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Indianos xiitas protestam contra o Estado Islâmico em Nova Déli | PRAKASH SINGH/AFP
Indianos xiitas protestam contra o Estado Islâmico em Nova Déli| Foto: PRAKASH SINGH/AFP

O ataque de sábado (02) na London Bridge foi horrível e enervante, principalmente por ter vindo logo depois do ataque de Manchester. Depois de eventos como esses, sempre procuramos pessoas para culpar. Logo depois, a primeira ministra britânica Theresa May comentou que existe “muita tolerância” com extremistas islâmicos no Reino Unido. Ainda que May não tenha discriminado muçulmanos em seu discurso, ela parece implicar que as pessoas toleram o extremismo voluntariamente. O aumento dos crimes de ódio contra muçulmanos depois do ataque de Manchester revela um sentimento similar que sempre aparece depois de eventos terroristas: que todos os muçulmanos são em alguma medida responsáveis pelo terrorismo e que é nosso dever prevenir que algo assim se repita. 

Eu gostaria de poder preveni-los, porque mortes aleatórias e o medo que elas evocam são bem familiares. Eu gostaria de poder, porque eu tenho saudades do Paquistão que conheci quando era criança. 

Eu cresci em um Paquistão onde aproveitava a liberdade. Durante aqueles longos dias de verão, os únicos que saiam nas ruas eram crianças e corvos. Até os camaleões se escondiam nas sombras das árvores de manga nesses dias. Mas éramos livres para passear. Meus irmãos e eu andávamos sem supervisão para a casa dos nossos primos para jogar bola, levar uma mensagem ou aproveitar a companhia. 

Minhas memórias da escola primária incluem uma professora do jardim de infância que usava um casaco vermelho no inverno. Ela brincava de colocar minha mão nos bolsos de seu casaco quando estava frio. Eu lembro de aprender tabelas de multiplicação e aprender as palavras no hino nacional do Paquistão. Meus medos, ou os que eu lembro, eram os mesmos que crianças de qualquer lugar — medo do escuro, de esquecer de estudar para uma prova e de répteis. 

Como uma menina de 12 anos no Paquistão, vi a ditadura de Zia-ul-Haq acabar abruptamente e uma mulher, Benazir Bhutto, ser eleita nossa primeira-ministra em 1988. O país parecia irromper em celebrações longas e espontâneas. Podíamos dirigir de noite depois de um jantar até acharmos uma festa de rua, o que não demorava muito. O barulho de música, multidões dançando nas ruas, e a reverberação dos tambores apareciam por tudo. Eles marcavam um novo começo e um futuro brilhante. 

Quase duas décadas depois, esse sentimento é desconhecido para meus sobrinhos que moram lá. Eles não conhecem a liberdade de andar nas ruas sozinhos enquanto os adultos se refugiam do sol em casa. Eles não sabem como é dançar nas ruas com estranhos que compartilhavam otimismo pelo futuro e um sentimento de liberdade sem ter cuidados ou limites. 

Em janeiro de 2015 e em 2016, muitas escolas paquistanesas foram fechadas por vários dias por conta de uma ameaça do Talibã. Quando minhas sobrinhas de 11 e 8 anos e meu sobrinho de 8 voltaram para a escola, eles viram atiradores posicionados nos telhados. 

Nesse dia — com quase a mesma idade que eu tinha quando comemorei o renascimento da democracia paquistanesa — minha sobrinha voltou para casa e disse para minha irmã que ela e os amigos procuraram lugares para se esconder e escapar na escola caso eles sejam atacados pelo Talibã. 

“Eu não quero ser morta pelo Talibã, mamãe. Eu não quero morrer”, ela disse para minha irmã. 

Eu realmente gostaria de arrancar extremistas pela raiz, porque meu coração quebra pela vida dos meus sobrinhos e outras crianças que precisam crescer com medo e cuidados assim. 

Mas um ponto fundamental para essa conversa é: para extinguir alguma coisa e impedir seu retorno, precisamos descobrir primeiro quais são as raízes disso. Quais condições permitiram que isso se estabelecesse e propagasse? 

Muitas pessoas, incluindo o presidente Donald Trump, apontam a “comunidade muçulmana” como causa e solução do problema.

Mas deixa eu dizer sem rodeios: não existe algo como uma “comunidade muçulmana”, “os muçulmanos” ou até “os homens muçulmanos” e “as mulheres muçulmanas”. 

Como professora de sociologia na Connecticut College, essa é uma lição que ensino para meus alunos bem cedo, pedindo para que terminem a seguinte frase: “Mulheres muçulmanas são …?”, o que eles fazem rapidamente usando predicativos (palavras como “oprimidas”, “silenciadas”, “passivas” ou até palavras que consideram como positivas, como “bonitas” ou “fortes”). Então eu peço que imaginem a pergunta começando com “As mulheres cristãs são …?”. A segunda pergunta não faz sentido para eles. Como, eles dizem, poderíamos falar por todas as mulheres cristãs ou mesmo fazer alguma observação universal sobre elas? 

Mas não temos esse entendimento do islamismo. Não importa a palavra escolhida (pode até ser uma positiva), reduzir um grupo de bilhões de pessoas com uma história tão diversa e complexa a uma identidade unificada e ahistórica produz uma imagem falsa e simplista. E mais: é uma imagem que não é baseada na realidade. 

Edward Said, intelectual famoso e autor de “Orientalismo” (Companhia das Letras, 2007, R$42,90), disse uma vez em uma entrevista: “Não existe o islamismo, puro e simples; existem muitos muçulmanos com diferentes interpretações do islamismo”. Esse pensamento é frequentemente perdido na cobertura midiática que se faz do islamismo e do terrorismo. 

É essa identidade singular falsa que nos faz pensar que a causa do extremismo é inerente ao Islamismo e não o produto de históricos políticos, sociais e econômicos específicos de uma região ou país. Basta olhar para a história do Afeganistão e o crescimento da guerrilha islâmica do país, criada e treinada com ajuda dos EUA para lutar uma guerra com a URSS, para entender que não foi a cultura afegã que deu origem ao Talibã. 

 

Não fomos nós que criamos o solo para esse mal. Nem temos o poder de terminar com isso sozinhos. Como uma erva daninha, o terrorismo cresceu e tomou conta das nossas vidas. As perdas provocadas pelos ataques fazem parte das nossas sociedades. 

As perdas são o medo que as crianças muçulmanas têm de andar na rua e não conhecer o que é liberdade. As crianças que são mortas na escola. A esperança e o otimismo, já abandonados pelos velhos e desconhecidos pelos jovens.

* Afshan Jafar é professora-associada de sociologia na Faculdade de Connecticut.

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