sem sentido.

Desindividualização e dinâmica de grupo

De uma perspectiva psicológica, 'Coringa' é o retrato mais realista e maldito de uma dinâmica coletiva que vejo em muito tempo. O Coringa de Joaquin Phoenix está longe de ser o anarquista ousado de Heath Ledger em 'O Cavaleiro das Trevas' ou o narcisista de Jack Nicholson no 'Batman' de 1989. Ele não tem planos, motivação, nem pretende defender um argumento; ele é tão vítima das circunstâncias quanto é vítima da sua própria raiva.

Ao contrário de Ledger ou Nicholson, o Coringa de Phoenix não manipula nem usa outras pessoas para alcançar seus fins, provavelmente porque ele não tem objetivo nenhum a alcançar. É a sociedade que o faz ser como é, não da forma como o trata (até porque nessa representação de Gotham todos são horríveis uns com os outros), e sim o transformando em mito e romantizando suas ações sem objetivo.

O retrato desse processo está tão em linha com as pesquisas psicológicas que me peguei me perguntando se Todd Phillips tinha consultado a literatura especializada sobre desindividualização ao escrever o roteiro do filme. Embora muitos (sobretudo numa era na qual os dois lados do espectro político apelam ao populismo) pareçam querer supor que grandes grupos detêm inatamente uma moral elevada, a verdade é que tais situações geralmente resultam em ações perigosas e até violentas.

A desindividualização se refere ao fato de que multidões geralmente assumem uma identidade coletiva, dividem a responsabilidade individual entre si e se tornam dispostas a cometerem os atos mais violentos possíveis. A desindividualização está associada a tudo, desde protestos em massa até linchamentos e alertas quanto ao perigo de se supor que números são o equivalente à ação moral. As identidades coletivas dos grupos desindividualizados podem resultar em lembranças e interpretações enviesadas de acontecimentos que, por sua vez, geram violência.

É exatamente isso o que acontece em Coringa. Tudo o que Arthur Fleck faz é cometer assassinatos relativamente aleatórios e faz um discurso incoerentemente furioso na televisão. O verdadeiro vilão do filme é a sociedade que se sente atraída por essas ações e palavras e lhes confere um sentido não-existente para justificar seus próprios crimes.

Procurando o Coringa na esfera política atual

As forças sócio-psicológicas retratadas em Coringa estão em ação hoje, assim como estavam no fictício ano de 1981 do filme. Na busca por sentido em meio a um ambiente político hostil e cada vez mais polarizado, os grupos se reúnem e dão origem a monstros. Assassinos em massa como Che Guevara e Mao Tsé-tung são elogiados por muitas pessoas de esquerda, que ignora a brutalidade deles em favor das virtudes romantizadas do socialismo e comunismo. Enquanto isso, as mesmas ideologias nacionalistas que geraram tragédias no passado são elogiadas pela direita. A sensação de não-pertencimento e de ressentimento estão gerando grupos violentos como os Antifa e os “Proud Boys”.

É esse fenômeno, exposto com maestria em Coringa, que está por trás, acho, do incômodo sentido por muitos dos espectadores. Gostamos de vilões simples, de uma maldade quase cartunesca, que podemos identificar como “o outro” e que não nos obrigue a fazermos tanta autorreflexão. Queremos vilões cujo mal nos permita identificarmos nossos oponentes ideológicos e não que nos faça pensarmos em nosso próprio potencial de comportamento imoral.

Assim como as hordas de Gotham, buscamos vilanizar aqueles que discordam da gente ao mesmo tempo em que aceitamos o comportamento das pessoas que fazem parte do nosso grupo. Tais circunstâncias tornam casos de violência em massa e de desindividualização mais prováveis.

'Coringa' é, assim, não um filme político, e sim um filme psicológico. Ele não fala de Trump e da extrema-direita, assim como não fala dos Antifas e da extrema-esquerda. Ele fala dos perigos apolíticos da desindividualização coletiva. Precisamos de exemplos de fora da psicologia porque esses exemplos estarão no noticiário, desde as manifestações Antifa até casos semelhantes aos de Charlottesville. Ao pensarmos criticamente sobre filmes incômodos como 'Coringa', percebemos os perigos não apenas da retórica da qual discordamos, mas também das forças psicológicos apolíticas capazes de nos transformar a todos em Coringas.

Aaron Pomerantz é psicólogo social na Universidade de Oklahoma, onde estuda cultura, direito e a psicologia da religião.

© 2019 FEE. Publicado com permissão. Original em inglês
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