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Aqueduto-da-Amoreira
Foto atual do Aqueduto da Amoreira, uma obra que parte da nascente principal até galerias subterrâneas, numa extensão de 1367 metros.| Foto: Prefeitura de Elvas/Alberto Mayer

Em 1543, teve início a construção de um aqueduto em Elvas, uma cidade no Alentejo, nas proximidades da fronteira de Portugal com a Espanha, que atualmente tem apenas 16 mil habitantes. O dinheiro acabou quando a obra ainda estava muito longe de terminar. Os vereadores então solicitaram ao rei D. João III que instaurasse um inquérito. Assim se fez.

Uma comissão de parlamentares teve acesso à contabilidade da obra. Concluiu que o responsável por supervisionar o empreendimento, o desembargador português Pero Borges, havia desviado para si exatos 114.064 reais (a moeda portuguesa da época tinha o mesmo nome da moeda brasileira atual) , um valor próximo de seu salário por um ano. O julgamento contou com a delação premiada do empreiteiro contratado, que declarou que Borges recebia os valores por fora, em sua casa, sem emitir nenhum documento ou assinar qualquer recibo.

O julgamento se arrastou porque o acusado conseguiu emplacar uma série de recursos. Mas, em 17 de maio de 1547, veio a inevitável condenação, assinada pelo próprio monarca. Borges deveria devolver o dinheiro e seria suspenso do exercício de cargos públicos por três anos.

Parecia que a Justiça havia sido alcançada. Mas eis que, em 17 de dezembro de 1548, apenas 14 meses depois da condenação, e muito antes do fim do período de punição, o mesmo D. João III assinava um documento que transformava Pero Borges no primeiro ouvidor-geral do Brasil. Ele deveria se deslocar para a capital, Salvador, junto com Tomé de Souza, o primeiro governador-geral da colônia. E chegaria ao outro lado do Oceano Atlântico como detentor de enorme poder. Seu cargo era o equivalente ao atual ministro da Justiça.

Pensão anual 

“Em 15 de janeiro de 1549, duas semanas antes de partir para o Brasil, o ouvidor-geral ainda recebeu de D. João III a promessa de que, ‘se bem servisse’, seria promovido a desembargador da Casa de Suplicação tão logo retornasse ao reino”, relata o jornalista Eduardo Bueno em A coroa, a cruz e a espada: Lei, ordem e corrupção no Brasil. “Não foi o único agrado feito a Borges: em 17 de janeiro, o rei concedeu a Simoa da Costa, mulher do ouvidor-geral, uma pensão anual de 40 mil reais, paga durante o tempo em que seu marido estivesse no Novo Mundo. Para servir no Brasil, Borges receberia 200 mil reais por ano, mais que o salário nominal de um desembargador do Paço (170 mil reais brutos)”.

Os privilégios não pararam aí. “Sob suas ordens diretas viria uma dúzia de funcionários, entre eles o escrivão Brás Fernandes (40 mil reais por ano) e o meirinho Manuel Gonçalves (20 mil reais anuais). Após uma série de reuniões na corte, algumas delas com o rei, os três principais servidores da Justiça no Brasil conseguiram embolsar seus salários antes de partir de Portugal, e só então se prepararam para zarpar para o Brasil na frota do governador-geral, que já se encontrava fundeada no porto, aguardando por eles”.

Daí Pero Borges ser considerado o primeiro corrupto do Brasil — ainda que haja dúvidas sobre esta primazia, já que o primeiro Ministro da Fazenda da colônia (ou provedor-mor, como se chamava o cargo), Antonio Cardoso de Barros, que atou no país na mesma época, tenha sido acusado de construir engenhos de açúcar particulares no Recôncavo da Bahia utilizando dinheiro desviado. Mas a forma como Borges foi escolhido permite que ele possa ser, pelo menos, apontado como um primeiro grande exemplo de impunidade da história da colônia.

Pena de morte e multas 

Construir um arcabouço jurídico no Brasil era estratégico para Portugal. Fazia-se necessário para garantir a aplicação da lei — que, aliás, era diferente de acordo com a posição social do cidadão. E também era fundamental garantir a cobrança de impostos. Cada capitania hereditária mantinha sua própria estrutura de juízes e fiscais, bancados pelos donatários do território.

Com a chegada de um comando central à capital, em 1549, o que se pretendia era criar uma estrutura de maior alcance, já que, até aquele momento, uma pessoa condenada em uma capitania podia circular livremente em outra. Pero Borges havia recebido, portanto, uma missão de grande responsabilidade, ainda que a assumisse com a ficha suja.

O alvará real determinou que “todas as autoridades e moradores da colônia lhe obedeçam, e cumpram inteiramente suas sentenças, juízos e mandados”. Entre suas atribuições estavam definir condenações penais, que previam inclusive pena de morte para indígenas, escravos e os chamados peões, ou seja, os cidadãos considerados de classe inferior — o governador-geral precisaria confirmar a condenação capital. Para as chamadas “pessoas de mor qualidade” ele tinha o poder de condenar a degredo de até cinco anos e a multas de até 60 mil reais. Tinha ainda carta livre para entrar nas terras de posse de qualquer cidadão para julgar casos, novos ou antigos.

Pero Borges se mostrou um magistrado dedicado, que fazia visitas frequentes a pontos diversos da colônia, num momento em que viajar pelo Brasil era extremamente arriscado — em 1550, por exemplo, participou de uma excursão que cobriu parte da costa da colônia e, em Porto Seguro, tentou organizar o trabalho do tribunal local, que não contava nem sequer com livros de registros dos casos.

Ele decretou ainda que as capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Porto Seguro não utilizassem degredados condenados em Portugal para ocupar postos de trabalho no sistema de justiça da colônia. Por outro lado, sua atuação desagradou a Câmara de Vereadores de Salvador, que o acusou de aplicar as leis segundo seus próprios interesses.

Poder concentrado 

O papel do Judiciário criava uma situação paradoxal para os países europeus, como descreve Bueno em seu livro. “Para cobrar e controlar, vigiar e punir seus súditos, submetendo-os ao cumprimento de uma série de novas obrigações civis, os Estados modernos emergentes se viram na contingência de criar vastos e complexos aparelhos burocráticos — um conjunto de órgãos e servidores responsável pelo funcionamento e manutenção do sistema judiciário, do fisco e das forças armadas, ou seja, o corpo administrativo como um todo”.

Na prática, a situação transformava o rei e seus colaboradores mais próximos em reféns “de uma burocracia estatal tentacular que florescia à sombra do crescente poderio do Estado. Com o passar dos anos, desembargadores, juízes, ouvidores, escrivães, meirinhos, cobradores de impostos, vedores, almoxarifes, administradores e burocratas em geral — os chamados ‘letrados’ — encontraram-se em posição sólida o bastante para instituir uma espécie de poder paralelo, um ‘quase Estado’ que, de certo modo, conseguiria arrebatar das mãos do rei as funções administrativas”.

Era comum que os cargos do Judiciário passassem de pai para filho. O nepotismo era acompanhado pela corrupção. “Embora recebessem altos salários, muitos burocratas engordavam seus rendimentos com propinas e desvio de verbas públicas”, prossegue Bueno. “Inúmeras evidências permitem afirmar que, na Península Ibérica, a máquina administrativa não era apenas ineficiente, mas corrupta. Outra de suas características mais notórias é que o número de funcionários destacados para o cumprimento de qualquer função revelava-se, na maioria dos casos, bem superior ao necessário para a realização do trabalho”.

Em 1554, já com Duarte da Costa no lugar de Tomé de Souza no governo da colônia, Pero Borges assumiu o cargo de provedor-mor, antes ocupado por Antonio Cardoso de Barros. Começava ali uma parceria produtiva entre os dois. “Borges tornou-se, assim, um inestimável aliado de Duarte da Costa, pois, além de favorecê-lo nas coisas da Fazenda, colocou o aparelho judiciário a favor do governador”, relata Eduardo Bueno.

Os dois instituíram uma medida bastante impopular: a obrigatoriedade de fazer um depósito compulsório antecipado de dez cruzados para entrar com um processo contra o governador, uma forma de inviabilizar, na prática, qualquer ação jurídica contra o gestor.

As acusações de uso do cargo para alcançar vantagens para si e para os mais próximos acompanharam Pero Borges ao longo de todo o tempo que ele permaneceu no Brasil — ele permaneceu no posto de ouvidor-geral até pelo menos 1560. Quanto a sua vida posterior à colônia, pouco se sabe a respeito de sua trajetória depois que retornou a Lisboa. Mas o legado de corrupção e de manutenção de um sistema judiciário apoiado nos vínculos pouco transparentes com as demais instâncias de poder permaneceria.

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