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Por que Platão criticava a democracia — e o que podemos aprender com ele

Platão: críticas à democracia servem como alerta ainda hoje.
Platão: críticas à democracia servem como alerta ainda hoje. (Foto: IMAGEM GERADA USANDO A FERRAMENTA GOOGLE IA/GAZETA DO POVO)

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Criticar a democracia é, em nosso tempo, uma atitude polêmica. Isso porque ela deixou de ser uma dentre várias formas de governo para ocupar o lugar de um valor moral e civilizatório. Só que nem sempre foi assim. Platão, na República, fazia críticas severas a esse regime...

Claro, não é preciso concordar com tudo o que ele dizia... Tenho plena convicção de que venerar um autor antigo apenas por ser antigo é uma forma inconsciente de decadência. Uma preguiça de pensar, um atalho que faz você parecer mais inteligente, graças ao prestígio dos clássicos. Porém, é preciso saber recolher o ouro entre as ruínas; se algo que resiste ao teste do tempo, que faz sair de circulação aquilo que era apenas moda, é porque guarda algum tesouro. Talvez não contenha a “verdade absoluta”, mas certamente oferece um norte. E, nesse sentido, como diz o prof. Richard Romeiro, meu orientador no mestrado, a reflexão platônica sobre a democracia pode, no mínimo, “contribuir para que alcancemos uma compreensão mais madura e filosoficamente menos ingênua do fenômeno democrático.”

Muitos reduzem as críticas de Platão a uma consequência biográfica (afinal, ele pertencia a uma família aristocrática que, pelo lado materno, remontava a Sólon, um dos mais renomados legisladores gregos, e, pelo paterno, a Codros, o último rei de Atenas), mas o professor Richard, com quem concordo, sustenta que essas críticas derivam de princípios teóricos enraizados no pensamento socrático, pensamento este de caráter intelectualista.

O que ensinava Sócrates? Que toda atividade humana, para alcançar a excelência, deve conhecer o bem relacionado à ação que pretende realizar. Afinal de contas, a sabedoria é a mãe das virtudes. A justificativa é a seguinte: assim como o bom médico precisa dominar a arte da medicina antes de curar doenças, o ato moral exige um saber que precede a ação: ninguém pode agir de modo plenamente bom sem conhecer o bem, nem ser verdadeiramente justo sem conhecer a justiça. Como poderia ser diferente na política? É possível tomar decisões públicas excelentes sem compreender Ética e Filosofia Política, Economia e Finanças Públicas, Geopolítica e História, além de noções de Direito, Psicologia Social e Antropologia? A política, portanto, não é uma questão emocional, mas epistêmica, termo que vem do grego epistēmē (ἐπιστήμη) e significa “conhecimento”, “ciência” ou “compreensão verdadeira”.

O problema é que a democracia não privilegia as competências epistêmicas, mas apela às emoções e aos discursos demagógicos. A massa se apropria do voto e passa a influenciar as decisões públicas sem possuir nenhuma aptidão intelectual para tal. É por isso que Platão critica as multidões, no mesmo sentido em que Ortega y Gasset critica a massa: não se trata de um conceito sociológico (de classe), mas psicológico (de responsabilidade existencial). Aqui, o que está em jogo não é a renda do indivíduo, mas sua disposição interior diante da vida. Assim como um homem rico pode pertencer à massa, um pobre pode pertencer à “elite”, dependendo do seu nível de consciência e formação cultural. A democracia, porém, subverte essa hierarquia natural e, como observa o professor Richard, “em sua forma extrema e desmesurada, seria o regime que, ao ver de Platão, institucionalizaria o amadorismo e o diletantismo como práticas políticas correntes e cotidianas, instaurando um governo dos ineptos que põe em risco a ordem moral e institucional da pólis.”

Imagine que você é um cidadão de bem. Paga suas contas, estuda filosofia, entende as consequências das ideologias, lê bons jornais e busca, com esforço, formar um juízo prudente sobre a vida pública. Pois bem, o seu voto vale exatamente o mesmo que o de um sujeito que vive às custas do Estado, não por necessidade verdadeira ou pontual, mas por pura preguiça e vício moral. E é aí que a demagogia encontra terreno fértil. Um governo populista não precisa nem de coerção para se perpetuar: basta distribuir migalhas e comprar a alma dos tolos com o dinheiro de quem trabalha. E a massa, julgando-se livre, torna-se preguiçosa e manipulável.

Isso quer dizer que a democracia é um mal absoluto? De forma alguma. Seria uma leitura tendenciosa ignorar que, nas críticas de Platão presentes na República, há certo ar de deboche e caricatura. O filósofo exagera os defeitos da democracia para expor uma verdade incômoda, e exagera porque, se considerarmos as entrelinhas, ele próprio era defensor de muitos princípios do ethos democrático: a liberdade de pensar e dizer o que se quer, mesmo que isso implique desafiar instituições e pessoas poderosas; o diálogo com todos, até com escravos, como fazia Sócrates. O que nos cabe, portanto, é reconhecer os vícios da democracia (o populismo, o nivelamento por baixo, a dissolução da hierarquia) e enfrentá-los sem cair no autoritarismo. Devemos lutar pela liberdade, mas lembrando que, quando a liberdade se separa da verdade, ela degenera em escravidão. Por fim, transforma o povo ignorante em massa de manobra para os piores tiranos.

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