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O psicólogo canadense certamente diria ao Coringa para assumir a responsabilidade pela própria vida .
O psicólogo canadense certamente diria ao Coringa para assumir a responsabilidade pela própria vida .| Foto:

O que é preciso para transformar uma pessoa comum num monstro? Para criar um assassino em massa, um terrorista, um Coringa?

De acordo com o próprio Coringa, “um dia ruim”.

É assim que ele conta sua própria história em Batman: a Piada Mortal, uma revista em quadrinhos de 1988 de Alan Moore e Brian Bolland. Essa história influenciou muito o controverso filme Coringa.

O Coringa já foi um homem comum. Ele estava tentando ser um bom marido, se preparando para virar pai e lutando para ganhar a vida como um comediante. Mas suas piadas eram ruins e sua família estava presa na pobreza. Ele se sentia um fracasso. Ele estava assoberbado pela humilhação e a culpa.

Daí uma gangue de criminosos lhe ofereceu uma saída. Se o Coringa os ajudasse com apenas um crime, ele ficaria rico. Desesperado para mudar de vida, ele aceitou.

Mas daí o “dia ruim” aconteceu. No dia do assalto, a esposa dele morreu num acidente horrível. Ele tentou desistir do crime, mas a gangue não deixou. Daí o assalto não deu certo. O Batman apareceu. Tentando fugir, o homem pulou dentro de uma piscina de lixo tóxico. Ele saiu dela parecido com um palhaço louco. E começou a agir como tal. E nunca mais parou.

Um dia ruim o fez entrar em colapso. Um dia ruim o levou à loucura e ao assassinato.

Dá para imaginar o que um dia ruim assim faria com você. Duvido que você se transformasse num supervilão ou serial killer. Mas um dia assim talvez o levasse a desenvolver sérios problemas mentais. Talvez ansiedade. Talvez depressão. Talvez pior. Para alguns, uma tragédia dessas pode levá-los ao abismo.

Coringa, conheça Jordan Peterson

Isso levanta sérias questões sobre a vida real. O que podemos fazer diante da tragédia? Como podemos reduzir o sofrimento? Como podemos nos manter distantes do mal?

Esses são os problemas sobre os quais o dr. Jordan B. Peterson pensou ao longo de toda a vida. Peterson é um psicólogo, professor universitário e estrela do YouTube. Muitos jovens dizem que suas palestras mudaram suas vidas para melhor.

Ele também estudou profundamente o mal. Ele leu os diários dos atiradores em escolas e pesquisou genocidas e ditadores totalitários.

E se Jordan Peterson conhecesse o Coringa? Imagine o dr. Peterson trabalhando como psicólogo no hospício Arkham, onde o Coringa passa boa parte do tempo quando não está matando os outros. Se o Coringa fosse paciente de Jordan Peterson, como o psicólogo da vida real analisaria o psicopata fictício?

A crença mortal

Antes de mais nada, o dr. Peterson diagnosticaria no Coringa um caso grave de niilismo. O dicionário define niilismo como uma rejeição dos “princípios morais, na crença de que a vida não tem sentido”. Peterson identifica no niilismo uma das causas de todo o mal.

Em seu livro 12 Regras para a Vida, Peterson escreveu que o sofrimento leva alguns a acreditarem que a vida é “uma piada”. Isso as torna ressentidas em relação à sociedade, à vida e até mesmo à existência em si. Para alguns, essa visão de mundo motiva o “assassinato em massa, geralmente seguido pelo suicídio”.

Peterson notou, por exemplo, que o niilismo e o ressentimento motivaram Eric Harris, um dos perpetradores do massacre da escola Columbine, em 1999. Harris e seu comparsa assassinaram dez colegas antes de se matarem. Um dia antes do massacre, Harris demonstrou esse niilismo ao escrever em seu diário:

É interesse estar na minha forma humana, sabendo que vou morrer. Tudo tem um quê de trivialidade.

E seu ressentimento avassalador estava à mostra quando ele escreveu:

"Odeio vocês por me excluírem de tantas coisas (...) Vocês tinham meu telefone e eu pedi e tal, mas não, não, não deixe aquele Eric estranho vir ODEIO AS PESSOAS e é melhor que elas... tenham medo de mim”.

O sofrimento leva alguns a adotarem o niilismo e o ressentimento. E algumas pessoas usam o niilismo e o ressentimento para justificar atos de monstruosidade.

Em A Piada Mortal, é exatamente o que acontece ao Coringa. Ele usa seu “dia ruim” como justificativa para adotar o niilismo e mergulhar no ressentimento. Ele disse:

Tudo é uma piada! Tudo o que todos valorizam e pelo que lutam... Tudo é uma piada demente e monstruosa!

O Coringa também reclama da “vida e toda a sua injustiça aleatória” e do “fato inquestionável de que a existência humana é louca, aleatória e sem sentido”. Ele opta deliberadamente pela loucura porque “num mundo tão psicótico quanto esse... qualquer outra reação seria loucura!”

O Coringa tentou justificar sua escolha realizando uma experiência monstruosa. Ele tentou enlouquecer um homem ao lhe dar seu próprio “dia ruim”. Ele sequestrou o Comissário James Gordon e lhe deu o pior dia da vida. (Vou lhe poupar dos detalhes sórdidos). Ele queria “provar algo”: que a única reação a essa comédia trágica da vida era o niilismo e a loucura.

Heróis cotidianos

Mas Peterson diria que o Coringa está errado. Pessoas comuns podem manter a moralidade e sanidade mesmo diante da tragédia. Na verdade, é isso o que as pessoas comuns fazem todos os dias. Escreveu Peterson:

Conheci um homem que ficou ferido e deficiente depois de um acidente de carro e foi empregado por uma empresa local. Durante anos, ele trabalhou lado a lado com outro homem, que de sua parte sofria de uma doença neurológica degenerativa. Eles se ajudavam consertando linhas de transmissão, cada qual compensando a inadequação do outro. Esse tipo de heroísmo cotidiano é uma regra, e não uma exceção, acredito.

Em A Piada Mortal, o Comissário Gordon também mostra que o Coringa está errado. Apesar de ser torturado física e emocionalmente, Gordon não só mantém sua sanidade, mas também sua retidão moral. Depois que Batman o resgata, Gordon insiste para que o Coringa seja preso “dentro das regras” (legalmente). Mesmo depois de passar por tudo aquilo, Gordon não cede ao ressentimento contra o mundo e nem mesmo contra seu torturador. Ele segue à risca seu código de conduta e pede não por vingança, e sim por justiça e pelo domínio da lei.

Quando Batman se confronta com o Coringa, ele descreve o fracasso do vilão.

Por acaso, falei com o Comissário Gordon antes de vir aqui. Ele está bem. Apesar de suas piadas nojentas, ele está lúcido como sempre. Então talvez pessoas comuns nem sempre cedam à pressão. Talvez não seja necessário se enfiar sob uma pedra com todas as outras coisas nojentas quando a gente se depara com um problema. Talvez só você seja assim.

De acordo com o Batman, as pessoas comuns são capazes de se desviar do caminho do niilismo e do ressentimento, mesmo diante da tragédia. Jordan Peterson concordaria. Escreveu ele:

Algumas pessoas cedem ao inferno do ressentimento e do ódio, mas a maioria delas se recusa a fazer isso, apesar do sofrimento e das decepções e das inadequações e feiura, e novamente isso é um milagre que devemos admirar.

Um herói da vida real

O heroísmo cotidiano é realmente milagroso. E o espírito é capaz de muito mais. Por exemplo, Peterson escreveu sobre o famoso escritor russo Aleksandr Solzhenitsyn, que:

(...) tinha todos os motivos do mundo para questionar a estrutura da existência ao ser preso num campo de trabalhos forçados soviético, em meados do horrível século XX. (...) Ele foi preso, espancado e jogado na prisão por seu próprio povo. Daí ele teve câncer. Ele podia ter se tornado uma pessoa ressentida e amargurada. (…) Mas o grande escritor, o defensor profundo e elevado da verdade, não deixou que sua mente recorresse à vingança e à destruição.

Em vez de recorrer ao niilismo e ressentimento, ele optou pelo caminho do autocrescimento, mesmo doente e preso. Esse caminho o levou a escrever um livro sobre os horrores do sistema prisional soviético, chamado Aquipélago Gulag. Esse livro tinha tanta força e foi tão influente que contribuiu para o colapso do Império Soviético. A Rússia ainda tem prisioneiros políticos que sofrem violência, mas provavelmente muito menos, graças a Solzhenitsyn.

Tal reação heroica diante da tragédia impressionaria o Coringa. Em A Piada Mortal, ele diz que dava para ver que Batman também já passou por seu próprio “dia ruim”. Então por que, pergunta ele, Batman não “entende a piada” da vida? “Por que você não está rindo?”, pergunta o Coringa.

“Porque já conhecia essa piada”, responde o Batman, “e não achei graça da primeira vez que a ouvi” (e daí joga o Coringa na sala de espelhos).

Como todos sabemos, o Batman já teve, sim, um “dia ruim”. Quando criança, seus pais foram assassinatos diante dele. Mas, ao contrário do Coringa, ele se recusou a ceder ao ressentimento e ao ódio. Como Gordon, ele manteve sua decência. E foi até além disso. Como Solzhenitsyn, ele se apegou à sua moral elevada e heroicamente impediu que os outros sofressem a mesma tragédia que ele sofreu.

O segredo é a responsabilidade

Qual a diferença entre o Batman e o Coringa, entre Solzhenitsyn e os assassinos de Columbine? Por que o sofrimento leva algumas pessoas a atos de heroísmo e outras a atos de monstruosidade?

A maior diferença é a responsabilidade.

Eric Harris claramente teve de enfrentar o sofrimento e a injustiça, sobretudo na escola. Mas em vez de assumir qualquer responsabilidade pela situação, ele optou por culpar os outros.

E o Coringa foi, em grande medida, o próprio culpado por seu “dia ruim”. Mas ele não assumiu a responsabilidade por isso. Ao contrário, ele culpou “o mundo” e optou pela insanidade como forma de suprimir todas essas memórias.

O Batman tinha uma desculpa muito melhor para não assumir a responsabilidade por seu “dia ruim”. Afinal, ele era apenas uma criança quando seus pais foram assassinados. Mas ele assumiu a responsabilidade mesmo assim. A memória daquela noite o levou a dar o máximo de si para salvar os outros de uma tragédia parecia.

Solzhenitsyn reagiu de uma forma semelhante à tragédia. Apesar de ter sido preso injustamente, ele também tinha uma desculpa plausível para pensar em si mesmo como vítima. Mas, em vez de fazer isso, ele adotou um nível de responsabilidade que muitos considerariam extremado. Como escreveu Peterson:

Durante seus vários julgamentos, Solzhenitsyn encontrou pessoas que se comportavam com honradez, sob circunstâncias horríveis. Ele contemplou profundamente o comportamento dessas pessoas. Depois, fez a si mesmo a mais difícil das perguntas: ele contribuiu para a catástrofe da sua vida? Se sim, como? Ele se lembrou de seu apoio incondicional ao Partido Comunista anos antes. Ele refletiu sobre toda a sua vida. Ele tinha muito tempo no campo de trabalhos forçados. O que ele fez de errado no passado? Quantas vezes ele agiu contra sua própria consciência, envolvendo-se em atitudes que sabia serem erradas? Quantas vezes ele se traiu e mentiu? Havia alguma forma de retificar ou reparar os pecados do passado em meio ao inferno enlameado do gulag soviético?

Solzhenitsyn passou um pente fino nos detalhes da sua vida. Ele se fez uma segunda pergunta, depois uma terceira. Eu sou capaz de parar de errar assim? Sou capaz de consertar o estrago causado pelos meus fracassos passados?

Foi essa mentalidade que lhe deu poder não só para sobreviver, mas também para mudar o mundo.

A escolha

Voltando à pergunta original, o que é preciso para transformar uma pessoa comum num monstro?

“Um dia ruim” é a resposta do Coringa. Mas ele só tem razão em parte. Como Jordan Peterson nos diz, tudo depende de como você reage à tragédia e ao sofrimento.

Se uma pessoa reage a isso fugindo da responsabilidade e mergulhando no niilismo e ressentimento, isso pode mesmo levar a atos de monstruosidade que perpetuam a tragédia. Mesmo se isso não acontecer, o caminho ainda pode transformar a pessoa em alguém deplorável.

Mas se reagirmos assumindo a responsabilidade, podemos ajudar a evitar tragédias desnecessárias e encontrar sentido na vida.

É preciso responsabilidade para transformar uma pessoa comum num herói.

Em A Piada Mortal, o Coringa disse:

Lembrar? Ah, eu não faria isso! Lembrar é perigoso. Acho que o passado é um lugar preocupante, temeroso. (...) Então, quando você se perceber preso a um raciocínio desagradável, se aproximando de lugares do passado onde os gritos são insuportáveis, lembre-se que há sempre a loucura. A loucura é a saída de emergência. Você sempre pode dar um passo para fora e fechar a porta para todas as coisas horríveis que aconteceram. Você pode deixá-las trancadas para sempre.

Jordan Peterson diria ao Coringa que essa é uma péssima ideia. Escreveu ele:

A memória é uma ferramenta. A memória é o guia do passado rumo ao futuro. Se você lembrar que algo ruim aconteceu, pode tentar descobrir por que e depois tentar evitar que aquilo aconteça novamente. Este é o objetivo da memória. Não é “se lembrar do passado”. É impedir que as coisas ruins se repitam.

Memórias recorrentes tentam nos ensinar algo. Se, como o Coringa, fugirmos de nossas lembranças, sobretudo aquelas cheias de culpa, jamais seremos capazes de aprender as lições que elas têm a nos ensinar.

Dan Sanchez é diretor de conteúdo da Foundation for Economic Education (FEE) e editor do FEE.org

© 2019 FEE. Publicado com permissão. Original em inglês

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